Jurisdição constitucional

Não é papel do Supremo analisar ação penal originária

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3 de julho de 2012, 8h00

Quem poderia imaginar que a Suprema Corte seria colocada na berlinda diante de julgamento originário de um caso penal? Quem poderia, dentre tantos estudos aqui e fora do Brasil, imaginar que a respeitabilidade do Tribunal Maior pudesse ser questionada a partir de conjecturas ligadas a comportamentos de seus integrantes (quer na forma de investidura e o que isso pode significar em termos de voto no colegiado, quer em manifestações nos autos, quer — o que é pior — fora deles) nas proximidades do julgamento, repita-se, de um caso penal originário? Uma ação penal originária deve gerar tanta celeuma em torno do STF e seus integrantes? Claro que não.

Às voltas do tal julgamento da Ação Penal 470, pode-se tirar proveito da visão afastada do caso para dizer que é a hora e a vez de se pensar em importante questão para a conformação funcional do STF.

Claro que a aplicação da mudança aqui prevista não se daria no curso do anunciado julgamento, mas, se é certo que é cobrando o que fomos que nós iremos crescer (Milton Nascimento), no meio de tantas ásperas colocações dentro e fora da Corte e de tantas ponderações relevantes dos mais diversos autores e matizes, não se deu atenção ainda à urgente reformulação da competência originária do Supremo Tribunal Federal.

E é isso o que aqui se propõe, pois não tem sentido se esperar do Tribunal Maior do país que se comporte como um tribunal instrutório — ainda que se tente contornar essa óbvia desconformidade com o uso das tais “cartas de ordem” (art. 21-A do Regimento da Corte), delegativas a juízes auxiliares para cumprirem os atos de instrução diversos na ação penal originária.

Ora, mesmo com o entendimento que permita ver nas “cartas de ordem” uma manobra que permita chegar ao Supremo a colheita das provas em instrução, espera-se muito mais da Suprema Corte, com o perfil que tem seguido a partir da Emenda Constitucional 16, de 1965 (com a representação de inconstitucionalidade como primeiro passo rumo à jurisdição constitucional abstrata e concentrada) mas sobretudo a partir de 1988 (com a conformação próxima a de Tribunal Constitucional e o complexo sistema de Jurisdição Constitucional), do que seu comportamento como órgão julgador de ações penais.

O que se espera do Supremo é que seja o guardião da Constituição, não um tribunal penal que julgue causas originárias, até porque uma ação penal originária (seja ela qual for) não cabe no exercício da jurisdição constitucional. A propósito, o próprio rol de competências previstas no artigo 102 da Constituição Federal deixa ver que mesmo outras questões originárias, como por exemplo, conflitos federativos, conflitos entre órgãos de soberania nacional e internacional e extradição, essas sim, têm contorno constitucional próprio e justificam a voz do Supremo originariamente. Mas não, até com a dificuldade verificada constrangedoramente dia a dia de se julgar caso penal, com meandros que vão desde a instrução do feito — forçadamente delegada a outros juízes, o que não é pouco grave — ao aparato da Corte para se dedicar prevalentemente a este assunto em data iminente, sem fundo Constitucional direto.

A proposta de se retirar da competência originária do Supremo Tribunal Federal o julgamento originário de demandas que não se integrem no rol típico de jurisdição constitucional (como é o julgamento de caso penal), além de desafogar o tribunal e lhe oportunizar dar a atenção ao exercício da Jurisdição Constitucional (seja difusa, seja concentrada, seja abstrata ou concreta), abre espaço inclusive para que não se cometa uma grave injustiça: que não se fira o direito daqueles, hoje lá julgados originariamente, ao duplo grau de jurisdição.

Afinal, poderá o Supremo rever, em grau de recurso (isto é: ao exercício de Tribunal Constitucional soma-se — como se sabe ser o caso no Brasil em outras hipóteses — o de Tribunal de Cassação), rever a decisão proferida pelo órgão julgador do caso, com as filtragens que decorrem do exercício específico da Jurisdição Constitucional.

O importante disso é que, além de se aproximar o Supremo da tarefa mais importante de proteger a Constituição (e não de dizer se fulano ou sicrano é culpado ou inocente, se agiu com dolo ou culpa, se há prova nos autos ou não — tudo isso originaria e irrecorrivelmente), prestigia-se também a dicção do Pacto de San José da Costa Rica, aqui vigente (na lição que ainda se ouve do próprio STF, adotado no Brasil desde 1992 com status supralegal) do artigo 8º, 1, h. Afinal, a ponderação não decorre de razões de mérito de julgamento num ou noutro tribunal, se será bom ou ruim aos interesses dos jurisdicionais, mas sim de razões de se garantir a todo e qualquer cidadão o direito ao recurso.

Enfim, não é que o julgamento de causa penal originária, seja qual for, no STF seja aprioristicamente bom ou ruim do ponto de vista da apreciação jurídica dos fatos. O que é, de fato, ruim, é o funcionamento da Corte para essas matérias, que não devem integrar o rol de matéria a ser analisada originariamente por nossa Suprema Corte. O exercício da Jurisdição Constitucional é muito mais significativo e convidativo a que a Corte se firme como Tribunal Constitucional e, quando muito, como Corte de Cassação. 

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