Diplomacia judiciária

Direitos Humanos terão jurisprudência global

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5 de abril de 2009, 10h02

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Apesar de o Direito Internacional viver espremido entre as diferenças culturais dos povos e um padrão mínimo de garantias fundamentais essenciais ao ser humano, a professora e procuradora do Estado de São Paulo Flávia Piovesan aposta na solidificação de uma jurisprudência global sobre Direitos Humanos. Para tanto, a ausência de uma força militar que garanta a efetividade das decisões das cortes internacionais não faz tanta falta. A credibilidade que as cortes regionais — como a Europeia, a Interamericana e a Africana — já têm  é meio caminho andado, acredita. “O Estado de Direito é aquele em que o ‘poder desarmado’, que é o Judiciário, tem a última palavra. Não é a faca, não é a bala, é a caneta, o que pode ser ampliado a todas as esferas: local, regional e global.”

A visão otimista é de uma estudiosa que tem dedicado a vida a pesquisar os Direitos Humanos. Professora doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e do Paraná, Flávia Piovesan divide seu tempo entre a Procuradoria do Estado de São Paulo, as aulas no Brasil e palestras e estudos ao redor do mundo pela Organização das Nações Unidas. Seu trabalho foi reconhecido este ano pela comunidade jurídica, que cogita seu nome para ocupar uma possível vaga a ser deixada pela ministra Ellen Gracie no Supremo Tribunal Federal. Em entrevista à Consultor Jurídico, no entanto, a procuradora disse não acreditar que vai ser convidada para ser ministra. "Meu compromisso é com os Direitos Humanos, área em que tenho competência para trabalhar. Tenho que aprender muito ainda para lidar com as outras áreas."

A procuradora explica que a aceitação multilateral de uma Justiça global passa por uma redução da disparidade econômica entre as nações. Um desenvolvimento menos desigual entre os povos, nesse caso, garantiria vantagens econômicas e sociais de uma forma geral, contrariando a velha máxima de que, para haver ricos, é necessário que haja pobres. Segundo Flávia, o mundo chegou a um ponto da História em que as plataformas econômicas e sociais começam a convergir.

No campo dos Direitos Humanos, o ganho é ainda maior. Temas que antes eram reputados como de competência exclusiva de políticas públicas, como o combate à pobreza, ganham espaço nas definições quanto aos direitos fundamentais do homem. “A pobreza já foi vista como crime de vadiagem. Hoje, há projetos que tentam colocar a pobreza como violação aos Direitos Humanos. Direitos sociais devem ser vistos como direitos, não como generosidade, compaixão ou caridade”, afirma a especialista.

Flávia considera que a falta de recursos financeiros é um dos fatores que mantêm o abismo entre a população e o Judiciário. Segundo a procuradora, apenas 30% dos brasileiros têm acesso à Justiça, a maioria deles das regiões Sul e Sudeste, onde as taxas de Índice de Desenvolvimento Humano são as maiores do país. “Isso tem haver com educação e percepção dos direitos.” Flávia é favorável a ações afirmativas como a Lei de Cotas para negros nas universidades públicas. O fato de 74% dos pobres serem afrodescendentes, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, são motivo suficiente para a tomada de medidas que abram acesso imediato a centros de pesquisa e de discussões intelectuais a esses desprestigiados.

Em entrevista à Consultor Jurídico, a procuradora também comentou a recente abertura do Supremo Tribunal Federal aos temas ligados aos Direitos Humanos e se disse devota da proposta de revisão da Lei de Anistia. 

Leia abaixo a entrevista.

ConJur A senhora está entre os nomes cogitados para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal. Acredita que vai ser convidada para a próxima vaga aberta?
Flávia Piovesan
— Não. Eu fico muito honrada com a possibilidade, mas meu compromisso é com os Direitos Humanos, área em que tenho competência para trabalhar. Tenho que aprender muito ainda para lidar com as outras áreas.

ConJur — A agenda do Supremo dá o espaço necessário a temas ligados aos Direitos Humanos?
Flávia Piovesan — Há seis anos, uma pesquisadora norteamericana que acompanha o trabalho das cortes supremas brasileira e argentina na temática dos Direitos Humanos me indagou quais eram as principais discussões dessa natureza no Brasil e eu fiquei constrangida em perceber que poucos eram os casos impactantes referentes a direitos fundamentais que já haviam sido enfrentados pelo Supremo. Mas isso mudou. A pauta do Supremo se torna cada vez mais instigante nesse sentido. Temas afetos à cidadania chegam com grande voracidade à corte. Hoje, há debates como a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, violência contra a mulher, uso de células-tronco embrionárias em pesquisas, união homoafetiva, direito à informação e acesso aos arquivos do período do regime militar, reclamados em ação contra a Lei 11.111/05, que criou documentos ultra-secretos.

ConJur — Por que houve essa mudança de cenário?
Flávia Piovesan — Reputo a três fatores. Um é a extensão da legitimação para o uso de institutos como a Ação Direta de Inconstitucionalidade. O rol dos legitimados para entrar com essas ações foi ampliado. Outro fator foi a maior agilidade e transparência do Supremo. A TV Justiça, por exemplo, tornou o tribunal mais palpável, o que encoraja a sociedade a provocar mais a corte. O terceiro fator são as audiências públicas e a figura do amicus curiae.

ConJur — Foi um despertar tardio?
Flávia Piovesan — Nós tivemos a transição política em um ritual lento e gradual em direção à democracia. Vários países, quando fizeram o mesmo ritual de passagem, fortalecem suas instituições, criaram novos textos e também novas cortes constitucionais. Nós não. Adotamos um pacto jurídico que é a Constituição, mas não alteramos, na ocasião, o órgão guardião da Constituição. Ele foi herdado do passado, com as suas potencialidades e heranças de épocas sombrias, ditatoriais. Teve uma composição marcadamente civilista, com a liderança do ministro Moreira Alves que, no entanto, nunca viu o tema com o coração aberto, com um sentimento constitucional. Mudamos tudo com a Constituição, mas a entregamos a um guardião antigo. Esse novo órgão renasce hoje — talvez a partir da reforma [a Reforma do Judiciário, promulgada pela Emenda Constitucional 45/04] — com uma nova configuração, uma nova composição. Como professora de Direito Constitucional, fico muito feliz em debater temas sobre os quais as únicas referências eram de cortes de outros países. Hoje é o nosso Supremo quem está fazendo a diferença.

ConJur — O Judiciário ganhou importância na medida em que o Legislativo perdeu crédito?
Flávia Piovesan — Em certo grau, sim. Há temas que se deslocam da arena do Legislativo para a arena jurisdicional. A união homoafetiva, por exemplo, é um tema que não ganhou consenso no Legislativo, por isso foi para a esfera jurisdicional. A Lei de Anistia, que tanto se falou em revisão, mas não houve acordo, foi ao Judiciário por meio de ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental] do Conselho Federal da OAB. Sempre que grupos humanitários se sentem derrotados no Legislativo, vão ao Supremo. O próprio presidente do Senado Federal reconheceu que o poder não convive com o vácuo. Esses temas acabam sendo enfrentados em outra arena.

ConJur — O Judiciário ocupa esse lugar adequadamente?
Flávia Piovesan — Sim. É fascinante ver uma líder indígena tomar a palavra em uma audiência e fazer sustentação oral, como no julgamento da reserva Raposa Serra do Sol. Este é um Supremo muito mais accessível e transparente. Os indígenas, embora não estejam no rol de legitimados para propor ADI, chegaram à corte por meio de Ação Popular. Foram ao Supremo como cidadãos, para o exercício de um direito político.

ConJur — É possível haver uma jurisprudência internacional sobre Direitos Humanos?
Flávia Piovesan — Há dois extremos nesse debate: aqueles que sustentam ser a cultura a fonte dos direitos e aqueles que sustentam ser o valor da dignidade humana, esse mínimo ético irredutível que seria compartilhado, em maior ou menor grau, por todos. De um lado estão os universalistas, que pregam a existência de uma moral universal, e do outro, os relativistas, que entendem que isso é uma visão eurocêntrica e que, na verdade, diante do pluralismo cultural, cada cultura teria o seu próprio sistema de valores e de moralidade. Há também posições intermediárias, assim como universalistas chamados de radicais, fortes ou fracos. Eu me reputo como uma universalista, não etnocêntrica, mas pluralista e aberta ao diálogo intercultural. Para termos um entendimento correto, nós temos que passar da lente que demarcou o “pós 11 de setembro”, que era o choque civilizatório, para o “dialogue civilization”.

ConJur — Como as cortes internacionais podem fazer cumprir suas decisões?
Flávia Piovesan — Há uma crítica ao Direito Internacional de que ele não teria garras e dentes, capacidade satisfatória. Hoje, há um crescente processo em que o Direito Internacional passa a adquirir garras e dentes, com a criação de cortes internacionais, como o Tribunal Penal Internacional, a Corte Européia e a Corte Interamericana. Nas cortes regionais, por exemplo, como a Europeia, a Interamericana e a Africana, como a base regional é mais uniforme, há um grau maior de legitimidade. Hoje o tema do Direito Constitucional é essa crescente abertura ao diálogo, inclusive com outras jurisdições. É comum na Europa a corte espanhola se fundamentar em julgados da corte alemã, ou o tribunal português fazer menção a julgados da corte espanhola.

ConJur — O Brasil está no mesmo caminho?
Flávia Piovesan — O sistema interamericano está em uma posição intermediária, assim como o sistema africano, mais debilitado e mais recente também. Há insistentes esforços para a criação do sistema asiático e árabe. Na África, há o caso do Sudão, que se nega a cumprir ordens do Conselho de Segurança da ONU de entregar genocidas. A Justiça internacional, na figura do Tribunal Penal Internacional, deveria combater a impunidade de crimes como esses, mais graves. Hoje, os únicos quatro casos que há no TPI são do Congo, Uganda, República Centro-Africana e Sudão. São países que tiveram uma descolonização muito recente. Em 1945, havia apenas dois países na África. Hoje, depois que a ONU foi criada, há mais de 54. Mas a Justiça não pode ser seletiva. Não pode haver qualquer sombra de neocolonialismo.

ConJur — O fim da prisão em Guantánamo é um passo nessa direção?
Flávia Piovesan — Estou à espera da concretização da plataforma Obama, que fez questão de ter como primeiro ato público o aviso ao mundo sobre o fechamento de Guantánamo, prisão que simboliza a negativa da lógica dos Direitos Humanos. Os acusados nem têm ideia do porquê estão lá. Não têm acesso a advogados, ao contraditório, à ampla defesa ou ao devido processo legal. O fechamento de Guantánamo significa não só a restauração da legalidade do Estado de Direito, esse despertar para a razão pública, mas também simboliza o fim da era Bush, aquela ideia do Ato Patriota, que é expressamente a negativa de direitos ao chamado combatente inimigo, com a autorização para interrogatórios duros e tortura moderada. O fechamento de Guantánamo, em outras palavras, significa tortura nunca mais.

ConJur — Guantánamo foi tratado pela comunidade internacional com condescendência? Sob esse prisma, a reação dos africanos às decisões da ONU não é compreensível?
Flávia Piovesan — Houve derrotas importantes sofridas por Bush no Judiciário americano, que invalidaram os tribunais militares de Guantánamo. O papel do Judiciário foi decisivo para coibir os piores abusos. Os Estados Unidos também sempre obstaram juridicamente que o assunto fosse discutido na Corte Interamericana.

ConJur — Essa disparidade de tratamentos entre diferentes nações não é um exemplo de que uma atuação efetiva de um tribunal internacional ainda está longe de acontecer?
Flávia Piovesan — Estamos assistindo a um esforço embrionário de criação da Justiça internacional no campo penal. Eu me recordo de quando dava aulas em 1994 e falava sobre a campanha mundial da Anistia Internacional para a criação do Tribunal Penal Internacional. Nem os mais otimistas imaginariam que, em 1998, haveria consenso para que ele fosse criado e que, já em 2002, já tivessem as 60 ratificações necessárias ao Estatuto de Roma. Há um grande desafio do TPI para firmar a sua identidade nestes primeiros anos. Durante esse início, ele deve atuar com firmeza, integridade e ética para ganhar credibilidade. É instigante pensar que 108 Estados já aderiram ao estatuto, sendo que ainda não há um julgado ou sentença, apenas ordens de prisão esparsas. Aos que criticam, eu digo que é isso ou a lei da selva, ou é isso ou é a lei de Darwin, é o forte contra os fracos. O multilateralismo, por mais debilidades e limitações que tenha, também tem algumas potencialidades e reduz o largo mar de discricionariedade. O Estado de Direito é aquele em que o poder desarmado, que é o Judiciário, tem a última palavra. Não é a faca, não é a bala, é a caneta, o que pode ser ampliado a todas as esferas, local, regional e global.

ConJur — Essa já é uma ideia consentida mundialmente?
Flávia Piovesan — O distanciamento está se tornando um pouco menor porque a política Bush de unilateralismo começa a ser enterrada. Não há mais espaço para ataques preventivos sem qualquer constrangimento por causa da hegemonia bélica militar dos Estados Unidos. O discurso de Obama e Hilary Clinton é buscar o multilateralismo. Em seu livro The Paradox of American Power, o professor Joseph Nye reconhece que, se os Estados Unidos têm um projeto de poder a médio ou longo prazo, isso não é sustentável só na bala. Ele deve partir para a soft law, para negociações, para a diplomacia. A Hilary tem se valido desse autor para determinar a linha da política de Estado. É o poder inteligente, capaz de negociar, de ouvir, de dialogar. A política externa norte-americana tem se guiado pela importância do diálogo. Os primeiros discursos do Obama foram: “Nós temos que ouvir os outros, ouvir os mulçumanos, reconhecer as diversidades”.

ConJur — A efetividade do Tribunal Penal Internacional depende de uma redução na disparidade econômica entre os países?
Flávia Piovesan — Este é um tema em que eu tenho trabalhado bastante. Vou representar a América Latina em uma força tarefa da ONU voltada à implementação de direito ao desenvolvimento. Um comitê formado por cinco pessoas irá discutir como avançar na pauta do desenvolvimento. O grupo será liderado pelo professor norte-americano Stephen Marks, da Harvard School of Public Health. Há também um professor da Holanda, representando a Europa, uma professora do Japão e outra da África. Nós estamos trabalhando com três perspectivas: acesso a medicamentos essenciais — como para tuberculose, malária e Aids, áreas em que o Brasil tem política exemplares —; alivio da dívida, sobretudo a países atendidos pelo FMI, Banco Mundial (Bird) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bid); e transferência de tecnologia. A ideia hoje é que não há ricos sem pobres. Mas será que não é possível um desenvolvimento em que todos sejam incluídos ou será que nós teremos os subintegrados e os superintegrados? Dados da Organização Mundial de Saúde apontam que a pobreza é a maior causa de mortes do mundo. É fundamental, quando se fala em desenvolvimento, não só pensar em políticas domésticas, mas também nessa relação entre o Hemisfério Norte e o Hemisfério Sul, no papel de cada nação nessa nova arquitetura mundial.

ConJur — Já há em quem detém o poder uma preocupação com uma polícia mais igualitária?
Flávia Piovesan — Temos hoje uma arena muito privilegiada para se pensar isso. Eu participo todos os anos do Fórum Social Mundial. No primeiro que foi realizado, o presidente Lula acabara de ser eleito e os participantes estavam emocionadíssimos. As plataformas econômicas e sociais, antes totalmente divergentes, pela primeira vez tinham uma convergência. Recentemente, a revista The Economist, que embora liberal, é consistente, publicou uma matéria de três páginas louvando propostas do Fórum Social Mundial em três frentes: repensar o papel do Estado diante do colapso financeiro internacional, repensar os papéis do setor privado e dos mercados e elaborar uma nova arquitetura financeira internacional. Cuba e China já defendem uma convenção sobre direito a desenvolvimento, querem algo mais duro, mais firme. Há outros países que entendem não ser adequado classificar esse tema como direito. O desenvolvimento seria uma concepção mais abrangente.

ConJur — Não há como falar em Direitos Humanos hoje sem considerar o desenvolvimento econômico?
Flávia Piovesan — É isso. No Brasil, por exemplo, a pobreza já foi vista como crime de vadiagem. Hoje, há projetos que tentam colocar a pobreza como violação aos Direitos Humanos. Direitos sociais devem ser vistos como direitos, não como generosidade, compaixão ou caridade. Essa é a voz do Hemisfério Sul. Quando fiz doutorado em Harvard, em 1995, meu orientador dizia que Direitos Humanos são civis e políticos, como liberdade de expressão e direito à vida. Direitos sociais, para ele, eram um tema transitório, que dependiam de políticas públicas e não estavam na gramática do Direito. Nós vivemos em uma ordem macroeconômica muito assimétrica, em que os 15% mais ricos detêm 85% da renda e os 85% mais pobres ficam apenas com 15% dela. A América Latina, embora não seja a mais pobre, é ainda a região mais desigual. E nela, o Brasil é onde a desigualdade é maior que em todos os outros.

ConJur — Isso deságua no Judiciário?
Flávia Piovesan — Sim. Há certo estranhamento recíproco entre o Judiciário e a população. Para a população, o grande problema da Justiça é que ela é inacessível. Para o juiz, o problema é o mesmo: a população é distante. Dados do IBGE mostram que apenas 30% da população têm acesso à Justiça. Estudos da pesquisadora Maria Tereza Sadek apontam que há uma relação entre IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] e litigância. As regiões que mais litigam são a Sul e a Sudeste porque litigar tem haver com educação e percepção dos direitos.

ConJur — A interpretação dada pelo Supremo quanto à hierarquia infraconstitucional e supralegal dos tratados internacionais de Direitos Humanos anteriores à Reforma do Judiciário atende às expectativas internacionais?
Flávia Piovesan — A Constituição de 1988 criou um regime jurídico misto, que trata de forma diferente os tratados de Direitos Humanos e os demais tratados tradicionais. Os de Direitos Humanos têm hierarquia constitucional e incorporação automática a partir da ratificação. Os tratados tradicionais têm hierarquia infraconstitucional e incorporação não automática. Isso porque deve-se tratar distintamente uma convenção pela abolição da pena de morte e uma convenção de exportação de abacaxis. Até 1977, o Supremo defendia o primado do Direito Internacional em detrimento do Direito interno, até que houve o julgamento do Recurso Extraordinário 80.004. O Supremo encarou o assunto com uma Constituição do passado e em relação a um tema não ligado a Direitos Humanos. A disputa era a Convenção de Genebra sobre notas promissórias e notas de câmbio e um decreto-lei posterior que era incompatível com essa convenção. Em um longo julgado, não unânime, entendeu-se que o decreto-lei merecia a prevalência, entendendo-se que havia paridade hierárquica entre tratado e lei e, portanto, norma posterior revoga a anterior. Os internacionalistas ficaram indignados porque há um ritual para se entrar no jogo internacional e outro para sair, que não é simplesmente descumprir um tratado, mas se retirar solenemente por meio do instrumento da denúncia. Princípios como boa-fé foram esquecidos. Isso durou de 1977 até 1995. Então surgiu no STF um pedido de Habeas Corpus tratando de prisão civil para o depositário infiel, que invocava a Convenção Americana de Direitos Humanos. O relator foi o ministro Celso de Mello, de quem eu sou admiradora, mas com quem fiquei decepcionada nessa ocasião. Ele herdou a posição do julgado de 1977 e levantou a tese da paridade, que foi majoritariamente aceita pelo Supremo. Foram votos vencidos os ministros Carlos Velloso, Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence. Às vezes, os votos vencidos acabavam aderindo à tese majoritária e o placar para esse tema era oito a três ou 11 a zero a favor da prisão civil.

ConJur — A virada no ano passado foi radical, então?
Flávia Piovesan — No julgamento do Recurso Extraordinário 466.343, o placar foi de 11 a 0 contra a prisão civil, inclusive com um voto maravilhoso do ministro Celso de Mello que, humildemente e com grandeza humana, reavaliou sua posição. O Supremo, hoje na voz dos 11 ministros, acolhe a tese do regime jurídico misto. Isso é consenso. O dissenso é qual seria o status privilegiado dos tratados de Direitos Humanos. O ministro Gilmar Mendes, liderando a maioria dos ministros, entende que a hierarquia seria supralegal e infraconstitucional. A outra corrente defende a hierarquia constitucional.

ConJur — Já dá para saber quais os resultados práticos dessa mudança?
Flávia Piovesan — Desde dezembro até hoje nós temos um novo momento. Isso terá um impacto muito grande, primeiro, na divulgação dos tratados e na sua aplicação. A primeira convenção que nós tivemos aprovada no novo ritual, e que portanto tem status formal de emenda à Constituição, é a Convenção para a Proteção dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Isso aconteceu em julho do ano passado, quando o Decreto Legislativo 186/08 foi promulgado, em 10 de julho. O Supremo ainda pode avançar nesse tema porque a votação foi apertada em relação à hierarquia.

ConJur — Como lidar com movimentos sociais quando eles extrapolam os limites da lei, como no caso dos assassinatos cometidos por integrantes do Movimento dos Sem Terra?
Flávia Piovesan — Eu vejo com muita preocupação a tentativa de criminalizar os movimentos sociais. Não há dúvida de que a atuação dos movimentos deve se dar com responsabilidade. A sociedade brasileira foi reinventada na democratização, quando explodiu o número de organizações não governamentais. Os movimentos são novos atores hoje, que sabiam atuar muito bem durante a ditadura porque a defesa de Direitos Humanos era contra o Estado, denuncista. Com a democratização, houve uma crise de identidade de muitos movimentos, que ao invés de denunciar, passaram a ser colaboradores do Estado. A discussão agora é como ter autonomia e independência, mas também ser prepositivo. À luz dos novos fatos e valores, nós temos que nos reinventar sempre. Por outro lado, vejo com preocupação essa inclinação em tratar o movimento social com bala. Isso não é compatível com o regime democrático. Os excessos têm que ser controlados, mas de uma maneira menos truculenta.

ConJur — Qual o enfoque adequado para a questão da revisão da Lei de Anistia e da punição a torturadores?
Flávia Piovesan — Os países que tiveram as experiências mais exitosas na passagem para o regime democrático, que tiveram melhor consolidado seu Estado de Direito, foram aqueles que percorreram a Transitional Justice em quatros dimensões: acesso às informações, reparação, reformas institucionais e Justiça, que significa punições. Se nos compararmos com a Argentina, o Uruguai e o Chile, nós ficamos para trás.

ConJur — Por quê?
Flávia Piovesan — Há uma proibição internacional absoluta com relação à tortura. Ninguém pode admitir tortura e impunidade com relação à tortura. É dever do Estado investigar, processar, punir e reparar. Há dois casos recentes, um peruano e outro chileno, em que a Corte Interamericana invalidou leis de anistia por significarem a perpetuação da impunidade, uma injustiça continuada e permanente e por violarem parâmetros mínimos. Eu corroboro o que diz o ministro Paulo Vannuchi [da Secretaria Especial dos Direitos Humanos] quando ele diz que esse não é um tema do passado, mas do presente. Eu, que já era convencida dessa causa, fiquei quase que devota quando, no dia 31 de julho do ano passado, em uma audiência pública do Ministério da Justiça sobre o tema, me sentei ao lado de uma professora aposentada, de cerca de 75 anos de idade, que disse ter três irmãos assassinados na ditadura, um deles com indícios de ter tido a cabeça decepada entregue como prêmio a militares. Eu saí de lá me perguntando se caberia indiferença com esse passado. Será que essa mulher, como a Antígona de Sóflocles, não teria o direito sagrado ao luto? É uma tortura psicológica não poder enterrar seus familiares. Em qualquer cultura, esse é um ritual sagrado. Há povos que enterram, outros que queimam, outros lançam flores, mas a ritualização da morte é sagrada. Isso também se relaciona com o desarquivamento das informações militares do regime. É nosso direito coletivo saber quem somos, qual a nossa História. Não havendo isso, há um continuísmo autoritário dentro da democracia.

ConJur — Que ainda legitima a tortura como aceitável em certos casos?
Flávia Piovesan — Há um ano, um orientando meu em doutorado, delegado, professor da academia de Polícia, me apresentou um projeto. A questão que ele levantava era “Por que a tortura persiste sendo a principal forma de investigação nas delegacias?” Eu quase caí de costas. Não era Anistia Internacional falando, era um delegado assumindo a prática. Isso tem a ver com um ranço do passado, que nós não conseguimos cortar. Temos que colocar o dedo nesta ferida porque incomoda. Nenhum presidente da República quis enfrentar este tema. Todos dizem que é delicado. Ninguém quer enfrentar as Forças Armadas, há uma acomodação conveniente. Enquanto em outros países há militares que perdem a aposentadoria por esses abusos, aqui eles dão nome a praças. O Brasil destoa em relação ao direito à verdade.

ConJur — Como a sociedade percebe essas consequências?
Flávia Piovesan — No início de março, uma reunião do Conselho dos Direitos da Pessoa Humana, em Brasília, contou com autoridades do Rio de Janeiro para debater as milícias no Rio de Janeiro. Há uma promiscuidade de forças, em que o Estado monopoliza a força e mantém uma relação com o crime organizado. É por isso que são necessárias reformas institucionais. Há dados que apontam que 22% das armas localizadas com os bandidos no Rio de Janeiro vêm das Forças Armadas. Nós herdamos o aparato repressivo tal como ele existia, com poucos nuances de mudanças.

ConJur — Se a Lei de Anistia tem de ser revista quanto aos atos dos torturadores, também não deve rever o perdão dado a militantes de esquerda por ações terroristas?
Flávia Piovesan — São dois atos diferentes. De um lado, indivíduos atuavam em nome do Estado. Ou seja, a população se desarma, entrega suas armas ao Estado, que monopoliza a violência, recebe impostos e tortura essa população. Isso não tem sentido. Houve abusos por parte das resistências, mas não podemos equiparar. Tortura não pode ser entendida como crime político, então não poderia ser alvo de anistia.

ConJur — A comparação com o regime militar de outros países e em um contexto histórico diferente não é desproporcional?
Flávia Piovesan — Sem dúvida isso deve ser levado em conta, mas a tortura é inadmissível sob todos os pontos de vista. O Estado, garantidor de direitos, se transforma em assassino. Também não é possível alegar que o sujeito seguiu ordens, como se tivesse perdido a capacidade de refletir, como se lhe tivesse sido eliminado o juízo ético de identificar o que é justo, certo ou errado. A tortura é inescusável. Não há tempo o que apague.

ConJur — A lei de cotas também é uma forme de reparação plausível?
Flávia Piovesan — Eu defendo as ações afirmativas, mas elas não são o único caminho. Também é fundamental apostar em políticas universalistas, educação e saúde para todos. Mas é preciso aliviar, remediar uma situação pretérita de um forte padrão discriminatório, e também transformar o presente e o futuro. Como professora da PUC [Pontifícia Universidade Católica] devo ter, em média, 200 alunos. Se entre eles dois ou três forem negros, já é muito. O número de afrodescendentes em universidades públicas no Brasil é inferior a 3%, um dado pior que os da África do Sul pós-Apartheid. Então, nossos territórios são brancos. Por isso é importante democratizar o caminho. Se eu, como procuradora, quero ter mais colegas afrodescendentes na minha instituição; se como professora da PUC quero ter mais colegas, médicos, dentistas, engenheiros negros, o requisito é o diploma universitário. É paliativo, mas é uma porta de democratização. Pelo ângulo jurídico é absolutamente sustentável, já que a convenção racial permite a adoção de medidas especiais temporárias para acelerar o processo de construção da igualdade. Além disso, conviver com o diverso é o melhor exercício para você se questionar, porque aí se chega a uma grande conclusão. Essas construções rompem com a passividade de que isso sempre foi assim e não vai mudar.

ConJur — Essa questão da política de igualdade não insere uma disputa racial que não existia antes?
Flávia Piovesan — Vai haver tensões, sem dúvida. Basta ver o número de Mandados de Segurança pedidos por estudantes brancos que tiveram pontuação maior nos vestibulares, mas foram afastados em prol de grupos vulneráveis. Por outro lado, a racialização e etinização já existem. A pobreza é racializada e etinizada. Segundo o Ipea [Instituto de Pesquisas Econômicas Avançadas], 74% dos pobres são negros. Meus amigos militantes negros sempre dizem que não existe essa história de não saber quem é negro porque a Polícia sabe quem é negro quando quer bater. Outro argumento do Ipea é que as políticas universalistas não dão conta de estreitar a distância que há entre brancos e negros no Brasil. A distância que havia na época dos nossos bisavós hoje é a mesma, ainda que a curva seja ascendente, ou seja, que um número maior de brancos e negros tenha acesso a educação e à saúde. Nada garante que essas políticas vão resolver, mas vale a pena arriscar. Obama, sua mulher Michelle, Colin Power, Condolezza Rice e tantos outros foram frutos de ações afirmativas nos Estados Unidos. Lá elas foram adotadas desde o final da década 1950. Em quatro décadas, triplicou a classe média negra. Aqui, as medidas foram adotadas depois em 2001. Ainda é cedo para avaliarmos os impactos, mas o que eu tenho acompanhado é que os cotistas têm tido uma performance muito positiva, talvez até pelo peso da responsabilidade de ter entrado por essa porta.

ConJur — Não seria mais adequado usar o critério econômico para as cotas, e não o racial?
Flávia Piovesan — Eu sou favorável a que se mesclem critérios econômicos e raciais, ainda que eles se confundam, se nós avaliarmos os dados do Ipea. Mas, mesmo assim, a distância ainda é evidente. Temos uma maratona, em que o ponto de chegada é o mesmo. Só que os brancos largam na frente, então é lógico que vão chegar antes. Há urgência em criar as oportunidades.

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