Battisti fala à ConJur: "Sou perseguido"
8 de junho de 2011, 7h00
Em 1981, Cesare Battisti fugiu da cadeia na Itália, onde cumpria pena por associação subversiva e posse ilegal de arma. Exatos 30 anos depois, o ex-militante italiano de extrema esquerda aguarda no Brasil, com a ajuda de anti-depressivos, que o Supremo Tribunal Federal decida seu futuro: se viverá livre no país ou voltará para uma prisão italiana, agora para cumprir uma pena de prisão perpétua a que foi condenado a revelia, em 1989, pelo assassinato de quatro pessoas. Pelo tratado de extradição, ele poderá cumprir pena máxima de 30 anos, descontados os anos que já passou na prisão aqui ou em outros países.
O italiano nega os crimes: “Nunca matei ninguém”. O ex-militante atribui o empenho do governo da Itália para extraditá-lo ao fato de não ter se calado sobre um capítulo da história que as autoridades de seu país, segundo ele, querem apagar. “O Estado italiano matou centenas de pessoas em atentados, sem contar as execuções sumárias dos militantes de extrema esquerda na rua, na cama, dormindo. Todos os dias havia mortos”, disse em entrevista exclusiva à revista Consultor Jurídico.
Cesare Battisti recebeu a ConJur no Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília, onde está preso há quatro anos. Com uma camisa branca limpa, mas surrada, calça jeans e sandálias Havaianas azul com a bandeira do Brasil, falou sobre os anos de chumbo na Itália, as supostas falhas nos processos nos quais foi condenado, a perseguição de que se diz vítima, o julgamento de sua extradição pelo STF, terrorismo, luta armada, a expectativa de retomar a vida fora das grades, entre outras coisas.
Muito ansioso e, como bom italiano, gesticulando com vigor, o ex-militante afirmou que não considera a possibilidade de ser extraditado e ficou frustrado por não ter sido posto em liberdade depois que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu mantê-lo no Brasil. Para ele, o Supremo já decidiu que a última palavra na extradição é do presidente da República e sua expectativa é a de que confirme isso no novo julgamento.
Em novembro de 2009, por cinco votos a quatro, os ministros do STF decidiram que Battisti não sofrera perseguição política em seu julgamento à revelia na Itália e que, por isso, o refúgio concedido pelo então ministro da Justiça, Tarso Genro, era ilegal.
O pedido de sua extradição feito pela Itália foi autorizado. No mesmo julgamento, também se decidiu que a decisão final de efetivar ou não a extradição é do chefe do Poder Executivo. Ou seja, o presidente da República pode se negar a extraditar, mas deve observar as previsões do tratado firmado com o país que requereu a extradição.
No último dia de seu governo, o presidente Lula negou a entrega com base em dispositivo mencionado pelo ministro Eros Grau no primeiro julgamento, que prevê a recusa de extradição nos casos em que a condição pessoal do indivíduo possa gerar o risco de que a sua situação venha a ser agravada no Estado que requer a extradição. A Itália não aceita a decisão de Lula e pede que o Supremo a invalide.
Na próxima quarta-feira (8/6), os ministros analisarão se a Itália tem legitimidade para questionar o ato do presidente perante o STF e, caso entendam que sim, se a decisão de Lula é compatível com os termos do tratado firmado entre Brasil e Itália.
Battisti conta que ouviu o julgamento de sua extradição em 2009, sintonizado na Rádio Justiça. Mas garante que desta vez não repetirá a experiência. O que lhe causa maior indignação é quando recebe a pecha de terrorista. “Eu me sinto caluniado. Esses órgãos de imprensa seriam até passíveis de denúncia por calúnia porque em nenhum momento nos autos do processo na Itália aparece a palavra terrorista”, protesta.
Leia a entrevista:
ConJur — Como o senhor se sentiu quando viu as notícias de que esteve muito próximo da liberdade no começo de maio?
Cesare Battisti — Eu acreditei porque, aqui, me agarro a toda esperança. Eu acreditei, efetivamente, que depois do parecer do procurador-geral da República, o STF pudesse resolver essa situação que já virou uma coisa absurda.
ConJur — Agora, a situação será resolvida. O Supremo analisará se a decisão do ex-presidente Lula, de mantê-lo no país, respeitou o tratado de extradição firmado entre Brasil e Itália. Qual a sua expectativa?
Battisti — O próprio Supremo decidiu que a última palavra é do presidente da República, desde que se respeitasse o tratado de extradição. Isso foi feito. O presidente Lula se baseou no artigo 3º, letra F, do tratado, que diz que o país pode negar a extradição se tiver razões para supor que a pessoa terá sua situação agravada. Então, eu espero que o STF venha confirmar o que ele próprio decidiu.
ConJur — O senhor considera a possibilidade de ser extraditado?
Battisti — Não considero. Outros italianos na mesma situação que eu, que foram acusados dos mesmos crimes, estão livres aqui no Brasil. A Itália também pediu a extradição deles e o mesmo STF negou. Que diferença existe entre Cesare Battisti e os outros italianos que tiveram a extradição negada?
ConJur — Devolvo a pergunta: que diferença existe?
Battisti — Está claro que é uma perseguição. Isso não é só uma impressão na minha consciência. Por que eu, entre as centenas de refugiados no mundo, na França, no Brasil, no México, na Nicarágua? Por que eu? Não é porque a minha situação seja mais grave. Há outras pessoas que tem responsabilidades políticas muito maiores.
ConJur — Por que o senhor?
Battisti — Porque eu fui à mídia, era conhecido por ser escritor e aparecia sempre na imprensa, na televisão. Nunca parei de denunciar o que aconteceu na Itália durante os anos de chumbo. Não desisti de denunciar que existem pessoas que estão apodrecendo nas cadeias italianas há 40 anos ou mais. Nunca deixei de denunciar os assassinatos da repressão, as execuções sumárias, as torturas. Essa é a razão pela qual eu comecei a ser perseguido pelo governo italiano, principalmente depois de 2000, quando eu estava na França e tinha uma imagem pública que podia incomodar muito a Itália.
ConJur — Quando compara seu caso a outros, o senhor se refere a italianos que cometeram crimes políticos. Mas o Supremo, ao anular seu refúgio concedido pelo ex-ministro da Justiça Tarso Genro, decidiu que seus crimes foram crimes comuns…
Battisti — Jamais cometi crimes comuns. Fui um militante político e não teria sido condenado à prisão perpétua se a acusação não fosse por crimes políticos. No pedido de extradição, o governo italiano cita dezenas de vezes “insurreição armada contra os poderes do Estado”. Tem caracterização mais política do que isso? Não faz sentido a Itália me condenar por crimes claramente políticos e o Brasil, paradoxalmente, me extraditar por crime comum.
ConJur — Parte da mídia o classifica como terrorista. O senhor cometeu atos de terrorismo?
Battisti — Eu me sinto mal, caluniado, quando leio ou assisto reportagens que me chamam de terrorista. É uma coisa que eu não consigo digerir. Esses órgãos de imprensa seriam até passíveis de denúncia por calúnia porque em nenhum momento nos autos do processo na Itália aparece a palavra terrorista. Existe no processo o termo subversão, não terrorismo. Usar o termo terrorista nesse contexto é uma ilegalidade. Deveriam pelo menos saber a diferença entre luta armada e terrorismo. Não são coisas iguais.
ConJur — Qual a diferença?
Battisti — Normalmente, o terrorismo é uma reação de grupos de poder para pressionar um povo, uma nação. No terrorismo, se fazem atentados indiscriminados onde se matam civis. Isso não existiu na Itália. Na Itália existiram, é verdade, atentados. Mas foram atentados contra pessoas bem precisas. Não foram ações indiscriminadas. Na Itália não se usaram bombas. As bombas na Itália foram usadas pelos serviços paralelos secretos de Estado. E aí mataram civis. Estouraram bombas nas manifestações, nos bancos, nos trens. Essas foram ações de Estado. Não há um exemplo sequer de bombas que tenham matado civis colocadas pela guerrilha italiana. Defender isso é mentira, má-fé, ignorância, ou tudo junto. Por isso fico indignado quando sou tratado como terrorista. Não existiu terrorismo de extrema esquerda na Itália. Existiu terrorismo de extrema direita, juntamente com o Estado, com os serviços sujos, que se chamam de serviço paralelo do Estado italiano. O mesmo serviço que tentou me seqüestrar depois que eu fugi da França.
ConJur — Quando o senhor cita o tratado de extradição, fala de seu processo, desce a minúcias. Estudou muito seu caso no tempo em que está preso aqui?
Battisti — Na verdade, percebi a dimensão do meu caso só aqui no Brasil. Foi aqui que descobri que fui condenado à revelia quando estava no México. Também descobri que a Justiça italiana falsificou documentos. Eu tinha sido processado na Itália e fui condenado por ação subversiva. Não sabia da existência de outros processos por homicídios. Foi no Brasil que eu descobri que meu caso não era como os outros. Meu caso se politizou porque querem fazer de mim o bode expiatório dos anos 1970. Alegam que eu era uma liderança ameaçadora. Eu era muito jovem naquela época, sem condições de ser o líder que o governo italiano alega. Também não fundei os PAC como muitos sustentam.
ConJur — Quantos anos o senhor tinha quando foi para a luta armada?
Battisti — Eu comecei a militar em movimentos de esquerda com 16 anos. Tinha pouco mais de 20 anos quando militei nos PAC. Nunca fui uma liderança. Por isso insisto que o processo de extradição é uma perseguição da Itália, que nunca quis admitir o que aconteceu lá nos anos de chumbo, sempre escondeu os milhares de presos políticos e todas as ações da repressão. A intenção das autoridades italianas é transformar a minha imagem de exilado, refugiado político, na de um bandido comum. Aí conseguirão virar o capítulo dos anos de chumbo na Itália com a falsa imagem de que só houve criminosos comuns.
ConJur — Mas o senhor foi condenado por quatro homicídios. Há testemunhas nos processos…
Battisti — Os processos têm declarações sobre declarações, umas contradizendo as outras. Por exemplo, me condenaram pelo assassinato de Sabbadin [O açougueiro Lino Sabbadin foi morto em fevereiro de 1979]. O primeiro delator deste processo, junto com o procurador [da República em Milão] Armando Spataro, que chefiava todo o esquema de tortura na região de Milão e hoje é o herói antiterrorismo, me acusou de executar o crime. Depois, deram nova identidade para ele e o mandaram para o exterior, porque assim é que as coisas funcionam na Itália. Alguns meses depois, prendem outra pessoa que, sob tortura, confessa o crime. Aí precisavam arrumar as duas versões. Chamam a pessoa de volta e ela diz que era a motorista da ação e não assassinou Sabbadin. Mais alguns meses depois, prendem uma mulher que diz que ela era a motorista. Então, mudam de novo as versões e me acusam de dar cobertura à ação. Na verdade, não conseguiram demonstrar qual foi meu papel neste crime, pelo simples fato de que eu não participei. Mas fui condenado por este homicídio. Existem pelos menos quatro ou cinco versões diferentes, montadas conforme o passar dos anos, para acomodar as intenções do procurador Spataro, que foi o arquiteto de toda a repressão na Itália.
ConJur — Todos os processos foram montados?
Battisti — Fui condenado pelo assassinato do policial Andrea Campagna [morto em abril de 1979], agente da polícia secreta política. Esse atentado foi feito em frente a um banco. Há testemunhas, que trabalhavam no banco, que disseram que quem atirou no policial era uma pessoa alta. Durante as audiências, testemunhas disseram: “Era um homem loiro e tinha mais de 1,90m”. Eu não chego a 1,70m e loiro não sou. Mas o procurador disse na audiência que eu costumava usar botas com salto. Convenhamos, 20 centímetros de salto alto e loiro…
ConJur — O senhor também é acusado de executar pessoalmente o chefe dos guardas da prisão de Udine, Antonio Santoro, em junho de 1978…
Battisti — Santoro era o chefe da prisão e foi acusado de torturar presos. Mas as testemunhas deste caso, vários agentes penitenciários e outros operários de uma obra que trabalhavam em frente ao presídio, assistiram à execução do Santoro e disseram que foi uma mulher que atirou contra ele. Depois, efetivamente, essa mulher confessou o crime, cumpriu pena e já está em liberdade. Você se dá conta do absurdo desta situação? Há pessoas que estão pagando e outras que já pagaram pelos mesmos crimes que me imputam a autoria. Mas para me condenar neste caso o procurador afirmou: “Era o Cesare Battisti com uma peruca”.
ConJur — Mas o senhor era do grupo. Não teve qualquer forma de participação ou conhecimento dos assassinatos?
Battisti — Quando esses atentados foram executados pelos PAC eu já tinha deixado a organização. Eu saí justamente porque o princípio número um dos PAC, quando foi fundado, era o de não atentar contra a vida humana. A organização foi fundada por ex-militantes das Brigadas Vermelhas e outras organizações. Então, quando os PAC legitimaram o sequestro e a morte de Aldo Moro, que foi executado pelas Brigadas Vermelhas, eu deixei o grupo junto com muitos outros militantes.
ConJur — De qualquer forma, o senhor participou da luta armada…
Battisti — Continuei militando depois do assassinato de Aldo Moro, mas fora dos PAC.
ConJur — Qual foi sua participação na luta armada?
Battisti — Eu organizava lutas em toda zona sul de Milão. Organizei o que chamávamos de expropriação proletária, que eram assaltos, para financiar a luta. Defendíamos o direito à moradia, redução dos valores de aluguel, eletricidade, telefone… Ocupávamos prédios vazios para garantir lugar para famílias que não tinham onde morar. Fizemos manifestações para a reforma da saúde, reforma universitária, em defesa do feminismo, do direito ao aborto. Nestes atos, havia enfrentamentos. Combatíamos o trabalho no mercado negro, que fazia as pessoas trabalharem sem carteira ou qualquer direito. Havia muita gente explorada, muitos acidentes de trabalho com mortes, inclusive. Nesta época, fábricas da Itália, mesmo as grandes, amontoavam trabalhadores em porões, no subsolo da periferia, sem qualquer condição decente de trabalho. Então, o que nós fazíamos? Ocupávamos esses lugares, tirávamos todos os trabalhadores de lá e queimávamos a fábrica. Mas uma coisa é certa: nunca matei ninguém!
ConJur — O senhor foi condenado por algum destes crimes?
Battisti — Sim. Por associação subversiva e posse ilegal de arma, em 1979.
ConJur — Os processos por homicídio vieram depois?
Battisti — Sim, quando eu já estava no México. Nesta época, começo da década de 1980, começou a repressão forte, as torturas. Para usufruir a delação premiada, os delatores acusavam as pessoas que estavam fora do país, porque era mais fácil e menos perigoso. Foi o que aconteceu com o meu caso. Eu estava fora da Itália, mas ainda incomodava o governo italiano porque falava e escrevia sobre o que se passou lá.
ConJur — Muitos dizem que o senhor tenta criar uma teoria da conspiração para se inocentar dos crimes…
Battisti — O que eu digo é que há perseguição. Como dizer que não há perseguição? As pessoas que defendem de maneira ferrenha minha extradição e tentam sujar meu nome vão contra a Procuradoria-Geral da República, contra o presidente da República e contra as evidências. A Itália tem poder. No Brasil existem 25 milhões de pessoas de origem italiana. Há personagens de origem italiana na mídia, com influência. A embaixada italiana usou tudo que estava ao seu alcance contra mim. A minha prisão em 2007 foi anunciada duas horas antes de eu ser preso. Quando eu cheguei à Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro já havia 50 jornalistas. A imprensa foi preparada contra mim.
ConJur — O senhor conseguiu a proeza de unir em favor da sua extradição revistas com linhas editoriais tão diferentes quanto Veja e CartaCapital.
Battisti — Há na imprensa amigos dos velhos stalinistas italianos do PCI (Partido Comunista Italiano), que eram nossos adversários na época. E há também amigos do procurador Spataro. Eles tomaram posição contra mim por isso. Paradoxalmente, os que mais querem as cabeças dos movimentos de extrema esquerda da época são os ex-PCI.
ConJur — Por quê?
Battisti — Porque nós tiramos o crédito deles. O PCI compartilhava o bolo com a Democracia Cristã na época. Eles dividiam o poder. Todos corruptos. A Itália estava apertada entre essas duas forças. Finalmente, quando o povo percebeu que não era mais representado, surgiram os partidos de extrema esquerda, de 1967 para frente. Seguidores destes partidos decidiram sair para a luta armada. A Polícia matava na Itália. Depois da morte de manifestantes por tantos anos, decidiu-se que era preciso também se armar. A repressão foi muito ruim para a Itália. Com o pretexto de combater a luta armada, o governo destruiu um grande movimento cultural, talvez o mais importante na Europa depois da Segunda Guerra Mundial. O próprio governo italiano declarou que a guerrilha na Itália envolvia, direta ou indiretamente, um milhão de pessoas. Houve 60 mil pessoas denunciadas e mais de 10 mil condenadas. É muito para um país como a Itália. E a Itália quis e continua querendo esconder isso. Esse movimento aconteceu em toda a Europa, na Itália talvez tenha durado mais tempo. Enquanto todos os países europeus anistiaram os crimes políticos para virar a página de sua história e seguir em frente, a Itália continua negando sua história.
ConJur — No Brasil, o Supremo reconheceu há pouco tempo a constitucionalidade da Lei da Anistia brasileira.
Battisti — A maior parte dos países da Europa fez isso. França, Alemanha, Suécia, Bélgica, Portugal, por exemplo. Porque depois de 1968 nasceram grupos armados em todos os países europeus. Todos os países aprovaram anistias nos anos 1980, porque eles reconheceram sua história. A Itália negou sempre. Por que negou? Porque o Estado italiano matou centenas de pessoas em atentados, sem contar as execuções sumárias dos militantes de extrema esquerda na rua, na cama, dormindo. Todos os dias havia mortos. A opinião pública nem reagia mais a isso.
ConJur — Mas havia mortos dos dois lados do conflito, não?
Battisti — Sim, mas morreram muito mais militantes do que agentes do Estado. O número de mortos a serviço da repressão não deve chegar a 10% do número de mortos dos militantes de esquerda. Só com um atentado em Bolonha mataram 83 pessoas, com mais de 200 feridos.
ConJur — O senhor assistiu ao primeiro julgamento de sua extradição no Supremo, em novembro de 2009?
Battisti — Ouvi o julgamento pelo rádio. Aquela pessoa não sou eu nem os fatos foram aqueles.
ConJur — O senhor ouvirá o julgamento quarta-feira?
Battisti — Não. Fiquei traumatizado e não quero passar por outra experiência assim.
ConJur — O senhor imaginou que seria o pivô de uma situação que quase causa uma crise diplomática entre Brasil e Itália?
Battisti — De jeito nenhum. Ainda hoje tenho dificuldades para assumir isso. Amigos e familiares até se queixam comigo. Dizem: “Você tem que tomar consciência que é assim”. Mas isso revela o interesse que move a Itália a me jogar na cadeia 32 anos depois dos fatos. Comigo na cadeia, o Estado poderá dizer que nunca existiu guerrilha na Itália, porque eu fui extraditado por crime comum. Essa é a vitória de todos os assassinatos, os massacres feitos pelo Estado. Porque, por esses crimes, ninguém foi condenado. Não tem uma pessoa condenada pelas centenas de assassinatos de militantes de extrema esquerda. Ninguém! Se eu calasse a boca, como todos os outros refugiados que se reciclaram, se integraram na sociedade, são empresários, empregados, têm comércio, nada disso estaria acontecendo comigo. Há pessoas refugiadas aqui no Brasil que têm muito mais responsabilidade do que eu no mesmo grupo, mas estão caladas. Então, elas estão nas ruas e eu, preso. A perseguição da Itália foi por causa das denúncias que fiz sobre o que aconteceu lá. Aí começaram os ataques desleais e sujos contra mim.
ConJur — Se o Supremo decidir em seu favor, o senhor pretende ficar no Brasil?
Battisti — Eu cheguei ao Brasil em 2004 para ficar, não para fugir. Nunca me escondi. Na verdade, cheguei aqui monitorado. Desde que desci no aeroporto de Fortaleza, eu estava monitorado. Fiquei monitorado durante três anos, até 2007, quando fui preso. Eu conhecia os policiais que estavam me monitorando, falava com eles. Então, por que não me pegaram logo? Durante esses três anos eu tive encontros com importantes brasileiros. Nunca me escondi.
ConJur — O senhor ainda nutre a esperança de ter uma vida normal? Como seria?
Battisti — A minha vida será reconstruir tudo. Acabaram com minha vida profissional e afetiva. Eu não vi crescer minha filha menor [Battisti tem duas filhas: Valentine e Charlene, a mais nova]. Eu tenho que recomeçar. Quero ficar aqui porque eu gosto do Brasil. Não é hipocrisia, é verdade. É um ótimo lugar para desenvolver minha atividade de escritor.
ConJur — O senhor se arrepende de ter participado da luta armada?
Battisti — Quando eu saí dos PAC nos anos 1970, não tinha ideia de que a luta armada era um caminho errado. Que, na verdade, causaria o fim do nosso movimento. Isso veio depois. Com a distância, me dei conta que a luta armada mesmo foi um erro porque era impossível mudar um governo, um país europeu, com armas. Mas a luta não foi em vão. Valeu à pena lutar. Muitas conquistas sociais que hoje são vistas como normais na Itália, foram conseguidas com luta, com a morte de muitas pessoas. Para termos a igualdade de direitos entre o homem e a mulher, morreu gente. Para o divórcio, morreu gente. Para o acesso à saúde, morreu gente. Mas a Itália não reconhece isso. Não interessa falar dos italianos que imigravam para a Alemanha, a Bélgica ou a França para trabalhar nas minas, quase como os escravos. Nos bares alemães, eu cansei de ouvir isso, havia cartazes: “Proibida a entrada aos cachorros e aos italianos”. Esqueceram essa parte da história. Mas eu escrevi livros sobre isso. A Itália é o irmão pobre que virou rico e se esqueceu da família pobre. E não tem nada pior que lembrar ao novo rico publicamente que ele foi pobre. Ele vai te atacar. A Itália é um país assim. O Andreotti [Giulio Andreotti, líder do Partido Democrata Cristão italiano e primeiro-ministro por oito anos em diferentes períodos] ficou 40 anos no poder e foi condenado por atividade mafiosa. A máfia estava no poder naquele período.
ConJur — Em liberdade, o senhor vai escrever sobre isso ainda?
Battisti — Eu estou cansado de escrever sobre isso. Quero voltar a escrever romances normais, ficção. Uma boa ficção.
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