Estado dos grampos

Responsabilidade de quem autoriza bisbilhotice é maior

Autor

27 de junho de 2007, 18h03

Winston Spencer Churchill, figura central do esforço de guerra da civilização contra a barbárie, afirmou, no discurso que proferiu na Universidade de Bristol, que o traço que identifica as verdadeiras democracias é o estrito cumprimento da lei por parte das suas autoridades.

Verdade atemporal, que atravessa todas as circunstâncias políticas do Estado moderno na sinergia da busca de seus objetivos. De fato, não haverá esperança de legalidade nem de estabilidade jurídica para uma nação em que se exige do cidadão rigorosa obediência ao ordenamento jurídico – máxime à legislação tributária, sob pena de prisão –, mas cujas autoridades contornam a lei. Elas afrontam, ignoram ou amortecem os efeitos das leis, invocando razões superiores ou conveniência pública. As maiores tragédias que a humanidade vivenciou sempre vieram justificadas por “razões de Estado”, não se deslembrem.

Nesse cenário, a sensação é, positivamente, de insegurança e a pedagogia de extrema negatividade. Não vale o surrado e amoral argumento de que os fins justificam os meios, pois estaríamos diante do paradoxo de que é lícito à autoridade pública cometer um crime para investigar ou reprimir outro crime, a sugerir a curiosa figura do “Estado delinqüente” ou da incompreensível “ilicitude autorizada” – não confunda com causa legal de exclusão de ilicitude ou com a infiltração na investigação criminal.

Cabe, neste passo, lembrar a exortação do grande Pedro Lessa: “a lei é para ser cumprida”, e por todos, mas por todos mesmo, acrescentamos! Embora pareça truísmo, a máxima carece de ser repetida, sempre, dadas as recorrentes invectivas do autoritarismo, doença crônica dos burocratas nas democracias menos amadurecidas.

Claro que não é toda fricção com a lei que configura ilícito penal. Mas, quando agentes do Estado, qualquer que seja o pretexto, atuam em desarmonia com os mandamentos legais, se está em face de grave patologia institucional, com profundas repercussões na cidadania. É o Estado agindo fora da lei.

Até onde pode nos levar a condescendência com essa anomalia?

Hoje, quando não mais se consegue esconder entre nós que o efeito multiplicador das escutas telefônicas ou a progressão automática e geométrica do grampeamento atingem pessoas sequer incluídas nas investigações – ou seja, totalmente alheias aos fatos sob perquirição policial – e a ação centrípeta do software Guardião, da Polícia, jogando para dentro da aracnídea rede de escutas linhas telefônicas cujo monitoramente não foi permitido pelo Judiciário, mas entrou na rede por acessão eletrônica, a privacidade assegurada na Constituição Federal, através do artigo 5º, inciso X, e a própria lei ordinária restam inegavelmente pisoteadas. É o Estado agindo contra a lei.

Coloca-se, então, a questão: prospectar aleatoriamente, em nome do interesse público, condutas supostamente ilícitas é argumento que justifica o afastamento da garantia constitucional da privacidade e da inviolabilidade de comunicações e dados?

A resposta é não, se considerar que, acima de tudo, o exercício da autoridade deve se pautar pela legalidade e pela ética. E sim, se o Estado estiver autorizado a descer ao mesmo patamar ético do delinqüente e, como ele, passar a agir.

Na última hipótese, sobe à ribalta a discussão da exótica doutrina do “Estado delinqüente” e, como está a evidenciar a lei que define os crimes ambientais (Lei 9.605, de 1998), por exemplo, parece que o tempo venceu o axioma jurídico-penal de que societas delinquere non potest.

Por fim, quem, investido de poder de jurisdição, autoriza tais abusos e também decreta prisões processuais, no atacado, sem maiores preocupações com a presunção de inocência constitucional – refere-se aqui aos juízes que não hesitam em autorizar, a torto e a direito a quebra de sigilo telefônico de tantas linhas quantas lhe sejam apresentadas – é tão ou até mais responsável quanto o que executa a bisbilhotice. Maior o poder de mandar, maior a responsabilidade pelo erro. Lembremo-nos da rocha Tarpéia dos romanos, reservada aos semeadores de injustiças!

No Brasil, estamos hoje em face de “carlyliana”opção: ou Estado de Direito ou ilicitude oficial tolerada.

Regime de liberdades e de garantias para todos ou Estado Policial. Civilização ou barbárie. Senhores, façam a sua escolha.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!