Projeto antigo

Código Civil não é atual e precisa ser reformado

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12 de outubro de 2009, 8h12

Spacca
Jose de Oliveira Ascenção - Spacca

O atual Código Civil brasileiro entrou em vigor em janeiro de 2002, quase 12 anos após a edição do Código de Defesa do Consumidor. Mesmo assim, o CDC é considerado mais moderno do que o Código Civil. Isso porque o projeto que deu origem ao Código Civil foi escrito no início da década de 1970. Os seus longos 27 anos de tramitação não foram suficientes para atualizar a lei à conjuntura de quando foi sancionada, inclusive já sob o guarda-chuva de uma nova Constituição no país. A análise é do professor doutor e catedrático em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa José de Oliveira Ascensão, que defende a atualização do Código Civil.

O professor não vê dificuldades em interpretar o CC em relação à Constituição Federal de 1988, mas observa que há um falta de harmonia com o Código de Defesa do Consumidor, o que faz com que os dois tenham de ser interpretados conjuntamente. Além das alterações no Código Civil, Ascensão vê a necessidade de uma lei específica para regular os negócios fechados pela internet.

Convidado pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), o professor José de Oliveira Ascensão esteve em Brasília para uma aula magna sobre a Coexistência do Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor, como parte preparatória do Curso Avançado de Direito do Consumidor, que terá início em novembro próximo. Depois da aula, concedeu uma entrevista exclusiva para a Consultor Jurídico.

O professor Ascensão gosta de ser apresentado como civilista. É um dos maiores estudiosos do Direito Civil luso brasileiro com mais de 350 obras publicadas em várias línguas, inclusive, em alemão. Já lecionou no Brasil, na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, no período pós-revolução portuguesa, de 1975 a 1979. Hoje, dedica a maior parte de seu tempo não só ao estudo do Direito Civil, mas da concorrência desleal, o direito de autor e a propriedade intelectual em geral.

Leia a entrevista.

ConJur —O senhor costuma dizer que há falta de harmonia entre o CDC e o CC. Onde está o problema?
José de Oliveira Ascensão —
A falta de harmonia se explica pela gênesis dos dois diplomas. O Código de Defesa do Consumidor surge imediatamente após a aprovação da Constituição de 1988 e introduz na vida civil os princípios da Constituição e, particularmente ao consumidor, traz muitos outros princípios novos. Já o Código Civil, embora tenha surgido só em 2002, foi elaborado 30 anos antes e observa aquilo que podia ser regulado em 1970, com a Constituição que estava em vigor.

ConJur — Essa falta de harmonia causa dificuldades na hora de analisar contratos?
Oliveira Ascensão —
É complicado porque, para analisar os contratos, é preciso conjugar os dois códigos. Ainda assim, o Código Civil tem os seus próprios méritos, entre os quais a introdução das cláusulas gerais, isto é, grandes princípios valorativos, lesão, boa-fé etc., que permitem adaptar o Direito aos casos concretos e trazer soluções muito mais justas. Apesar de saber da dificuldade dessa tarefa, defendo que seria bom alterar e atualizar o Código Civil para que ele fique em sintonia com o Código de Defesa do Consumidor.

ConJur — Para chegar a essa sintonia, o CDC também precisa ser modificado?
Oliveira Ascensão —
O CDC ultrapassou muito a sua função específica e introduziu na vida civil os princípios da Constituição de 1988. Como toda obra humana é sempre imperfeita, tem algumas coisas que podem ser aperfeiçoadas. Como eu sei que as frequentes alterações levam a resultados contraproducentes, proponho antes estudos para saber o que pode ser aperfeiçoado. Em todo o caso, a situação do Código Civil é muito mais grave.

ConJur — É possível usar o Código Civil para regular negócios fechados pela internet?
Oliveira Ascensão —
Em lugar algum no mundo a internet é regulada pelo Código Civil. O que interessa fazer com urgência é uma lei sobre comércio eletrônico para estruturar devidamente esta situação, quer em relação ao consumidor, quer em relação a muitos outros aspectos relevantes do comércio eletrônico.

ConJur — Como o senhor avalia a Constituição Federal do Brasil?
Oliveira Ascensão —
A influência da Constituição Federal é muito grande sobre o Direito em geral e não é diferente em relação ao Direito Civil. Por exemplo, a Carta traz princípios como a função social. Mas a Constituição brasileira tem alguns aspectos que me parece duvidoso que sejam matéria constitucional. É uma Constituição muito extensa e que vai aumentando cada vez mais com a introdução de novas matérias. Não vejo que seja necessário mexer na Constituição para introduzir mais princípios abrangentes pelo Direito privado. Sempre pode se aperfeiçoar, mas não vejo nada urgente.

ConJur — Ao sofrer uma média de três emendas por ano, a Constituição vai perdendo as suas características originais?
Oliveira Ascensão —
Na Europa, as Constituições têm uma permanência muito grande. Não há alterações constantes e elas não são maleáveis como a Constituição brasileira. Uma Constituição que é muito alterada perde alguma coisa da sua dignidade constitucional, digamos assim. De uma forma paradoxal, vejo que se quisermos assegurar um princípio é melhor colocá-lo no Código Civil do que na Constituição Federal, porque o Código Civil é mais permanente.

ConJur —O senhor acha que alterar a Constituição Federal faz dela uma lei de conveniências?
Oliveira Ascensão —
É um dos perigos. A Constituição Federal passa a repercutir situações efêmeras em vez de ser aquela regra de jogo geral que se pensa quando se fala de uma Constituição.

ConJur — Como o Direito brasileiro é visto no exterior?
Oliveira Ascensão —
O conhecimento dos grandes monumentos jurídicos de um país pelos outros é restrito a uma camada muito fina da população, como os juristas, os estudiosos e particularmente os que fazem as comparações dos ordenamentos jurídicos. Vejo que a Europa tem interesse pelo Brasil, mas o processo legislativo e as leis que aqui são depois consideradas inconstitucionais não influem nos negócios jurídicos e investimentos, pois isto está mais afeto à adequação das leis do que ao Direito Constitucional. Em todo caso, a obediência às leis é algo mais grave do que a existência da lei, isto é, o que importa é a efetividade das leis. O que preocupa e traz insegurança jurídica é quando há leis que não correspondem à prática.

ConJur — Isso acontece no Brasil?
Oliveira Ascensão —
O atual Código Civil brasileiro baseia-se numa confiança no intérprete, naqueles que atuam com a lei. Ou as pessoas têm a formação jurídica que lhes permita aplicar certeiramente a lei ou então caímos na arbitrariedade. Se tivermos uma boa lei, e o Código Civil é uma boa lei, mas não tivermos uma boa formação jurídica, entramos na insegurança jurídica.

ConJur — O brasileiro é um povo muito apegado a positivar as leis?
Oliveira Ascensão —
A situação do Brasil é muito paradoxal. No século XIX e grande parte do século XX, o Brasil viveu numa situação de positivismo jurídico. Considerava-se que as leis deviam ser aplicadas cegamente. Ainda assim, havia e há uma discrepância entre o que dizem as leis e o que se aplica. É um problema de formação jurídica. É preciso que as pessoas que aplicam a lei tenham a formação jurídica adequada para manusear as leis que agora já não são rígidas, não são mais aqueles instrumentos que tiravam do juiz a possibilidade de procurar algo mais perfeito. Se o juiz não é capaz de utilizar esse instrumento, o resultado não é bom. Tenho esperança de que o Código Civil seja um estímulo ao reforço da formação jurídica. Portanto, estamos entre uma potencialidade e um risco. Vamos ver o que acontece.

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