Briga de interesses

Aquilo que não é dito sobre os arquivos da ditadura

Autor

  • Sérgio de Oliveira Netto

    é procurador federal mestre em Direito Internacional (Master of Law) com concentração na área de Direitos Humanos pela American University — Washington College of Law especialista em Direito Civil e Processo Civil e professor do curso de Direito da Universidade da Região de Joinville — Univille (SC).

16 de outubro de 2009, 7h54

No dia 28 de agosto de 2009 comemorou-se os 30 anos da edição da Lei de Anistia (Lei 6.683/79), editada ainda sob o regime militar, durante o mandato presidencial do General João Baptista Figueiredo. A intenção era anistiar aqueles que tivessem praticado crimes dentro do período que se estendeu entre 9 de abril de 1964 (data do denominado golpe militar de 1964, legalizado pelo Ato Institucional n° 1) até o dia da publicação da Lei 6.683/79.

Esquecimento da prática de crimes que beneficiaria tanto aqueles que integravam o regime militar, como todos os sectários das correntes de oposição. Que pretendiam, a ferro e fogo, implantar no Brasil a ideologia comunista, baseada no materialismo dialético, que inclusive pregava a proibição do culto ao Divino. Posto que repudiava veementemente tais devoções, chegando ao cúmulo de intitulá-la de ópio do povo. Logo num país predominantemente cristão, como o Brasil.

Mas, enfim, erros e atrocidades foram cometidos por ambos os lados que se degladiaram. Ilustrativamente, por parte do regime militar, pois se valeu amplamente da tortura como forma de obter informações do seu interesse. E daqueles que se encontravam na resistência armada, porque não hesitaram em realizar assaltos para financiar a guerrilha, sequestros e homicídios.

Esta questão, ademais, continua a ser objeto de discussões em várias demandas judiciais, na maioria absoluta aforada por aqueles que então eram contrários ao regime castrense instalado. Pelas quais se buscam, dentre outros objetivos, promover a responsabilização dos militares que se engajaram nestes atos de tortura, ou obter algum espécie de indenização.

Tanto que o Supremo Tribunal Federal foi conclamado a resolver se a Lei de Anistia (Lei 6.683/79, art. 1°), poderia ou não ter perdoado os crimes perpetrados pelos agentes estatais que envolviam a tortura e outras práticas cruéis. Resposta que terá de ser dada nos autos da ADPF 153, veiculada pela Ordem dos Advogados do Brasil.

Depreende-se, pois, que esta questão permanece por demais candente, e não será o foco das considerações aqui expostas. Preferindo-se, assim, deixar que a Instância Judicial Máxima esclareça definitivamente, se persiste ou não a possibilidade de responsabilizar aqueles que participaram deste triste período da história nacional.

O que se deseja aqui, entretanto, é abordar outro tema correlato que, estranhamente, não vem sendo tão alardeado nos meios de comunicação e foros judiciais.

Diz respeito ao acesso ao acervo governamental, onde estão arquivados diversos documentos oficiais, elaborados pelas autoridades que governavam o país durante o período que ficou conhecido como anos de chumbo.

Noutros dizeres, muito está se discutindo acerca da questão da punibilidade dos agentes estatais daquele período. Mas pouco ou quase nada se tem esclarecido, como fica a questão sobre o acesso a estes documentos que estão na posse do governo federal.

Estes documentos continuam a ser guardados nos cofres governamentais, com a desculpa de que a legislação de regência determina que eles sejam mantidos sigilosos.

Ora, passando em revista a normatização pertinente, verifica-se que a Lei 8.159/91 (que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências), estabelece em seus artigos 22 e 23, que os documentos públicos, em princípio, são de acesso livre. A não ser quando forem classificados como sigilosos, nos termos do artigo 23:

“Art. 22. É assegurado o direito de acesso pleno aos documentos públicos.
Art. 23. Decreto fixará as categorias de sigilo que deverão ser obedecidas pelos órgãos públicos na classificação dos documentos por eles produzidos.
§ 1º Os documentos cuja divulgação ponha em risco a segurança da sociedade e do Estado, bem como aqueles necessários ao resguardo da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas são originariamente sigilosos.
§ 2º O acesso aos documentos sigilosos referentes à segurança da sociedade e do Estado será restrito por um prazo máximo de 30 (trinta) anos, a contar da data de sua produção, podendo esse prazo ser prorrogado, por uma única vez, por igual período.
§ 3º O acesso aos documentos sigilosos referente à honra e à imagem das pessoas será restrito por um prazo máximo de 100 (cem) anos, a contar da sua data de produção.”

No intuito de regulamentar este artigo 23, foi editado o Decreto 4.553/02 (que dispõe sobre a salvaguarda de dados, informações, documentos e materiais sigilosos de interesse da segurança da sociedade e do Estado, no âmbito da Administração Pública Federal, e dá outras providências), que estabelece a graduação de sigilo a que tais documentos devem se submeter, assim como indicando quais são as autoridades que podem fazer esta classificação (arts. 5° a 7°).

“Art. 5º Os dados ou informações sigilosos serão classificados em ultra-secretos, secretos, confidenciais e reservados, em razão do seu teor ou dos seus elementos intrínsecos.
Art. 6º A classificação no grau ultra-secreto é de competência das seguintes autoridades:
I – Presidente da República;
II – Vice-Presidente da República;
III – Ministros de Estado e autoridades com as mesmas prerrogativas;
IV – Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica; e
V – Chefes de Missões Diplomáticas e Consulares permanentes no exterior.
§ 1º Excepcionalmente, a competência prevista no caput pode ser delegada pela autoridade responsável a agente público em missão no exterior.
§ 2º Além das autoridades estabelecidas no caput, podem atribuir grau de sigilo:
I – secreto: as autoridades que exerçam funções de direção, comando, chefia ou assessoramento, de acordo com regulamentação específica de cada órgão ou entidade da Administração Pública Federal; e
II – confidencial e reservado: os servidores civis e militares, de acordo com regulamentação específica de cada órgão ou entidade da Administração Pública Federal.
Art. 7º Os prazos de duração da classificação a que se refere este Decreto vigoram a partir da data de produção do dado ou informação e são os seguintes:
I – ultra-secreto: máximo de trinta anos;
II – secreto: máximo de vinte anos;
III – confidencial: máximo de dez anos; e
IV – reservado: máximo de cinco anos.
Parágrafo único. Os prazos de classificação poderão ser prorrogados uma vez, por igual período, pela autoridade responsável pela classificação ou autoridade hierarquicamente superior competente para dispor sobre a matéria.”

De fácil percepção, destarte, que compete ao Presidente da República não só a edição deste decreto regulamentos das hipóteses de sigilo. Mas também a indicação da classificação a ser dada a estes documentos, e a concessão ou não de prorrogação desta condição de sigilo (Constituição Federal, art. 84, IV e VI).
Logo, é de se perguntar: porque será que estes arquivos oficiais sobre o período da ditadura, continuam a ser mantidos em sigilo absoluto se já se vão quinze anos que o país está sendo governado por pessoas que foram alvo das ditas perseguições políticas, capitaneadas pelo regime militar?

Ou seja, se o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o atual presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, desejassem realmente abrir os arquivos da ditadura para que o povo tomasse conhecimento das ações que foram executadas pelos militares, bastaria modificar a classificação do sigilo imposta a este acervo histórico.

Mas, inexplicavelmente até hoje, passados quase 16 anos da assunção ao poder por aqueles que um dia foram objetos da repressão, estes documentos não foram tornados públicos.

Algo de estranho, certamente, está acontecendo. Pois, não é de se acreditar que os militares ainda teriam força suficiente (ou interesse) para impor ao ex-presidente da República e ao atual, uma proibição de divulgação destes arquivos.

Parece, portanto, salvo melhor juízo, e sem querer fazer qualquer sorte de insinuação, que a não divulgação destes documentos interessa muito mais aqueles que hoje ocupam o governo da nação, e que um dia se engajaram nas fileiras armadas de esquerda.

E não aos militares que, recolhidos à caserna, continuam comprometidos com sua missão maior, de defesa da pátria.
 

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!