Show do crime

Transformar prisão em espetáculo da mídia é uma punição

Autor

  • Antônio Cláudio Mariz de Oliveira

    é ex-presidente da OAB-SP da Aasp (Associação dos Advogados de São Paulo) ex-secretário de Justiça e de Segurança do estado de São Paulo e membro do conselho deliberativo do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa).

23 de janeiro de 2008, 15h24

O país assiste nos dias de hoje a um saudável e elogiável movimento de combate à criminalidade das elites. Possui tal movimento um aspecto indiscutivelmente positivo: mostra que a repressão penal não mais se dirige, quase exclusivamente, contra as camadas menos favorecidas da sociedade, como ocorria até pouco tempo.

Imprescindível, no entanto, que se faça uma análise imparcial da legalidade e da forma de execução das ações repressivas, para se avaliar a sua real necessidade, a sua eficácia e as suas conseqüências.

Inicialmente, deve-se indagar a respeito das razões que amparam a interferência da mídia nas diligências policiais.

Por mais que se perquira, se indague sob os mais variados prismas, inclusive o da liberdade de imprensa, não se encontra qualquer justificativa lógica ou jurídica para o papel desempenhado pela mídia, que se propôs, por motivos desconhecidos, a dramatizar o combate ao crime.

O mais grave é que, com o seu poder de penetração, ela está criando uma cultura repressiva. Na verdade, a cultura da vingança, da intolerância raivosa, do desprezo pelas causas e circunstâncias do crime. Está, ademais, divulgando a falsa idéia de que a prisão é a única resposta para o crime.

Note-se : caso a prisão não venha a ser decretada de imediato, logo após a notícia do eventual crime, a imprensa desfere violentos ataques contra o Poder Judiciário, qualificando-o de inoperante, moroso, responsável pela impunidade.

Em face dessa cruzada punitiva, nós advogados estamos sendo considerados como cúmplices dos acusados. O sagrado direito de defesa, o contraditório, o devido processo legal e demais garantias constitucionais, como perfumarias que criam dificuldades à sanha vingativa contra culpados ou inocentes, diante de provas, sem provas ou até contra as provas, pouco importa.

A mencionada cultura punitiva lamentável e perigosamente está se espraiando e atingindo o próprio Poder Judiciário. Medidas de força, que deveriam ser decretadas dentro de rígidos critérios de necessidade, de proporcionalidade e de racionalidade, como as prisões temporária e preventiva e a busca e apreensão, estão sendo decretadas de forma açodada, sem base em fatos concretos denotadores da sua adequação ao caso concreto, unicamente para atender aos reclamos, de um lado, de uma sociedade sequiosa por castigo, e de outro, de uma mídia sensacionalista, irresponsável e desprovida de qualquer compromisso com a verdade.

Prende-se para se soltar em seguida. Ou havia necessidade real da prisão para garantia da instrução processual, da ordem pública ou da aplicação da lei, e nesta hipótese a necessidade não desaparece com poucos dias de cárcere ou a prisão ocorreu por motivos outros — atender a mídia, obter confissão ou delação — e não era necessária e, portanto, apresenta-se ilegal.

Dois outros aspectos relevantes devem ser realçados: o aparato bélico utilizado na execução de ordens judiciais e a fragilidade dos elementos probatórios que sustentam aquelas medidas de coerção.

Mesmo em face da notória inexistência de risco para o êxito das operações e para a incolumidade física dos policiais, um grande número de agentes, armados, encapuzados e trajando uma desnecessária indumentária de combate, ingressam nas casas e nos escritórios, logo ao alvorecer, e executam as buscas e as prisões na presença de crianças, idosos, vizinhos, sem nenhuma discrição, mas, ao contrário, com as luzes e câmeras das televisões sempre presentes.

Esse último aspecto é tão grave quanto a ilegalidade de algumas prisões: a presença da mídia, por si só, é uma verdadeira pena, não prevista em lei e que apresenta conseqüências perpétuas, não elididas sequer por eventual absolvição e que atingem não só a dignidade e a imagem do suspeito como também a de seus familiares.

A outra observação a ser anotada é a seguinte: a exclusiva fonte probatória que dá embasamento às buscas e às prisões são as interceptações telefônicas.

Trata-se de uma prova de evidente fragilidade, insuficiente para os fins a que se propõe, qual seja apreender bens e custodiar eventuais suspeitos, além de processá-los.

Não só o suspeito é alvo das escutas, mas todo aquele, rigorosamente, todo aquele que com ele se comunicou em um período dado com absoluta certeza tem também sua privacidade telefônica violada, sem que haja qualquer suspeita da prática de crime, por parte dos terceiros.

Saliente-se — e esse ponto mais acentua a precariedade e a fragilidade da base probatória dessas prisões — que o que vai para os autos não é a integra das escutas, mas sim meros relatórios que contêm resumos e interpretações daquilo que foi ouvido. Fácil de se verificar o caráter subjetivo presente em tais interpretações que nem ao menos são feitas por peritos oficiais, os quais atuam sob compromisso e, portanto, sujeitos à responsabilização civil e penal, o que não ocorre com os agentes policiais, muitas vezes sequer identificados.

O combate aos chamados crimes do colarinho branco é uma imperiosa necessidade que não pode sofrer solução de continuidade. No entanto, deve fixar-se dentro dos estritos limites da legalidade para não haver retrocesso aos não distantes tempos de arbítrio e da repressão ilegal.

Por fim, esse combate deve ser travado sem a utilização de símbolos que iludem a sociedade e mascaram a realidade, como por exemplo, o cumprimento humilhante de mandados judiciais, a transformação das diligências em espetáculos midiáticos, a imposição de dificuldades ao exercício do sagrado direito de defesa, dentre outros ilegais constrangimentos.

Tenha-se presente que os excessos na luta contra a impunidade são tão graves quanto a própria impunidade e que a lei não atrapalha, nunca atrapalhou as atividades estatais de combate ao crime, pois caso contrário Democracia e Estado de Direito seriam incompatíveis com o desenvolvimento do Homem e das Nações.

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