Sistema de ICMS é o algoz do nosso desenvolvimento
31 de outubro de 2012, 7h00
A dificuldade que persiste para iniciar empreendimentos, assegurar a continuidade de investimentos e a completa ausência de previsibilidade sobre regras e condutas administrativas tributárias, em conjunto, repercutem fortemente sobre a economia. Perdemos espaço na ordem mundial por falta de uma reforma desse sistema deteriorado, pela incompetência generalizada em oferecer estabilidade na aplicação do Direito existente, além de confiabilidade, simplificação e previsibilidade para o futuro da carga tributária, dos regimes de estímulos e dos controles existentes. Nesse particular, os estados, com seus desastrosos sistemas de ICMS, são verdadeiros algozes do nosso desenvolvimento.
Assim, a insegurança jurídica coopera com a obra magnífica de não se acompanhar o desenvolvimento econômico que se projeta. Ademais, no Brasil, os “fins” (arrecadação a qualquer custo) justificam os “meios” (com adoção de qualquer procedimento, qualquer argumento, qualquer forma). E o mais representativo desse estado de coisas encontra-se nos modelos estaduais de multas excessivas, tanto no quantitativo quanto nos motivos para sua cobrança. Não há razão para tanta gravosidade generalista e desprovida de exame da conduta dos contribuintes, como a boa fé, o erro escusável ou a falta de prejuízo ao erário.
Não seria exagero dizer que os estados, hoje, financiam-se mais com multas desarrazoadas e vergonhosamente excessivas (como aquelas de 80% ou de 50% sobre o valor da “operação”), juros de mora extorsivos (Selic adicionada de outros percentuais), créditos não devolvidos e garantias desmedidas, do que com o próprio tributo. Autuações a qualquer custo, ainda que descabidas, não importa. Os fins justificam os meios.
Tomemos aqui como demonstração desse modelo desvirtuado algo que não é exceção, mas regra, do inferno gerado pelas atuações fundadas em controles sobre inscrição estadual no Sintegra de compradores ou vendedores. Nestes, os contribuintes são obrigados ao controle da situação ativa e regular das inscrições estaduais, vedada a venda ou compra de mercadoria, pelas legislações estaduais, com quem não esteja ativo e regular. Poderíamos falar ainda dos excessos nos controles com operações “FOB” ou com os controles de notas canceladas, mas fiquemos naquele.
O leitor que pouco conheça como essas autuações operam, e as razões de nossas críticas, poderá imaginar que efetuado o controle para realizar a venda ou a compra (o que já é de discutível constitucionalidade), esgotar-se-ia o dever do paciente contribuinte. Mas não. Os estados autuam até mesmo aquelas hipóteses em que vendedor ou adquirente requer, sem qualquer conhecimento do contribuinte, e nem precisaria, baixa retroativa de inscrição estadual. Sim, eu sei que não se pode exigir de adquirentes de mercadorias que, ao tempo dos fatos das operações, identificaram as inscrições como “ativas” e “regulares”, que permaneçam, mês-a-mês, dia-a-dia, ad futurum, a buscar saber se haverá n’algum momento, “baixa retroativa” das inscrições dos seus clientes ou fornecedores.
As obrigações acessórias ou deveres instrumentais têm função bem definida no âmbito do Direito Tributário. Servem à finalidade de permitir a fiscalização e arrecadação tributária. São instrumentos para que o Fisco acompanhe as atividades que envolvam a realização de fatos imponíveis (fatos geradores in concreto), a fim de garantir a arrecadação.
Ora, a imposição de deveres instrumentais, assim como das respectivas sanções pelos seus descumprimentos, deve estar em conformidade com os princípios constitucionais, dentre outros, a legalidade, a segurança jurídica, o não-confisco, a razoabilidade, a proporcionalidade e a moralidade administrativa.
Esses deveres instrumentais não podem ser desvirtuados pela Fiscalização a ponto de as respectivas sanções (em geral, bastante onerosas ao contribuinte) serem transformadas no objetivo precípuo da arrecadação, como modalidade preponderante de receitas tributárias.
A exigência do dever de verificar a regularidade das inscrições fiscais do vendedor ou comprador de mercadorias, do nosso exemplo, deve prestar-se para aferir a repercussão sobre possível impacto no controle de créditos ou de ICMS devido.
Implica violação ao princípio da segurança jurídica, da boa-fé, da confiança legítima e da moralidade administrativa, a imposição de penalidade a contribuinte que cumpriu sua obrigação acessória, ao confirmar o estado da inscrição estadual do alienante na data da aquisição de mercadorias, ainda que se tenha verificado posterior baixa da inscrição estadual com efeitos retroativos. Igualmente e com maior razão, o adquirente de boa-fé, que pagou o ICMS devido nas etapas anteriores, não pode ser responsabilizado por irregularidade decorrente da baixa da inscrição estadual do alienante, com efeitos retroativos.
E são tão frequentes esses atabalhoados exageros que o STJ já decidiu, em múltiplas ocasiões, pelo afastamento dessas sanções, como exemplo: “À época da transação, o comprador estava regularmente cadastrado e, se posteriormente foi constatada irregularidade na sua constituição, não pode o vendedor, que realizou a transação de boa-fé, emitindo nota fiscal de produtor para fazer acompanhar a mercadoria, ser responsabilizado.”[1] Como se depreende, o STJ afasta a responsabilidade tributária por infrações quando sua aplicação tem como motivo irregularidade posterior da empresa controlada nas suas informações fiscais, em atenção aos princípios de proteção da confiança e da segurança jurídica. Assegura, pois, o limite do controle aos dados disponíveis ao tempo da operação. [2]
E como esses autos de infração “valiosos” passam a compor as contas de “passivo” tributário estatal, toda a Administração Tributária assume sua defesa como ao amparo de uma espécie de “princípio de salvabilidade (a qualquer custo) do auto de infração”. Com isso, ainda que totalmente indevido, o contribuinte vê-se aturdido por múltiplos mecanismos de garantia ou de “pressão fiscal”, como perda do direito às certidões negativas, de contratação com a Administração Pública, ameaças de condenações penais e outros. Tudo a levar o contribuinte ao pagamento da exação, ainda que indevida.
Esses supostos descumprimentos dos deveres instrumentais geram gravames que contrariam frontalmente o princípio da proibição de excesso, com multas exigidas com maior rigor que a própria obrigação tributária. É o caso da incompreensível multa de 30% do valor da operação, do estado de São Paulo, por qualquer tipo de descumprimento de obrigação acessória, que é mais onerosa do que a multa devida pelo não pagamento do ICMS (80% sobre o tributo devido).
As sanções pelo descumprimento de deveres instrumentais têm função repressiva e sancionatória, para punir e desestimular a prática de atos evasivos, no entanto, não podem servir como fonte de receitas tributárias, em substituição à arrecadação dos impostos.
A imposição de multas abusivas, sobretudo se decorrentes da inobservância de deveres instrumentais, viola frontalmente os princípios administrativos da razoabilidade e moralidade e do não-confisco. É chegado o tempo de revisão integral desses excessos de multas. Em nenhum lugar do mundo persistem sanções tão gravosas. São remanescentes dos tempos de inflação galopante e incontrolável. Nos dias atuais, isso não mais se justifica.
O artigo 112 do CTN, alinhado com os fundamentos constitucionais da pessoalidade das sanções, estabelece que, em caso de dúvida, a lei tributária deverá ser interpretada de modo favorável ao contribuinte, especialmente quanto à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão de seus efeitos (II) e à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação (IV), ademais da capitulação legal do fato (I) e da autoria, imputabilidade, ou punibilidade (III). Por conseguinte, a necessidade de identificar-se a natureza ou extensão dos efeitos do fato ilícito, da graduação da penalidade aplicável, da capitulação legal do fato ou da punibilidade vincula-se pelo artigo 112 do CTN, que determina que lei tributária deverá ser interpretada de modo favorável ao contribuinte. Não se diga, pois, que sempre há de prevalecer o artigo 136, do CTN, quanto à objetividade das sanções.
A atuação da Administração Tributária não pode desconsiderar a conduta de boa-fé do contribuinte e deve seguir o preceito entabulado pelo artigo 112, do CTN, norma geral vinculante para a aplicação da legislação tributária, além das garantias constitucionais, como tem reiteradamente decidido o próprio STJ. Tanto mais quando o contribuinte controla dados dos seus clientes ou fornecedores em conformidade com as informações geradas por cadastro gerado e alimentado pela própria Fazenda Pública, disponível ao tempo das operações, os quais davam como ativas e regulares as inscrições estaduais.
De outra banda, as divergências ou inconsistências de informações não podem gerar, por si só, punições do contribuinte se este promove os atos necessários ao pleno esclarecimento e nenhum prejuízo se evidencia para a Fazenda Pública.
A vedação ao efeito de confisco em matéria tributária é princípio constitucional que exige concretização, como o STF já assinalou nas mais diversas decisões nas quais considerou sempre sua aplicação às multas, como exemplo:[3] “ICM. Redução de multa de feição confiscatória. Tem o STF admitido a redução de multa moratória imposta com base em lei, quando assume ela, pelo seu montante desproporcionado, feição confiscatória. Dissidio de jurisprudência não demonstrado. Recurso extraordinário não conhecido.”[4] Portanto, a imposição de multa equivalente a 30% do valor da operação, quando não há imposto a pagar e o respectivo descumprimento evidencia-se a partir de meros erros escusáveis, que não trazem prejuízo ao Fisco, e mormente por fatos futuros ao fato jurídico tributário da obrigação acessória, afronta os princípios de proibição do excesso e da proporcionalidade, o que nos dias atuais requer repúdio, pela vedação de se utilizar tributo efeito de confisco, prevista no inciso IV, do artigo 150, da CF, o que se estende às multas.
Não percebem, os insaciáveis fiscos estaduais e suas fiscalizações que assim operam, o mal que geram para a ordem econômica, o desestímulo que isso promove sobre os bons contribuintes que buscam, a duras penas, cumprir a miríade de controles e obrigações acessórias transferidos, sem cerimônias, pela Administração aos particulares.
Como alude Klaus Tipke, “A insegurança institucional do Direito Tributário, a insegurança no planejamento, a permanente mudança de condições prejudicam a eficiência da economia nacional, sem que com isso se acrescente um único Cent à receita fiscal”.[5] Diz ele, com isso, que os tributos são o preço da proteção do Estado, para segurança institucional, necessária para a economia, na medida em que a tributação é participação na propriedade privada. A insegurança institucional da tributação engendra insegurança na economia como um todo, ao mesmo tempo em que transmite ao contribuinte a sensação de que a imposição se deixa arbitrariamente manipular, sem critérios racionais.
O Estado de Direito material requer justiça e, ao mesmo tempo, que a liberdade seja respeitada pela tributação. Diga-se o mesmo quanto à realização concreta dessa justiça, na determinação exata dos efeitos dos atos praticados pelos contribuintes no cumprimento das suas obrigações acessórias. Destarte, à proibição de excesso cabe a função de servir como bloqueio axiológico aos excessos oriundos do arbítrio, da escolha do meio mais gravoso ou de qualquer lei ou ato administrativo que supere os limites do suportável.Esse é o motivo pelo qual sanções tributárias devem ser objeto de urgente reforma tributária, à luz dos valores constitucionais. As autuações fiscais não podem deixar de observar a boa-fé, a ausência de prejuízos ao erário e o exame da correção no cumprimento das obrigações, numa praticabilidade coerente com os ditames da eficiência da boa administração privada dos interesses fazendários (decorrência da transferência de suas funções de controle).
[1] REsp 602.325/SP, Rel. Min. José Delgado, j. 16.03.2004, Primeira Turma, DJ 10.05.2004.
[2] REsp 112.313/SP, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, j. 16.11.1999, Segunda Turma, DJ 17.12.1999. REsp 122.553/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 16.11.2004, Segunda Turma, DJ 21.03.2005. REsp 175.204/SP, Rel. Min. José Delgado, j. 22.09.1998, Primeira Turma, DJ 23.11.1998. REsp 189.428/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 09.11.1999, Primeira Turma, DJ 17.12.1999. REsp 90.153/SP, Rel. Min. José Delgado, j. 26.11.1996, Primeira Turma, DJ 16.12.1996.
[3] AI 482281 AgR/SP, Ag.Reg. no Agravo de Instrumento, Relator: Min. Ricardo Lewandowski, Julgamento: 30/06/2009. Órgão Julgador: Primeira Turma, DJe-157.
[4] RE 91707/MG, Recurso Extraordinário, Relator: Min. Moreira Alves. Julgamento: 11/12/1979. Órgão Julgador: Segunda Turma, DJ 29-02-1980. P. 975.
[5] TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito tributário. Tradução de Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Fabris, 2008. v. 1, p. 56;
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