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STF deve modular efeitos da súmula contra guerra fiscal

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Melo Guimarães Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.

12 de junho de 2012, 8h00

Spacca
Excelentíssimo Ministro Gilmar Ferreira Mendes,
Tomo a liberdade de lhe escrever esta carta aberta porque a imprensa divulgou que a Proposta de Súmula Vinculante 69 é da sua lavra.

Bem sei que o texto final deverá ser aprovado pelo Plenário, motivo pelo qual estendo esta Carta aos demais ministros da Corte.

O ponto central é a redação que foi proposta e a falta de modulação dos efeitos dessa súmula, caso aprovada como proposto.

A redação que foi disponibilizada para debate tem o seguinte teor: “Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do Confaz, é inconstitucional”.

O problema não está no escopo da Proposta de Súmula Vinculante, que é o de acabar com a guerra fiscal, mas no eventual efeito retroativo que pode ser dado a esta interpretação. Caso não sejam modulados os efeitos da Súmula Vinculante, a insegurança jurídica será ampliada, uma vez que todos os estados da Federação vêm praticando este tipo de renúncia fiscal para atração de investimentos. No começo de 2011, de uma só assentada, o STF declarou inconstitucionais leis de sete estados, em 14 ADIs — e o rol de normas estaduais impugnadas não parou por aí.

Se não houver modulação, os estados serão obrigados a cobrar o ICMS das empresas que tiverem gozado dos benefícios com amplo espectro retroativo, e isso acarretará a insolvência ou a falência de um contingente enorme delas, com reflexos trabalhistas, societários, fiscais e na balança de comercio exterior brasileira — neste último caso envolvendo as empresas cotadas em bolsa de valores estrangeiras.

Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade devem respeitar a segurança jurídica das relações havidas com terceiros de boa-fé. A retroação, fruto da declaração de inconstitucionalidade de uma norma, não pode desfazer os efeitos jurídicos concretizados ao longo do tempo com terceiros que tenham obedecido ao que manda a lei, apenas posteriormente declarada inconstitucional.

Em alguns casos a retroação pode se revestir da mais absoluta inconstitucionalidade, mormente quando for longo o interregno de tempo entre a vigência da norma e a declaração de sua invalidade. Quanto mais dilargado este prazo, maior a chance de existirem situações consolidadas cuja reversibilidade se tornará mais difícil e injusta.

Afinal, as empresas (terceiros) que apenas cumpriram o que a lei ordenava — e não podem ser penalizadas por terem cumprido exatamente o que a lei ordenava —, uma vez que ela estava em pleno vigor e projetando seus efeitos sobre a sociedade.

Mauro Cappelletti[1], com sua proverbial precisão, formula a seguinte hipótese, que cabe à fiveleta na análise do tema aqui sob análise: “Esta doutrina parte, como foi dito, do pressuposto de que a lei inconstitucional seja, ab origine, nula e ineficaz. Isto significa que todo ato — privado, como por exemplo, um ato administrativo ou uma sentença — que tenha se fundado nessa lei (que, repito, é uma lei nula e ineficaz), está destituído de uma válida base legal. Pode acontecer, porém, que uma lei tenha sido, por muito tempo, pacificamente aplicada por todos, órgãos públicos e sujeitos privados; por exemplo, pode acontecer que um funcionário, eleito ou nomeado com base em uma lei muito tempo depois declarada inconstitucional, tenha longamente atuado em sua função; ou que o Estado, por muitos anos, tenha arrecadado um certo tributo ou, também, que uma pessoa tenha recebido uma pensão ou celebrado determinados contratos, sempre com base em uma lei posteriormente declarada inconstitucional, e assim por diante. Quid, então, se em um certo momento, uma lei, por muitos anos pacificamente aplicada, vem a ser depois, considerada e declarada inconstitucional, com pronunciamento que tenha, segundo a doutrina aqui pressuposta, efeitos retroativos?”

Observa-se que a situação acima descrita por Cappelletti é a mesma que nos defrontamos no Brasil, no caso em apreço. Os benefícios fiscais foram concedidos pelos estados desde há muitos anos, e muitas relações socioeconômicas foram criadas e consolidadas ao longo desse período. Repetindo a pergunta por ele formulada, o que deve ser feito, caso aplicada integralmente a teoria dos efeitos retroativos em situações como estas?

A resposta nos é fornecida pelo próprio Cappelletti: “A resposta a esta pergunta tem sido, especialmente na recente jurisprudência das cortes norte-americanas também pelo eficaz estímulo do realismo jurídico que demonstrou que a Constituição é um living document, sujeito a evoluções de significado, pelo que aquilo que em um certo momento de tal evolução pode ser conforme ou contrário à Constituição, pode não sê-lo ou ainda não sê-lo mais em uma fase diversa da própria evolução inspirada em critérios de grande, e, a meu ver, em geral oportuno pragmatismo e elasticidade, e critérios praticamente não muito dessemelhantes, pelo menos em parte, têm sido seguidos, agora, pela lei ou pela jurisprudência, quer na Itália, quer na Alemanha. (…) Em matéria civil, ao invés, e, às vezes, também em matéria administrativa, se tem preferido respeitar certos efeitos consolidados, produzidos por atos fundados em leis depois declaradas contrárias à Constituição; e isto em consideração ao fato de que, de outra maneira, se teriam mais graves repercussões sobre a paz social, ou seja, sobre a exigência de um mínimo de certeza e de estabilidade das relações e situações jurídicas.

Ou seja, é adequado, em nome da segurança jurídica — ou, como usa Cappelletti, da paz social —, que certos efeitos consolidados não sejam afetados por esta retroação.

Não se está aqui a advogar a existência de direitos adquiridos contra a Constituição. Não, caro ministro — a tese é outra. É a da limitação da retroação às situações jurídicas consolidadas, onde deve haver respeito à segurança jurídica em prol da estabilidade das relações sociais.

Estes efeitos impróprios já foram acatados pelo STF em várias ocasiões, destaca-se, por sua profundidade, o vetusto caso relatado pelo ministro Leitão de Abreu, que à época compunha a 2ª Turma juntamente com os ministros Xavier de Albuquerque, Cordeiro Guerra e Moreira Alves (RE 79.343-BA, 31/5/77). Nele, asseverou o ministro relator: “A lei inconstitucional é um fato eficaz, ao menos antes da determinação de inconstitucionalidade, podendo ter consequências que não é lícito ignorar. A tutela da boa fé exige que, em determinadas circunstâncias, notadamente quando, sob a lei ainda não declarada inconstitucional, se estabeleceram relações entre o particular e o poder público, se apure, prudencialmente, até que ponto a retroatividade da decisão, que decreta a inconstitucionalidade, pode atingir, prejudicando-o, o agente que teve por legítimo o ato e, fundado nele, operou na presunção de que estava procedendo sob o amparo do direito objetivo.”

Ou seja, protege-se aquele que agiu acreditando na legitimidade da legislação que se encontrava vigente à época da fruição de seus efeitos. Quanto mais tiver demorado a retirada da norma do sistema jurídico, maior sua possibilidade de gerar efeitos concretos permanentes, de difícil reversibilidade.

A lógica aqui exposta tem correlação direta com os direitos fundamentais, conforme nos ensina Klaus Tipke: “El Derecho tributario no puede prescindir de la Ética ni de la Moral (…) Al positivismo y nihilismo fiscales aún no superados por completo debe oponerse uma ética fiscal del Estado y de los contribuyentes; entre otros motivos, em atención a los derechos fundamentales, que fijan um límite mínimo indisponible a la sociedade pluralista (…) Pero em la Ética jurídica el camino debe conducir idealmente desde el principio abstracto de la Justicia hasta los últimos detalles de um Código Legal. Lo secundário no debe preceder a lo principal.[2].

Enfim, dentre os direitos fundamentais está o da segurança jurídica, que protege aquele que obedeceu aos ditames da lei que estava vigente, e que só posteriormente foi declarada inconstitucional. Para conseguir finalizar a guerra fiscal é imprescindível que os fatos jurídicos já consolidados sejam respeitados, o que só pode ocorrer através da adoção de efeitos futuros a esta decisão/Súmula, e não retroativos ou imediatos.

A existência de efeitos concretos advindos da época em que a lei estava vigente é um limite à retroatividade das normas declaradas inconstitucionais.

Portanto, caro ministro, visando colaborar com esta Egrégia Corte em seu esforço de combater a guerra fiscal, mas também orientado pelo princípio da precaução que visa reduzir a insegurança jurídica que poderá advir e a multiplicidade de conflitos que venham a abarrotar este já congestionado tribunal, sugere-se que o texto da Proposta de Súmula Vinculante 69 tenha seus efeitos modulados, tendo em vista razões de segurança jurídica, a fim de que ela só tenha eficácia a partir de 1º dia posterior a 12 meses de sua edição, o que permitirá às empresas afetadas pelas cobranças que advirão dos estados organizar sua atividade empresarial.


[1] O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado. Porto Alegre, Sergio Fabris Editor, 1984, págs. 122/124.
[2] TIPKE, Klaus. Moral tributaria Del estado y de los contribuyentes. Tradução de Pedro M. Herrera Molina. Madrid: Marcial Pons, 2002. P. 25, 28 e 29. 

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