Entrevista: Júlio Aurélio Vianna Lopes, cientista político
19 de outubro de 2008, 1h00
“A Constituição é fraca nos pontos em que houve menos política”, afirma o cientista político e pesquisador do Direito Júlio Aurélio Vianna Lopes. Ao analisar as votações no período em que nascia a Constituição, o pesquisador constatou que dispositivos, como o que estabelece a licença maternidade, aprovados por uma ampla maioria, além de não serem questionados estão sendo ampliados.
Já os temas em que as lideranças se atrapalharam, como a questão agrária ou do sistema financeiro, não ficaram resolvidas. “Pelas interrupções e pedidos de esclarecimento, podia se perceber que não havia consenso político nessas votações”, explica.
Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Júlio Aurélio falou sobre o ambiente em que se deu a discussão e a aprovação da Constituição de 1988: os grupos ideológicos que compunham a constituinte, os grandes debates sobre partes importantes da Carta, como o preâmbulo, a escolha do sistema de governo, a ordem econômica e o direito de propriedade.
Segundo o pesquisador, não foi a Constituição que “travou” o país e sim o processo político posterior ao texto. “Há coisas que são creditadas à Constituição, mas a experiência histórica mostra que não tem nada a ver com o texto”, afirma. Para Júlio Aurélio, mesmo nos pontos em que a Constituição não contribuiu para melhorar, a situação seria pior sem os dispositivos constitucionais. “Se não houvesse previsão de juizados especiais, não teríamos nem o que regulamentar”, exemplificou.
Pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, Júlio Aurélio estudou os Anais da Assembléia Nacional Constituinte, cedidos pelo Congresso à fundação localizada no Rio de Janeiro. O resultado da pesquisa deu origem ao livro A carta da democracia – O processo constituinte da ordem pública de 1988 (Topbooks, 2008).
“O que eu fiz como pesquisador da casa Rui Barbosa foi analisar a constituinte que fez a atual Constituição. Era um trabalho que ainda não tínhamos feito”, afirma. Ele conta que estudou os mais de 30 volumes com os registros da constituinte. “É um material que ninguém havia, lido ainda”, afirma o doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e jurista em Direito Constitucional, Júlio Aurélio.
Leia a entrevista
ConJur — Quais eram as forças presentes no momento em que a Constituição de 1988 foi elaborada?
Júlio Aurélio — Estavam presentes todas as ideologias. Basicamente eram esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita e direita. Mas elas foram se compondo e, ao final, formaram quatro grupos Constituintes. A imprensa conhecia três: as esquerdas, a centro-esquerda, representada pelo grupo da comissão de sistematização, e a centro-direita, que se formou depois de um ano da Constituinte e se consolidou em um movimento chamado centrão. Este grupo era de reação às propostas da comissão de sistematização. Detectei, pela análise das votações, um grupo que eu chamei de centrinho. Era formado por mais de 100 deputado que “traíam” o centrão nas votações. O centrinho acabou sendo decisivo.
ConJur — Quem fazia parte do centrinho?
Júlio Aurélio — Membros do próprio centrão, Del Bosco Amaral (PMDB-SP), Raquel Cândido (PFL-RO), Mendes Ribeiro (PMDB-RS), Eraldo Trindade (PFL-AP). As bancadas do PTB e do PDT, que faziam parte do centrão, também mudavam de posição, como Gastone Righi (PTB-SP) e Siqueira Campos (PDT-GO). A Constituição foi elaborada por esses quatro grupos. As esquerdas e a direita não conseguiam emplacar nada sozinhas. Não tem um artigo da Constituição que seja uma proposta unilateral da esquerda ou da direita. Os artigos foram escritos por consensos entre as principais correntes.
ConJur — Na abertura da Constituição há referência a Deus. Como foi a discussão sobre o preâmbulo?
Júlio Aurélio — A primeira votação da Constituição foi a do preâmbulo, que teve duas polêmicas. A menor delas, resolvida rapidamente, foi a da invocação divina. Havia alguns deputados evangélicos que defendiam a citação de Deus no preâmbulo da Constituição e dois da esquerda, José Genuíno e Edmilson Valentim, que eram contra. Os dois perderam. Essa polêmica não durou mais de um dia.
ConJur — E qual foi a polêmica principal?
Júlio Aurélio — A propriedade privada e a democracia política eram dois temas chamados de buracos negros. Era quando ninguém conseguia obter maioria. O primeiro ponto que apareceu foi da soberania popular, que está no parágrafo único, do artigo 1º, da Constituição. Esse dispositivo é fruto de negociação. Naquele momento, foi muito importante o papel do presidente da Assembléia, Ulysses Guimarães, que conseguiu um acordo entre todos, da esquerda à direita. O líder da direita, Amaral Neto, chegou a ler uma proposta de preâmbulo que não citava sequer a democracia. Ele leu apenas para registrar e para que eu, como pesquisador, lesse 20 anos depois, porque a proposta sequer foi votada. A questão era se a democracia seria apenas representativa ou também participativa. O parágrafo único, do artigo 1º, diz que a soberania é exercida pelo povo através de representante ou diretamente.
ConJur — O artigo 5º, da Constituição, também foi bastante discutido.
Júlio Aurélio — Sim. O principal ponto se referia ao direito de propriedade. As divergências eram tão fortes que só se aprovou o artigo 5º depois de votar em separado o direito de propriedade.
ConJur — Quais eram as propostas de cada corrente sobre esse assunto?
Júlio Aurélio — As propostas da esquerda e da direita eram os pólos extremos e não chegaram ao plenário. As esquerdas diziam que a propriedade não deveria ser um direito, mas uma função social. Nessa idéia, o Estado poderia interferir muito mais na propriedade. Por exemplo, uma pessoa que mora sozinha e tem dois carros deveria sofrer uma tributação maior, porque tem uma propriedade que não atenderia a uma função social; não serviria ao bem estar coletivo, pois sai com um e deixa o outro em casa. O centrinho dizia que a propriedade era um direito individual como qualquer outro e o centrão, que era um direito superior aos demais e que deveria ser mais protegido.
ConJur — E qual foi a solução?
Júlio Aurélio — A confrontação foi entre a concepção da comissão de sistematização e a do centrão com posição já bem moderada. Praticamente foi resolvida pelo relator Bernardo Cabral através de um “texto sugestão”, dizendo que a propriedade é um direito, mas, em seu exercício, atenderá às funções sociais previstas em lei. Esse é o nosso regime de propriedade.
ConJur — Em que momento houve consenso entre as correntes da Assembléia?
Júlio Aurélio — Todas as correntes defendiam que os direitos fundamentais deveriam vir antes do Estado no texto constitucional. É a parte da espinha dorsal da Constituição, que se refere, primeiro, aos direitos e, depois, ao Estado. Todas as Constituições brasileiras anteriores começavam com o Estado e só no final q determinavam os direitos – e eram sobre alguns remédios judiciais, como Habeas Corpus e Mandado de Segurança. O que tem mais solidez na Constituição e que não vem sendo questionado por emenda constitucional são as propostas em que houve consenso. Pode haver vários projetos tramitando no Congresso, mas os dispositivos mais vulneráveis são os que enfrentaram maiores dificuldades de negociação política para serem aprovados.
ConJur — E os artigos que ainda não foram regulamentados, também houve dificuldade para aprová-los?
Júlio Aurélio — Exatamente. No caso dos bancos, por exemplo, a citação dos 12% de juros foi sem negociação; uma votação atabalhoada. Houve discussão até com xingamentos. O processo político é sólido quando tem o maior apoio possível. Mas a falta de leis para regulamentar artigos da Constituição deve-se ao Congresso Nacional de 1988 para cá e não à Constituinte. É o Congresso que deveria ter dado conta disso após a promulgação do texto constitucional.
ConJur — Como resolver a falta de regulamentação?
Júlio Aurélio — Através da prioridade na tramitação de projetos de leis regulamentares da Constituição tal como as medidas provisórias têm hoje. A Câmara e o Senado também podem assumir a incumbência de apresentar projetos para regulamentar assuntos sobre os quais não há qualquer projeto apresentado na casa. Não é preciso mais do que estabelecer isso no regimento interno através de um decreto legislativo. É um problema de política.
ConJur — Quais foram os assuntos que não tiveram muitos problemas para serem aprovados e incluídos no texto?
Júlio Aurélio — Royalties de estados e municípios; acumulação de cargos ou empregos no serviço público por médicos e professores; o novo papel do Tribunal de Contas – houve consenso para ampliar a capacidade de fiscalização, auditorias, inspeções; direito de greve em geral; aposentadoria compulsória de servidores, involuntária, invalidez; a propriedade federal do subsolo. Com exceção da relativa a greve de servidores, todas as propostas tiveram mais de 90 % de aprovação. A greve dos servidores foi por 75 %.
ConJur — Por que não foi feita uma lei para regulamentar a greve do funcionalismo?
Júlio Aurélio — Porque o assunto não ficou bem definido. Aqueles que já provinham do Estado, que somavam mais que a maioria absoluta, e os movimentos sociais se contrapunham. Os movimentos sociais queriam a greve sem qualquer restrição. E os ex-gestores públicos defendiam que não existe em nenhum lugar do mundo greve de servidor público. A Constituição é fraca nos pontos em que houve menos política. Questões que foram aprovadas com maioria hoje estão sendo ampliadas, como no caso da licença maternidade, aprovada por 98% na Constituinte.
ConJur — E houve muitas negociações?
Júlio Aurélio — A grande maioria dos artigos da Constituição foi fruto de concessões mútuas entre pelo menos as duas principais correntes: centro-esquerda e centro-direita. No caso da ordem social, que é a última parte da Constituição, já havia tamanha experiência de negociação entre as correntes da Constituinte, que foi votada mais rapidamente do que a econômica e a ordem pública. O que tornou difícil a negociação foi a indefinição do sistema de governo. Ao não estabelecer o sistema de governo, não se definem várias outras coisas.
ConJur — E como foi a discussão sobre o sistema de governo?
Júlio Aurélio — Os dois sistemas, parlamentarismo e presidencialismo, têm vantagens e desvantagens. As duas correntes principais não chegaram a uma negociação. Não foi porque uma se impôs à outra; foi pior do que isso. Houve o que eu chamo de dissociação política. Em vez de negociar, eles se afastaram. Os parlamentaristas propunham um parlamentarismo com algumas misturas presidencialistas. Eles sabiam que não dava para ser um parlamentarismo puro, porque a outra corrente era muito forte. Na votação de 23 de março, os presidencialistas chegaram com uma proposta que surpreendeu a todos os parlamentaristas. E ganharam na votação. Mas não chegou a 62%. Qualquer que fosse o sistema de governo adotado, seria misto. A partir daí, os parlamentaristas passaram a não ter mais compromisso e deixaram de apresentar proposta de aperfeiçoamento do texto base que definiria o sistema de governo. Sobraram apenas os presidencialistas para emendarem o texto. O resultado é uma mistura. Para ser um sistema representativo teria que ser mesmo uma mistura. O problema é que a mistura é incoerente.
ConJur — As medidas provisórias, por exemplo, são incompatíveis com o sistema presidencialista?
Júlio Aurélio — As medidas provisórias deram ao presidente um poder que nenhum outro presidente democrático possui. Com ela, o presidente tem o poder de condicionar o ritmo de funcionamento não só do Legislativo como do Judiciário. O Congresso tem que parar para votar as MPs. O Judiciário também fica a mercê do Executivo, pois a jurisprudência fica em uma mutação constante. Embora o plebiscito de 1993 tenha definido o presidencialismo como sistema de governo, o Congresso de lá para cá tinha que ter feito uma recomposição dos elementos parlamentaristas. É preciso uma reestruturação para que a medida provisória não seja um problema. Ou se retira o instrumento ou resolve uma maneira de partilhar os ônus da edição de MP entre o Executivo e o Legislativo.
ConJur — Muitos criticam o texto constitucional quanto à ordem econômica, afirmando que os Constituintes não tinham consciência dessa questão. O senhor concorda?
Júlio Aurélio — Havia um debate entre duas correntes sobre a ordem econômica. Existia um confronto entre quem era mais privatista ou mais nacionalista. O acordo foi feito. A Constituição ajudou o desenvolvimento do país. As pequenas e médias empresas têm garantias que nunca tiveram. Acho que é o processo político posterior que tem travado a Constituição. Tanto que com esta Constituição já tivemos recessão, inflação, crescimento econômico, recorde de carteiras assinadas. Há coisas que são creditadas à Constituição, mas a experiência histórica mostra que não tem nada a ver com o texto. A Constituição é um dos instrumentos de cidadania, de bem estar social, e certamente o fundamental e essencial. Nos pontos em que não se melhorou com a Constituição, pior seria sem ela. Houve processos políticos que concretizaram comandos constitucionais que estavam paralisados, como os juizados especiais. Se não houvesse previsão de juizados especiais, não teríamos nem o que regulamentar. O que precisa ser feito é um esforço de regulamentação. Tomara que os 20 anos da Constituição seja um momento de reflexão sobre a ordem constitucional.
ConJur — Qual a crítica que o senhor faz à Constituinte?
Júlio Aurélio — Houve uma excessiva concentração no tema do mandato do presidente. A Constituinte é uma oportunidade raríssima na história de qualquer sociedade. Era um momento de se discutir como seria a ordem pública brasileira, ter alguns parâmetros mínimos que fossem de consenso entre as principais correntes ideológicas. Isso não foi feito. Os líderes das bancadas foram heróis da Constituinte, que lutaram contra aquele ambiente selvagem. Eram deputados que afirmavam, claramente, que não seguiam orientações da bancada. Isso só mudou depois de um ano, a partir da votação do preâmbulo.
ConJur — O que falta à Constituição?
Júlio Aurélio — O texto precisa ser completado em algumas disposições, que são exatamente frutos dessas maiorias atabalhoadas. Sistemas de governo, eleitoral, partidário, tudo isso que até hoje não foi resolvido e que tem sido levado para o Poder Judiciário.
ConJur — O que a Constituição melhorou para o Judiciário?
Júlio Aurélio — A Constituição permitiu a independência do Poder Judiciário. Antes, os tribunais não tinham a iniciativa legislativa orçamentária. Há uma diferença enorme entre o que era o Judiciário e o Ministério Público antes da Constituição. O Ministério Público foi transformado em um órgão independente. Não existe nenhum MP independente no mundo; o único é o brasileiro.
ConJur — Havia muitos parlamentares que já tinham ocupado o cargo de juiz, promotor ou exercia a advocacia?
Júlio Aurélio — Eram 559 Constituintes no total. Destes, 284 eram pessoas que já haviam ocupado posições chave no Estado brasileiro, como gestores e secretários públicos. Não incluo nesse grupo os juízes. Eram pouquíssimos juízes ou promotores. Da área jurídica, eram apenas 15 procuradores de estado. A grande maioria era de bacharéis em Direito, mas que não tinham renda como advogados. Menos de 12% representavam os movimentos sociais organizados, em que entram os sindicalismos, tanto empresarial quanto de empregados, ecologistas, lideranças religiosas. Os movimentos sociais acabaram entrando na Constituinte através das emendas populares.
ConJur — A OAB saiu fortalecida da Constituição de 1988?
Júlio Aurélio — O crescimento que a OAB teve não foi corporativo. Sou pesquisador do Direito e não advogado, não estou defendendo classe. O que a OAB ganhou foi o reconhecimento pelos 20 anos de luta contra a ditadura. A entidade se tornou um dos legitimados no artigo 103 da Constituição para propor ação de inconstitucionalidade, em geral, não apenas em favor dos advogados. Mas todas as carreiras jurídicas tiveram um crescimento e uma enumeração constitucional superiores à dos advogados como classe. Os advogados só tiveram o artigo 133, que fala da inviolabilidade profissional. Eu já ouvi advogados criticarem o relator Bernardo Cabral, porque ele foi presidente da OAB de 1981 a 1983. O Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública ganharam mais do que a corporação dos advogados.
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