Diário de Classe

Uma ponte entre a teoria e a prática do Direito

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4 de agosto de 2012, 7h12

Diário de Classe. Todos sabem o que é. Aquele caderno onde se assinala a freqüência, onde se lançam as notas e também se fazem alguns apontamentos. Partindo desta idéia e aproveitando o início de mais um semestre letivo é que gostaríamos de apresentar a nova coluna a ser publicada na ConJur, que será escrita e compartilhada por nós, André Karam Trindade e Rafael Tomaz de Oliveira.

Qual a proposta? Não se trata de lições, de maneira alguma. A ideia consiste em abordarmos questões relativas ao ensino jurídico, especialmente as chamadas “disciplinas propedêuticas” — introdução ao estudo do direito, filosofia, sociologia, história, antropologia, argumentação, hermenêutica, etc. —, problematizando a tradicional distinção (metodológica) que comumente se faz entre teoria e prática, isto é, o abismo cada vez mais profundo entre o direito ensinado nos livros e aquele aplicado nos foros e tribunais.

Para tanto, sob uma perspectiva pragmática e de caráter interdisciplinar, este será o espaço próprio para analisarmos o teor de decisões polêmicas, discutirmos questões controversas formuladas nos concursos públicos; compartilharmos experiências acadêmicas, tanto docentes quanto discentes, como, por exemplo, o drama de escrever monografias, dissertações e teses; comentarmos a publicação de livros e artigos; debatermos acerca dos temas apresentados nos principais eventos jurídicos promovidos no país e no exterior; enfim, refletirmos a respeito do modo de produção do direito no Brasil.

Também não nos furtaremos, em hipótese alguma, de criticar a metodologia convencional da pesquisa jurídica; de denunciar as picaretagens realizadas por muitos cursos de graduação em direito; e, obviamente, de aplaudir, destacar e difundir aquilo que há de bom…

Isto tudo sem, contudo, “descomplicar”, “esquematizar”, “simplificar” ou, ainda, “plastificar” o direito, que é um fenômeno altamente complexo na sociedade contemporânea e assim, portanto, merece ser tratado.

E o público? Estudantes, professores, pesquisadores, concursandos, profissionais e todos os interessados em re-pensar o direito sob um viés eminentemente crítico. Muito embora, nos dias de hoje, isto pareça ter se tornado uma espécie de “lugar-comum”, ainda são poucos aqueles que se insurgem, de fato, contra o sentido comum teórico predominante nas salas de aula e, especialmente, nos tribunais.

Na verdade – e é importante que isto fique claro –, acreditamos ser fundamental resgatar o “papel da doutrina”, tão minimizado pelo ministro Humberto Gomes de Barros (falecido no mês passado) no famoso julgamento do AgReg no EResp n° 279.889-AL. Afinal, compete sobretudo a ela, a doutrina, a promoção do “constrangimento epistemológico” proposto pelo professor Lenio Streck, que, aliás, foi quem primeiro se insurgiu contra o denominado solipsismo judicial (STRECK, L. O que é isto – decido conforme minha consciência. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011)

Como se sabe, a universidade é o lugar privilegiado para a realização desta importante tarefa. Todavia, nos últimos anos, é cada vez mais comum observar o fortalecimento de uma política de administração dos cursos de direito que podemos denominar “lógica Walmart”. Isto nos remete àquilo que Ernildo Stein chama de empresamento da universidade. De pronto, um alerta: ninguém irá negar que, atualmente, uma universidade deve sobreviver enquanto empresa. Em muitos casos, a situação de ajustes financeiros se torna de tal modo dramática que as receitas geradas pelas mensalidades representam o fio de sobrevivência dessas mesmas universidades (situação que atinge, inclusive, grandes centros de pesquisa). O “x” da questão, portanto, não é se – literalmente – a universidade se organiza como uma empresa. O problema é de ordem simbólica: aparece quando desse caráter estrutural, inevitável, se desdobra uma “lógica da empresa” que subjuga o próprio “espírito universitário”. Ou seja: não é a formação do ser humano – objeto primevo da universidade – aquilo que importa, mas, sim, as possibilidades lucrativas que podemos obter com esse “negócio”. E são exatamente as disciplinas de formação humanística que representam o élan daquilo que se chama universidade. Logo, as grandes vítimas dessa radicalização do empresamento são as conhecidas humanidades (o mesmo E. Stein nos lembra uma frase de T. Hölscher e M. Ursinus: “Quem hoje poupa milhões nas ciências humanas, irá pagar amanhã bilhões para o saneamento da sociedade”).

A corrupção do papel das universidades e a implantação desse puro empresamento é que o nos remete ao walmartismo jurídico: os cursos são administrados na perspectiva de aumento dos lucros com redução dos custos, sempre garantida a total satisfação do freguês. O “serviço”, neste caso, pode até – mas não necessariamente é – ser prestado com menor custo para o consumidor, mas os lucros estão garantidos pelo menor custo que o curso terá. É preciso que esteja garantida a “administrabilidade” do empreendimento. Dentre os mais diversos estratagemas do walmartismo, surge a conhecida e deletéria prática de alocação de docentes nas mais variadas disciplinas, sem que haja entre eles qualquer relação de afinidade pela via da pesquisa. Note-se: um docente = duas ou mais disciplinas (no mais das vezes, em áreas completamente diferentes!). Evidentemente, esse é um ótimo negócio: são contratados menos professores, porém é mantido o mesmo número de disciplinas. Assim, um docente cuja formação em sede de mestrado e doutorado (quando a titulação existe, é claro) – bem como a sua produção acadêmica (projetos de pesquisa, publicações, apresentações de trabalho, etc.) – está vinculada área do direito privado, com ênfase em direito civil, acaba lecionando direito constitucional (ou vice-versa). Não é necessário muito esforço para perceber que este tipo de postura não poderá produzir bons resultados (ao menos sob a perspectiva acadêmica…). E mais: quais são, em maior grau, as disciplinas que alocam docentes de outras áreas? Exatamente: as propedêuticas! Não raro, a figura do “quebra-galho” – e aqui estamos pensando naqueles cursos que são oferecidos fora dos grandes centros, onde o recurso humano é escasso – sempre aparece para completar o quadro docente e lecionar disciplinas como Introdução ao Estudo do Direito, Filosofia do Direito, Sociologia Jurídica, Teoria Geral do Estado, História do Direito, etc.

De todo modo, é preciso observar a existência de alguns indícios que apontam para a mudança desta situação. O lado negativo dessa mudança, todavia, é que ela está ocorrendo numa perspectiva de imposição, isto é, de cima para baixo – dos concursos oficiais para as instituições de ensino –, e não o contrário. Sem embargo, o movimento desencadeado, a partir de 2009, pela Resolução n° 75 do Conselho Nacional de Justiça introduziu uma reivindicação antiga daqueles que apontavam a necessidade de reforma do ensino jurídico praticado no Brasil: a incorporação de conteúdos abordados por essas mesmas disciplinas propedêuticas – também chamadas de disciplinas de formação geral e humanística – nos exames da magistratura (que, desde a edição da referida resolução, encontra-se unificado nacionalmente no que tange à sua formatação geral). Inúmeros concursos para outras carreiras jurídicas também seguiram o exemplo da magistratura. E, recentemente, o Conselho Federal da OAB noticiou a inclusão desses conteúdos de “formação humanística” nas provas do Exame de Ordem, a partir de 2013.

Trata-se, sem dúvida alguma, de um passo importante na formação de profissionais – e não de meros “operadores” (sic) – do Direito. Resta saber, entretanto, se estamos capacitados e suficientemente preparados para oferecer um ensino de qualidade voltado à produção de um discurso jurídico autêntico e crítico.

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