"Conversamos mais com a PF nos grandes inquéritos"
18 de dezembro de 2011, 8h03
Ao mesmo tempo, o MPF aprimora suas técnicas de investigação e já fornece know-how à Polícia Federal. É o caso de programas como o Simba, o Sistema Investigação de Movimentação Bancária desenvolvido pelo Ministério Público e repassado à Polícia. O software, que mereceu menção honrosa no Prêmio Innovare na última quinta-feira (15/12), organiza em tempo recorde o resultado de quebras de sigilo e gera planilhas que ajudam os investigadores a encontrar operações suspeitas. Se algo chamar a atenção, o procurador responsável sabe exatamente que prova pedir. E como permite o trânsito via internet de dados fornecidos pelas instituições financeiras, garante uma agilidade inédita nesse tipo de apuração. “Foi um avanço imenso”, diz Frischeisen. “Uma das coisas mais difíceis na quebra de sigilo bancário é a análise.”
No Ministério Público Federal há 19 anos, há 13 Luiza Frischeisen se tornou procuradora regional da República. Comanda pelo segundo mandato a Procuradoria Regional da República de maior destaque nacional. Fez parte da primeira formação do grupo de trabalho do MPF para o combate ao crime financeiro e de lavagem de dinheiro, em 2005. Formou-se em Direito em 1988 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e é doutora em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, e mestre em Direito de Estado pela PUC-SP. Dá aulas como professora visitante na Universidade de Taubaté (SP) e escreveu o livro A Responsabilidade do Administrador e o Ministério Público. Antes de se tornar procuradora, foi advogada, professora universitária e assessora jurídica na Câmara Municipal de São Paulo.
Frischeisen é personagem de episódios fatídicos da história recente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Foi uma das organizadoras da operação Têmis, deflagrada em 2007 pelo MPF e pela Polícia Federal para investigar uma suposta quadrilha de venda de sentenças no tribunal. Buscas e apreensões foram ordenadas nas casas e nos gabinetes de três desembargadores e dois juízes, com a cobertura maciça da imprensa. Dos 13 réus, hoje nenhum responde a ação penal ou foi condenado.
Em 2004, a procuradora denunciou 12 pessoas envolvidas também em suposto esquema de venda de sentenças investigado na operação Anaconda. Juntamente com as procuradoras Janice Ascari e Ana Lúcia Amaral — aposentada —, acusou juízes, delegados e advogados. Apontado como mentor da quadrilha, o juiz João Carlos da Rocha Mattos acabou preso e condenado, perdendo o cargo na Justiça. Mencionado na acusação, o juiz Ali Mazloum, não incluído na ação penal pela relatora do processo, desembargadora Therezinha Cazerta, processou as procuradoras por denunciação caluniosa, depois que o STJ confirmou a decisão do TRF-3.
Em nome do MPF, Frischeisen levou ao Supremo Tribunal Federal a briga pela dispensa da exigência do diploma de jornalismo, e conseguiu emplacar. Seu recurso contra a decisão do TRF-3 em manter a obrigatoriedade acabou atendido pela corte máxima. Em maio, a procuradora conseguiu decisão no TRF para que continuasse a tramitar o processo penal a que responde o advogado Newton José de Oliveira Neves por envolvimento em esquema de evasão de divisas e sonegação. Ele teve seu escritório invadido por policiais federais em 2005, o que gerou revolta na advocacia e culminou com a Lei 11.767/2008, que passou a garantir a inviolabilidade dos escritórios.
A procuradora concedeu entrevista para o Anuário da Justiça Federal 2012, a ser lançado em fevereiro. Leia a íntegra.
ConJur — Desde que o STF decidiu que, pelo menos em alguns casos, o Ministério Público pode investigar, o que tem sido feito nesse sentido?
Luiza Frischeisen — Um dos grandes projetos que implantamos no Ministério Público Federal é a assessoria de análise e pesquisa, que nos permite cruzar dados públicos de acesso restrito. Temos acesso a mil projetos de transparência do governo, como relatórios da CGU [Controladoria-Geral da União]. Para não tratarmos esses dados de uma forma totalmente desordenada, temos a assessoria para fazer a análise. Temos também o Simba, o Sistema de Investigação de Movimentação Bancária. Ele foi totalmente desenvolvido pelo Ministério Público Federal e repassado para a Polícia Federal. Hoje, as quebras de sigilo bancário são enviadas ao MP, com autorizações judiciais, em meio eletrônico. São extratos em planilhas específicas, com base nos quais produzimos relatórios e levamos ao Judiciário. Se tivermos de pedir algum outro cheque, por exemplo, é a partir dessa análise que chegaremos a essa conclusão. Foi um avanço imenso, porque uma das coisas mais difíceis na quebra de sigilo bancário é a análise. Além disso, temos tido uma conversa melhor com a Polícia Federal nos grandes inquéritos, nas grandes operações, para o acompanhamento desde o início das investigações e, especialmente, das interceptações e suas prorrogações.
ConJur — Como a Polícia Federal e o MPF se organizam nas interceptações?
Luiza Frischeisen — A Polícia representa, mas quem requer a interceptação ao juiz é o Ministério Público. Para se manter uma escuta, é preciso apresentar relatórios de 15 em 15 dias. O operacional é da Polícia. Quando o processo termina, todas as interceptações ficam disponíveis para a defesa, digitalizadas, em CD e DVD.
ConJur — Existe um abuso no uso da escuta telefônica como única prova?
Luiza Frischeisen — Não, e o CNJ provou isso. Os levantamentos mostram que não são tantas linhas interceptadas assim. As últimas decisões do STJ que envolveram interceptações, as operações Boi Barrica e Castelo de Areia, por exemplo, foram equivocadas. O ministro Celso de Mello, do STF, tem diversas decisões em favor da denúncia anônima no processo criminal. Há certa incompreensão dos ministros sobre essa questão. Não se pode identificar delação premiada como denúncia anônima. A interceptação começa a partir de uma delação, mas há sempre uma diligência.
ConJur — Uma interceptação pode começar a partir de uma denúncia anônima?
Luiza Frischeisen — Não. Nos casos em que eu atuo e atuei, nenhum começava a partir de denúncia anônima. Para pedir a interceptação de alguém, eu tenho de justificar para o juiz. O problema é que as decisões do STJ são tomadas em Habeas Corpus e, em regra, ele traz as provas que a defesa quer produzir. As informações que são requeridas nunca traduzem de fato o que está no procedimento criminal. Tanto é assim que o Supremo, ao julgar o ministro Paulo Medina [aposentado compulsoriamente do STJ] e avaliar a necessidade de uma das técnicas de investigação mais invasivas, que é a colocação de escuta ambiental, o ministro Cezar Peluso [STF] aprovou. Além disso, em Habeas Corpus não há contrarrazões, apenas parecer. Não há paridade de armas. A apelação é o recurso correto para a discussão de matéria de fato. HC hoje está sendo usado para funções que vão muito além de garantir a liberdade de locomoção. Há casos em que o recurso especial da Defensoria Pública foi inadmitido, mas ela entrou com pedido de Habeas Corpus. Ou seja, com o alargamento das funções do HC, começa-se a anular decisões do tribunal de origem.
ConJur — Como avalia a superação constante da Súmula 691 do STF, para admitir o julgamento de liminares quando a ação principal ainda não teve decisão do tribunal de origem?
Luiza Frischeisen — Quem criou isso foi o próprio Supremo. A Constituição não previa pedido de Habeas Corpus no STF, mas a partir da Reforma do Judiciário, os ministros começaram a admitir alegando que os pedidos envolvem questões constitucionais. Fizeram essa construção jurisprudencial e agora se deram conta de que essa construção, especialmente no STJ, se volta contra eles.
ConJur — O procurador que pede o arquivamento de uma investigação é mal visto pelos colegas?
Luiza Frischeisen — Não. O número de arquivamentos é maior que o de denúncias. É muito difícil defender uma denúncia na qual não se acredita. Pode acontecer também de o procurador mudar sua convicção diante do que a defesa fala, embora isso aconteça muito pouco. Então, ele pede a absolvição de alguém que ele mesmo denunciou. Em 2012, vamos desenvolver um trabalho de controle de inquéritos no grupo do controle externo, que vai avaliar as quantidades e as tipologias dos arquivamentos. Essa é uma preocupação nossa, o que é arquivado e que não é, quanto tempo demoram as investigações etc. Com o Sistema Único, vamos conseguir sistematizar melhor isso.
ConJur — A corrida contra a prescrição é a culpada por denúncias ineptas?
Luiza Frischeisen — Há uma pressão muito grande, mas assim como existem denúncias ineptas, há também sentenças ineptas. Se não houvesse, nós não conseguiríamos revertê-las, ou mesmo modificar a tipificação penal. Isso é do jogo. Mas eu pergunto: por que as denúncias envolvendo sistema financeiro sempre são consideradas ineptas?
ConJur — Por quê?
Luiza Frischeisen — Não sei. Eu atuo no TRF, e aqui não tenho problemas, não trancam minhas denúncias. Trancam no STJ. O que acontece é que algumas decisões do Supremo e do STJ devem ser analisadas do ponto de vista antropológico e sociológico. O Supremo disse que o furto de um disco de ouro não é insignificante e que a pessoa que bebe, pega o carro e mata outra, não assumiu o risco de produzir esse resultado. Aí imperam os bons e velhos vícios da classe média, é o magistrado se vendo na posição do acusado. Ele precisa ter um distanciamento da sua origem social. Em regra, a pena, quando atinge o patrimônio público, é menor que a que atinge o patrimônio privado. Os próprios tipos penais trazem isso: concussão no âmbito público e extorsão mediante sequestro, por exemplo. São crimes muito assemelhados, mas a pena para concussão é menor que para extorsão. O sistema de Justiça não é algo isolado, ele está inserido em um universo, e a legislação também reproduz esse universo.
ConJur — As últimas decisões do STJ e do STF modificaram o comportamento dos procuradores?
Luiza Frischeisen — Sim, ninguém quer ver seu caso desmoronar. A jurisprudência é levada em consideração, as pessoas incorporam. Mas a maior parte dos nossos problemas não se dá nesse nível. Nossos problemas se dão nas grandes questões, nas grandes operações, nas grandes ações penais, que envolvem crimes de colarinho branco, crimes contra a administração e crimes de lavagem de dinheiro. Além disso, temos também uma crítica mais profunda, que não é jurídica. É discutível a forma, por exemplo, como são escolhidos os ministros do Supremo e do STJ.
ConJur — A senhora é uma das defensoras da criação de uma Turma que julgue apenas matérias criminais no TRF-3. Por quê?
Luiza Frischeisen — Porque é essencial para uma tramitação mais rápida dos processos criminais. As turmas da 1ª Seção julgam processos criminais, mas também processos cíveis, que geram muitos agravos. Penas pequenas, de um a dois anos, têm prazos prescricionais pequenos. O problema é que não se pode executar provisoriamente o réu. Então, o julgamento tem que ser muito rápido, e os recursos podem chegar até Brasília. O acórdão não suspende a prescrição. Ações criminais contra prefeitos, deputados e secretários, hoje matérias do Órgão Especial, poderiam passar a ser julgadas por pessoas especializadas na Seção Criminal, como acontece nos tribunais de Justiça. A exceção ficaria por conta de julgamentos de membros do Ministério Público e do Judiciário. Porque no Órgão Especial, hoje, dois terços dos membros são pessoas do Direito Civil, sem contar que, para compor quórum, muitas vezes se chama pessoas que julgam matéria previdenciária.
ConJur — A proposta do ministro Cezar Peluso, de tornar rescisórios os recursos ao STF e ao STJ, permitiria a execução antecipada da pena?
Luiza Frischeisen — Sim, como em qualquer lugar do mundo, menos no Brasil. Em qualquer outro país, o juiz de 1º Grau decide e já se pode executar provisoriamente.
ConJur — Muitas denúncias não perduram por falta de consistência. Como o MPF pode melhorar isso?
Luiza Frischeisen — Há algumas questões em que a gente precisa melhorar. Genericamente, é necessário mitigar o princípio da obrigatoriedade da ação penal. Se não tivéssemos de perder tempo com crimes frequentemente considerados de bagatela, ou pudéssemos negociar com o autor do delito, eventualmente até chegando à possibilidade de acordos de imunidade, mesmo que submetidos a homologação em Juízo, poderíamos avançar mais em crimes financeiros, como lavagem de dinheiro, e nos crimes que envolvem morte. Mitigando o princípio da obrigatoriedade, livraríamos a Polícia de trabalho desnecessário.
ConJur — Por quê?
Luiza Frischeisen — Se recebemos uma representação da Justiça do Trabalho sobre falso testemunho, temos de fazer uma requisição de inquérito. Enche-se a Polícia de requisições de inquérito por crimes de falso testemunho. Já na Polícia Civil, é possível apenas fazer Boletim de Ocorrência, sem dar queixa. É preciso ter a capacidade de selecionar. Daí alguns vão perguntar: “Ah, mas o que vai ser selecionado?” Ora, a regra do sistema é que todos controlam todos. Nós controlamos a Polícia e as homologações têm que ser feitas em Juízo. E é possível mitigar. A Lei 9.099, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, é um exemplo, ao permitir a suspensão condicional do processo. Também seria interessante não se dificultar tanto o acesso a dados bancários e fiscais, nem se confundir delação premiada com denúncia anônima. O que as pessoas confundem é quando há uma delação em uma investigação, que abre uma segunda investigação. A delação não é suficiente para a condenação, apenas para o início das investigações, é uma forma de prova. Obviamente, é preciso incorporá-la a outras provas, feitas, por exemplo, por meio de diligências.
ConJur — Existe um levantamento na Procuradoria da porcentagem de rejeições de denúncias?
Luiza Frischeisen — Não. Estamos fazendo um levantamento agora, que deve ficar pronto até o fim do ano, sobre denúncias originárias da Procuradoria Regional. Serão informações dos cinco últimos anos, de rejeições, recebimentos e julgamentos de denúncias.
ConJur — Quais são os principais motivos de rejeição?
Luiza Frischeisen — No caso de prefeitos, por exemplo, o julgamento do recebimento da denúncia é praticamente o julgamento do mérito no Órgão Especial. Eles exigem mais do que apenas a materialidade do crime, é preciso reunir todas as provas da instrução. Um processo recente tratou da prestação de contas da administração fora do prazo, o que é crime. Entendemos que se passar um pouco do prazo, desde que haja uma justificativa razoável, não configura necessariamente o crime material ou formal. O próprio Tribunal de Contas da União entende que se as contas forem apresentadas, estando certas, sem fraude, não há irregularidade. No entanto, uma denúncia pendente de 2010 foi rejeitada recentemente. Eu fiz a réplica e a sustentação oral, afirmando que o prazo foi razoável, embora essa não seja a jurisprudência do STJ. Em outro caso, um ex-prefeito havia usado verbas para fazer um aterro, mas a perícia disse que a obra não tinha sido feita. A denúncia acabou rejeitada porque ele tinha começado a fazer, mas não acabou. Em licitações, isso é complicado, depende muito da postura do relator. É por isso que é um problema o julgador não ser da área criminal. Ou seja, entre as causas para a rejeição estão os fatos de o julgador não entender do assunto e o de ser muito rigoroso, exigindo uma prova quase que pré-constituída, total e completa. Mas, no meu sentir, há mais denúncias recebidas do que rejeitadas no TRF-3.
ConJur — Condenações também?
Luiza Frischeisen — Condenações também, mas o volume não é grande. Aqui, ao contrário da 1ª ou da 5ª Regiões, que recebem muitas verbas federais, os prefeitos respondem pelos crimes na Justiça estadual. É claro que o maior número de delitos praticados pelos prefeitos está na 3ª Região, principalmente no estado de São Paulo, como casos de improbidade, mas a Justiça Federal só tem competência quando a verba é especificamente federal, para um projeto específico, e não de fundos de participação.
ConJur — No julgamento do STJ sobre o recebimento da denúncia feita a partir da Operação Têmis, que envolveu três desembargadores do TRF-3, o relator do caso, ministro Felix Fisher, considerado rigoroso, não aceitou as acusações contra os desembargadores por falta de elementos para iniciar a ação penal. O MPF reconhece algum exagero?
Luiza Frischeisen — Não. O ministro Fisher reconheceu que tudo o que dissemos que havia ocorrido, de fato ocorreu. O que ele afirmou, no entanto, foi que aquilo não era crime.
ConJur — De acordo com a decisão, uma amizade não poderia ser confundida com uma quadrilha.
Luiza Frischeisen — Mas não é questão de quadrilha, é de tráfico de influência, de corrupção. O ministro afirmou que tudo isso não é crime. O processo foi desmembrado e eu fiz a denúncia contra a juíza federal Maria Cristina Barongeno, única punida com aposentadoria. Agora, temos a discussão da Ação Penal. A juíza Ana Paula Mantovani, afirmou que as interceptações que passaram pela análise do ministro Fisher não foram válidas, mas ele em nenhum momento disse isso.
ConJur — Na época, quando concedeu ordens de busca e apreensão, o ministro Fisher ordenou cautela e discrição. No entanto, policiais federais invadiram gabinetes e residências de desembargadores do tribunal com metralhadoras, acompanhados de câmeras de televisão. Por que a recomendação não foi atendida?
Luiza Frischeisen — Mas as apreensões foram feitas com cautela. Eu mesma fui à casa de um dos desembargadores investigados para acompanhar o procedimento. Cada desembargador recebeu acompanhamento de um procurador regional. E tudo foi feito com autorização da Presidência do TRF-3 na época e do relator do inquérito no TRF-3, que sabiam de tudo. E a polícia anda com metralhadora, você quer que ela ande com o quê?
ConJur — E a televisão?
Luiza Frischeisen — A televisão fica sabendo, da mesma forma que a ConJur fica sabendo. Os policiais tinham autorização, e os gabinetes estavam todos avisados, e a OAB também. Quando se faz uma operação como essa, com várias buscas e apreensões, é preciso uma força policial que vem de diversos lugares. É complicado evitar a divulgação. Houve um vazamento inclusive a partir de uma interceptação telefônica. Quando um ofício “bateu” na Telefônica, uma pessoa de dentro da empresa tinha contato na delegacia e acabou falando.
ConJur — O ministro Fisher pediu ao MPF uma investigação sobre abuso de autoridade.
Luiza Frischeisen — Que foi arquivada pelo procurador Rodrigo Fraga. Foi uma representação contra o delegado Luiz Godoy.
ConJur — Algumas medidas do CNJ enfrentam resistência dos juízes. O mesmo acontece na relação entre os procuradores e o Conselho Nacional do Ministério Público?
Luiza Frischeisen — As associações do Ministério Público não têm uma postura anti CNMP, como tem a Associação dos Magistrados Brasileiros. O Ministério Público Federal sempre foi favorável ao controle externo, ao contrário da magistratura. Os conselhos levam a Federação aos estados que não estão muito acostumados com a Federação. Os relatórios de inspeção tanto do CNMP quanto do CNJ afastam qualquer dúvida. As corregedorias locais muitas vezes não querem punir ou são incapazes de punir. Eles não substituem as corregedorias, mas as estimulam. Se não fosse o CNJ, não haveria corregedoria, porque os tribunais nunca foram corregedores de si mesmos. O CJF também passou a ter poder correcional sobre os desembargadores dos TRF muito recentemente, com a modificação da Constituição, com a Emenda 45. O problema é que a Lei Orgânica da Magistratura é muito velha, de 1969, anterior à Constituição de 1988, e não fala praticamente nada de processo disciplinar. É preciso lembrar também que há decisões do CNJ que já foram cassadas pelo STF, o que não aconteceu com qualquer decisão do CNMP, mesmo já tendo havido um afastamento, do procurador Antônio Augusto César, determinado pelo conselho. Ele acabou se aposentando, mas a perda da função está sendo julgada em processo que ainda tramita.
ConJur — As ações coletivas são uma solução para o excesso de processos no Judiciário?
Luiza Frischeisen — Existem vários instrumentos para minorar o número de processos, e a ação coletiva é um deles. Na Justiça Federal, sempre haverá ações repetitivas, devido ao tipo de ação que se propõe nessa Justiça. É muito difícil que alguém tenha algum problema de natureza previdenciária, tributária ou de prestação de serviço que não tenha se repetido com outras pessoas. Em regra, isso gera a possibilidade de o Ministério Público ou uma associação entrarem com uma ação coletiva. Mas para que funcione, o Judiciário tem que aceitar a legitimidade das associações e do Ministério Público para propor essas ações, e o cabimento da Ação Civil Pública para esse objetivo.
ConJur — Existe resistência do Judiciário?
Luiza Frischeisen — Contra a legitimidade, já houve mais. Contra o objeto, a lei que dispõe sobre a Ação Civil Pública já restringiu, mas isso está sendo contornado pelas alterações legais posteriores, como o Estatuto do Idoso, aplicável em matéria previdenciária, e também em função da própria interpretação dos tribunais. A ação coletiva é uma forma de dar conta do interesse difuso, coletivo, individual ou urgente. Já do ponto de vista de questões individuais, os recursos repetitivos e a repercussão geral são fundamentais, porque criam a vinculação da decisão no caso julgado a outros em todos os tribunais.
ConJur — Já é possível sentir os efeitos desses filtros processuais na segunda instância?
Luiza Frischeisen — Isso já fez com que os processos cíveis do Supremo diminuíssem. O importante é, ao escolher os casos a serem sobrestados enquanto a decisão não vem, ter-se o cuidado de analisar se ele é realmente igual ao que está sendo decidido. Isso também vale para a matéria penal. Serve como exemplo um recurso repetitivo em que o STJ firmou entendimento de que não existe crime de contrabando ou descaminho quando o valor da mercadoria é inferior a R$ 10 mil, porque a legislação dispensa a União de ajuizar execução fiscal para cobrar valores até esse limite. Só que contrabando não envolve crime tributário, não é um crime contra a Administração. Mesmo assim, o entendimento que prevaleceu foi o da aplicação do princípio da insignificância. Entretanto, o acórdão não esclareceu sobre a reiteração, ou seja, se a pessoa, de acordo com o entendimento do STJ, tem passe livre para cometer quantos descaminhos ou contrabandos quiser, desde que o valor seja de até R$ 10 mil cada um. Batemos-nos com isso até que o Supremo afirmou que, quando há reiteração, não é possível aplicar o princípio da insignificância. Agora, temos conseguido levar a matéria ao STJ, por meio de agravos de instrumento contra a negativa de admissibilidade de recursos aqui no TRF-3.
ConJur — Em que a decisão do STJ pela aplicação do princípio da insignificância nesses casos afetou os processos em segundo grau?
Luiza Frischeisen — O Recurso Repetitivo do STJ é de 2009. Então, a tendência é que neste ano o número de recursos diminua. Havia um universo muito grande de recursos em sentido estrito [apelação do Ministério Público] contra decisões de juízes rejeitando denúncias ou absolvendo sumariamente pelo princípio da insignificância. Os recursos demoram em ser julgados, muitas vezes, porque a pessoa foi presa ou autuada em Ponta Porã ou Corumbá (MS), mas não mora lá. Então, quando tem de apresentar contrarrazões, é complicado. Além disso, o contrabando e descaminho que se tem hoje é maior. Muitos são os casos de apreensão de cargas de grande volume, por exemplo, de cigarros vindos do Paraguai. No caso de crimes contra a ordem tributária também há impacto, devido à Súmula Vinculante 24 do STF, que determina que a Ação Penal tem que aguardar o fim do processo administrativo. Por isso, houve uma queda na propositura de ações, uma vez que os processos administrativos são lentos.
ConJur — A tramitação direta do inquérito entre a Polícia e o Ministério Público, sem passar pelo Judiciário, ainda gera reclamações dos advogados, que afirmam ter dificuldades para ter acesso aos autos. A alegação é razoável?
Luiza Frischeisen — Os advogados gostam desse terceiro elemento, que é o Judiciário, para que o processo demore mais. Nesses casos, o Judiciário é um elemento cartorial. O que precisa passar pelo juiz e continua passando são as cautelares. Sou a coordenadora do controle externo da Polícia pelo MPF. Fui uma das que trabalhou na resolução do Conselho da Justiça Federal que instaurou o trâmite direto. Temos dados que comprovam que o trâmite direto reduz em 30 ou 40 dias, no mínimo, o período em que o processo leva para diligências.
ConJur — O governo federal criticou a postura do Ministério Público em insistir na tentativa de liminares para paralisar a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. O desenvolvimento também deve ser uma preocupação do MPF?
Luiza Frischeisen — O Ministério Público leva o desenvolvimento em consideração. O problema é que a visão de desenvolvimento nem sempre é a mesma do governo. Uma iniciativa importante do Ministério Público Federal nesse aspecto foi a tomada contra a pecuária ilegal no Pará, instalada em áreas desmatadas. Os procuradores resolveram ir para cima da cadeia produtiva e fazer acordos com supermercados, porque isso é importante para a exportação de carne. O desenvolvimento precisa respeitar limites. Governar não é só abrir estradas.
ConJur — A independência funcional atrapalha o andamento dos processos na Justiça, uma vez que o procurador presente a uma sessão de julgamento pode opinar de forma diferente do parecer do MPF juntado aos autos?
Luiza Frischeisen — Depende. Pode ser que o procurador que atuou no processo não seja o procurador natural do feito, e o procurador natural é justamente o que está na sessão, e quem estará encarregado de recorrer. Uma coisa são as teses institucionais, que estão ligadas às prerrogativas do Ministério Público. E há teses em que há discordância, que vão ser pacificadas nos tribunais superiores. É claro que se procura chegar a teses mais ou menos parecidas. Na tutela coletiva na PRR-3, por exemplo, temos uma disposição de que se um procurador não concordar com a tese do colega, pode passar o processo para outro, de forma a ressalvar seu entendimento. Havia vários pareceres que diziam que a pena por tráfico de entorpecente deveria ser cumprida integralmente em regime fechado. Mas o Supremo disse que não. Nesse caso, o procurador não pode insistir na posição do parecer durante a sessão de julgamento.
ConJur — A senhora está pela segunda vez consecutiva no comando do Ministério Público Federal na 3ª Região. Qual é o balanço de sua gestão?
Luiza Frischeisen — Do ponto de vista administrativo, do ano passado para este ano, a maior transformação foi a integração com a secretaria geral do Ministério Público da União, que é de Brasília. Houve uma transformação interna muito forte, uma modernização na gestão. O planejamento estratégico, que começou no ano passado, já se concretizou e agora estamos numa fase de implementação. Uma das novidades foi o Sistema Único para registro de processos e procedimentos. Faço parte, como representante dos procuradores, da comissão responsável. O que acontece hoje é que procuradorias de primeira instância têm um sistema de registro eletrônico de acompanhamento de processos, as procuradorias regionais têm outro e a Procuradoria-Geral tem um terceiro. Se alguém quiser saber sobre um feito, tem que olhar pelo menos três sistemas. Mas o Sistema Único vai permitir que vejamos o processo de uma só vez, em forma de árvore. Há também um plano de política de tecnologia de informação para o Brasil inteiro, que tem o objetivo de evitar que uma unidade tome uma decisão diferente do plano nacional. A questão das licitações também tem um plano nacional, para que se diminua, via sistema eletrônico, o gasto público. É possível aderir a atas de outras licitações já feitas por outros órgãos públicos, não necessariamente o Ministério Público Federal, como, por exemplo, para compras de determinados materiais como de escritório.
ConJur — Hoje, é possível acompanhar a produtividade dos juízes em levantamentos do CNJ e dos tribunais. Há algo parecido no MPF?
Luiza Frischeisen — O Projeto Transparência, que verifica, por exemplo, quantas sessões cada procurador está fazendo, quais são os processos que cada um tem, quais são os contratos em vigor na administração etc. Ampliamos o projeto para a atividade processual, para colocar isso na internet. Hoje, toda a movimentação processual está disponível na internet. Somos a única unidade do MPF que tem isso. Em outras unidades é possível ver o que está no processo, mas não o conjunto de textos, as manifestações, o que a nossa página permite. É possível ver quantos processos estão no gabinete de cada procurador, qual o número de cada um e quando entraram. Se esse processo não for sigiloso, é possível ver sua movimentação e a manifestação do procurador. O “PRR-3 em Números” é o resultado de tudo isso, que leva em consideração também a Meta 2 do CNJ.
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