Nepotismo

Problemas sobre súmula é culpa do próprio STF

Autor

  • Antonio Moreira Maués

    é advogado e professor associado da Universidade Federal do Pará doutor em Direito pela Universidade de São Paulo e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

3 de julho de 2010, 8h13

Em nota divulgada no dia 23 de junho, o STF informou que o presidente Cezar Peluso irá encaminhar aos demais ministros uma proposta fundamentada de revisão da redação da Súmula Vinculante 13, “para restringí-la aos casos verdadeiros de nepotismo, proibidos pela Constituição”.

Essa nota busca responder ao noticiário, em princípio veiculado pela Folha de S.Paulo, de que o Peluso teria desrespeitado a Súmula ao nomear marido e mulher para cargos em comissão no STF.

Neste caso, a responsabilidade pelos problemas que decorrem da aplicação deve ser atribuída ao próprio STF. Ao autorizar o tribunal a editar súmulas vinculantes, a EC 45 impôs que elas atendessem a “decisões reiteradas” sobre “questão idêntica”.

No caso da SV 13, o mandamento constitucional deixou de ser observado, pois a rapidez com que a Súmula foi discutida impediu o STF de analisar corretamente as circunstâncias de suas decisões anteriores sobre a matéria.

A SV 13 dispõe que a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição.

O exame dos precedentes invocados pelo tribunal para justificar a edição da Súmula demonstra várias diferenças, entre eles e o enunciado da Súmula.

Na ADI 1.521, cuja cautelar foi julgada em 12 de março de 1997, manteve-se a eficácia de diversos dispositivos da Constituição do Rio Grande do Sul, em que a proibição de nomeação para cargos em comissão atingia somente o segundo grau de parentesco.

No MS 23.780, julgado em 28 de setembro de 2005, a decisão teve como base a Lei nº 9.421/1996 (artigo 10), que trata do plano de carreira do Poder Judiciário, e a Lei nº 8.432/1992 (artigo 44, § 3º), que cria cargos na Justiça do Trabalho, ambas vedando a nomeação de parentes até o terceiro grau, mas não fazendo nenhuma referência a casos de nepotismo cruzado.

Deve-se destacar, nos dois precedentes, que a existência de lei não exigiu que o STF estabelecesse critérios para aferir a prática do nepotismo. O tribunal somente decidiu sobre a compatibilidade dessas normas com a Constituição, reconhecendo que o legislador estava autorizado a dispor sobre a matéria.

Por fim, no RE 579.951, julgado um dia antes da aprovação da Súmula, em 20 de agosto de 2008, o STF decidiu anular ato de nomeação de um irmão do vice-prefeito para o cargo de motorista do município. Na mesma decisão, o STF considerou que a nomeação de parentes para cargos políticos não estaria vedada, dentre outras hipóteses que foram levantadas em que seria necessário apreciar as circunstâncias do caso para identificar a existência de nepotismo, especialmente em sua modalidade cruzada.

Apesar da diversidade dos precedentes, o STF decidiu usar a Resolução 7 do CNJ como base da redação da Súmula, tendo em vista sua decisão na ADC 12. Nesse julgado, o Supremo considerou que a referida resolução “densifica” os princípios constitucionais inscritos no artigo 37 (impessoalidade, eficiência, igualdade, moralidade), “não havendo antinomia de conteúdos na comparação dos comandos que se veiculam pelos dois modelos normativos: o constitucional e o infraconstitucional”.

Assim, as restrições às nomeações de parentes no Judiciário seriam compatíveis com as restrições impostas pela Constituição, donde se pode concluir que o Executivo e o Legislativo também estariam sujeitos aos mesmos limites.

Pode-se argumentar, em defesa da SV 13, que, tal como no julgamento da ADC 12, o STF baseou-se em uma aplicação direta dos princípios constitucionais para editá-la. Contudo, um dos fundamentos mais importantes da decisão da ADC 12 reconhecia a competência do CNJ para regular a matéria por meio da edição de atos normativos primários, com base no inciso II do § 3º do artigo 103.

Segundo o relator, ministro Ayres Britto, esse dispositivo outorga competência para o Conselho dispor, primariamente, sobre as matérias lá constantes, por ser uma “forma de prevenir a irrupção de conflitos. O poder de precaver-se ou acautelar-se para minimizar a possibilidade das transgressões em concreto”.

Outros ministros, como Joaquim Barbosa e Cezar Peluso, invocaram a tese dos “poderes implícitos” para julgar legítimo o exercício de competência normativa pelo CNJ. Como é fácil notar, nenhum desses argumentos se aplica ao Executivo e Legislativo.

Além disso, a discussão sobre a competência do CNJ não exauriu o debate sobre a validade da Res. 7, pois os ministros ainda tiveram que enfrentar a questão da constitucionalidade dos graus de parentesco estabelecidos no ato normativo, especialmente o problema do parentesco por afinidade até o terceiro grau. Esse tipo de dificuldade revela que o conjunto normativo utilizado para o Judiciário não teria, necessariamente, que ser empregado para os demais poderes. Mesmo que o entendimento do STF sobre a aplicação direta do artigo 37 possa fundamentar sua competência para dispor sobre a nomeação de parentes em todos os poderes, o exercício dessa competência teria que ser feito a partir da análise das particularidades do Executivo e do Legislativo, resultando de um conjunto de decisões sobre o assunto.

Como vimos acima, uma dessas particularidades, envolvendo a figura dos agentes políticos, foi reconhecida pelo próprio STF no precedente, ainda que não tenha constado no enunciado da súmula, gerando dúvidas sobre sua aplicação. Tal ocorreu, por exemplo, na Rcl. 6.650, em que o STF suspendeu decisão judicial que anulava nomeação de irmão do governador do Estado para o cargo de secretário estadual, reafirmando que essa situação não se encontra vedada pela SV 13.

Por não se basear em um exame cuidadoso dos casos e diante das óbvias dificuldades de estabelecer uma regra geral para a questão, o STF acabou por usar o termo “pessoa jurídica” no enunciado da súmula, cuja imprecisão não demorou a ser notada.

Conforme notícia divulgada na página do STF, em 28 de novembro de 2008, a Procuradoria-Geral da República pediu “definições precisas” sobre o nepotismo: “A Súmula Vinculante 13, aprovada em agosto deste ano pelo Plenário do STF, para tentar banir do cenário brasileiro o nepotismo, tem causado controvérsias. Isso porque o verbete, com poder normativo, tem recebido interpretação divergente e aplicação diferenciada no país”, afirma o procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza.

Como compete à PGR atuar no sentido de combater o desrespeito à norma, “é fundamental que o Ministério Público tenha conhecimento dos parâmetros precisos de sua compreensão para que possa exercer com segurança as suas atribuições”.

Com esse argumento, Antonio Fernando pede à Corte que defina os precisos contornos do que é nepotismo, para unificar sua aplicação e acabar com as dúvidas que têm surgido. O pedido foi feito nos autos da Reclamação 6.838, ajuizada na Corte pela própria PGR contra o ato nº 7 da Comissão Diretora do Senado Federal.

Como exemplo, Antonio Fernando cita confusões envolvendo as funções de confiança (que devem ser exercidas exclusivamente por servidores concursados) e cargos em comissão (a serem ocupados preferencialmente por servidores de carreira).

Outra dúvida relatada pelo procurador surgiu a partir do entendimento que se tem dado à expressão “mesma pessoa jurídica” como ente federal em sua totalidade (União, estado, Distrito Federal e municípios). Isso tem gerado assimetrias “a alcançar situações que substancialmente não configuram nepotismo”, frisa o procurador-geral.

O vínculo conjugal ou parentesco com membro de poder ou autoridade já aposentados é outra questão a ser resolvida, bem como as situações licitamente constituídas e estabelecidas antes da posse da autoridade e o casamento subsequente. São múltiplas as situações que podem provocar dúvidas, alega Antonio Fernando.

O esclarecimento desses pontos contribuiria de modo significativo “para aprimorar a concretização dos comandos nela inseridos”, concluiu.

Para que o STF corrija seu erro, o único caminho é respeitar o que diz a Constituição. A revisão da súmula não pode ser encarada como um ato legislativo, em que os ministros do STF irão decidir, com base em suas preferências, o que entendem por “casos verdadeiros de nepotismo”. A revisão impõe ao STF voltar aos seus precedentes, incluindo também as reclamações julgadas com base na SV 13, para identificar as circunstâncias e os fundamentos dos casos julgados.

A fidelidade à exigência constitucional de “reiteradas decisões” sobre “questão idêntica” depende de que o STF interprete corretamente as similitudes entre esses precedentes, a fim de que a generalização de seus fundamentos, feita pela súmula, possa ser válida.

Referências bibliográficas

MAUÉS, Antonio Moreira. Súmula Vinculante e Proteção dos Direitos Fundamentais. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais e Justiça, vol. 8, 2009.

Autores

  • é advogado e professor associado da Universidade Federal do Pará, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

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