Entrevista: Eduardo Flores Vieira, defensor público-geral da União
10 de setembro de 2006, 7h00

Diante desse quadro, é compreensível que o defensor-geral da União Eduardo Flores Vieiradefina a instituição como o “primo pobre” da magistratura e do Ministério Público. O órgão é muito recente e esse é um bom argumento para explicar suas fraquezas.
Eleito para chefiar a instituição em maio de 2005, Flores tinha uma ambição a concretizar nos dois anos de mandato, que termina em maio próximo: dar à Defensoria o status do Ministério Público. Mas reconhece que está longe disso.
O defensor-geral contabiliza apenas ganhos parciais. Tramita no Congresso uma proposta para a criação de 900 novos cargos defensores da União. Em sua opinião, o número ideal seria de 6 mil, igual ao número de procuradores federais da União. “De um lado, temos 6 mil procuradores defendendo a União e suas autarquias, do outro, 112 defensores públicos responsáveis pela defesa do cidadão. O desequilíbrio é muito grande.”
Mesmo assim, Eduardo Flores Vieira não gosta da idéia de contar com a “residência jurídica”, que funcionaria nos moldes da residência médica para suprir a instituição de profissionais em início de carreira. “O pobre não pode servir de laboratório de experiências”, justifica. Contesta também os convênios de assistência judiciária, como o existente em São Paulo, por considerá-los inconstitucionais.
As alegações, que levam em conta mais os direitos trabalhistas dos defensores do que as necessidades dos defendidos, têm uma clara conotação corporativista.
Para que a Defensoria Pública se consolide ele defende que seja cumprida a lei, que prevê autonomia financeira e orçamentária para a instituição.
Eduardo Flores Vieira nasceu em São Leopoldo, na Grande Porto Alegre. Foi aprovado no primeiro concurso público para a Defensoria da União, em 2001. Em 2005, foi indicado pelo presidente da República, a partir de uma lista tríplice feita pelo defensores, para ocupar o cargo de chefe da instituição.
Leia a entrevista com o defensor público-geral da União
ConJur — A Defensoria Pública existe para aumentar o acesso à Justiça. Mas, o que a Justiça menos precisa é de aumento de demanda, pois já está atolada de processos. Não é um paradoxo?
Eduardo Flores — O papel do defensor público não é só dar assistência judiciária. Ele tem de ser um transformador social, um instrumento de inclusão e de conscientização dos direitos de cada um. Seu papel é orientar e tentar a conciliação, não só provocar o Judiciário. Existe um estudo que diz que onde há defensoria pública, a criminalidade diminui e aumentam as soluções extrajudiciais de conflitos.
ConJur — Quem é o cliente da defensoria?
Eduardo Flores — É aquele que não tem condições de pagar um advogado.
ConJur — Existe um critério objetivo?
Eduardo Flores — Em matéria cível, normalmente, o cidadão auxiliado pela defensoria é aquele que recebe até dois salários mínimos. Mas isso não impede que quem receba mais tenha acesso à defesa gratuita. Um exemplo é o do cidadão cuja renda não dá para sustentar a família. Em matéria criminal, o auxílio da defensoria independe da renda. Se o cidadão não tem advogado, o juiz é obrigado a nomear um defensor para ele. Nos casos em que o acusado está foragido, o Estado tem de propiciar o direito de defesa dele.
ConJur — Segundo o IBGE, 92 milhões de brasileiros ganham até dois salários mínimos. São quantos defensores para atender a toda essa demanda?
Eduardo Flores — São 112, número muito pequeno. O nosso objetivo é aumentar o número de defensores para triplicar a cobertura que podemos dar à população. Em 2005, tivemos 220 mil novos casos. Acho que tempos condições de triplicar esse número, desde que tripliquemos a estrutura da instituição. Só eu, neste ano, tenho 2.600 processos no Supremo, que defendo com a ajuda de um defensor público auxiliar e de três assessores.
ConJur — Essa carência não poderia ser suprida com a contratação de estagiários? O senhor acha viável criar uma espécie de residência, como na Medicina: o bacharel em Direito fica dois anos prestando serviço para a Defensoria, por exemplo?
Eduardo Flores — Não. O pobre não pode servir como um laboratório de experiência. Por que temos um Ministério Público e uma Magistratura fortes?
ConJur — A Defensoria da União está em todos os estados?
Eduardo Flores — Não. Maranhão, Amapá e Mato Grosso ainda não têm unidades da Defensoria da União. A idéia é fortalecer o atendimento nas capitais e permitir uma atuação nas outras cidades pelo serviço itinerante. Como se já não fosse pequeno o número de defensores, por falta de cargos de apoio, os poucos que temos ainda são obrigados a se envolver em questões administrativas. Com isso, gasta com a atividade meio o tempo que deveria dedicar à sua função.
ConJur — A Defensoria da União só tem representação nas capitais dos estados . Não seria melhor se estivesse em todas as cidades?
Eduardo Flores — O serviço ainda é limitado pela falta de agentes públicos. Para contornar essa deficiência contamos com a Defensoria Itinerante, que é uma unidade móvel que se desloca pelas cidades do interior, para prestar o serviço de orientação jurídica. O serviço é prestado no interior do Rio Grande do Sul, no Amazonas e em Alagoas. Muitas vezes, a Defensoria e a Justiça Federal vão juntas para o local. Tomam o depoimento e, se for o caso, iniciam a ação judicial.
ConJur — Qual seria o número ideal de Defensores da União?
Eduardo Flores — Fizemos uma proposta de aumentar para mil cargos, mas o ideal é que o número de defensores públicos fosse igual ao de procuradores públicos federais, responsáveis pela defesa da União. No quadro atual, temos 6 mil procuradores defendendo a União e as autarquias contra 112 defensores públicos, responsáveis pela defesa do cidadão.
ConJur — Qual a diferença entre a Defensoria Pública da União e a dos estados?
Eduardo Flores — A Defensoria Pública da União atua nas causas que têm como parte a União, suas autarquias ou empresas públicas. Cabe ao defensor público-geral da União tratar das questões que chegam ao Supremo Tribunal Federal. Todas as outras ações, que não envolvem União, autarquias e empresas públicas, são de competência da Defensoria estadual.
ConJur — Existe algum tipo de cooperação entre a Defensoria estadual e da União?
Eduardo Flores — Não. As defensorias estaduais ainda não têm condições de absorver a demanda da Defensoria da União por falta de especialização. O concurso para se tornar defensor estadual não envolve questões federais. Por isso, não há essa cooperação para que não haja prejuízos à população. A parceria que temos é no espaço físico. Para baratear os custos, mantemos uma sede só.
ConJur — Com o surgimento dos Juizados Especiais Federais, que possibilitam que a população recorra à Justiça sem advogado, diminuiu a procura pela Defensoria da União?
Eduardo Flores — Não. Muitas vezes, o cidadão chega no Juizado, perante o escrivão, e deduz o que pedir. O juiz, então, julga o pedido inepto porque a parte não soube se expressar. Cabe ao defensor identificar o que o cidadão quer, o que é possível pedir e qual a melhor solução para a questão. Muitas vezes, o defensor consegue resolver o problema na parte administrativa, sem precisar levar ao Judiciário.
ConJur — A população sabe que existe a Defensoria Pública e o que ela faz?
Eduardo Flores — É um órgão muito novo e, por isso, talvez as pessoas ainda não o conheçam. À medida que um maior número de defensores estiverem em atividade, o serviço vai aparecer cada vez mais e as pessoas vão saber que ele existe.
ConJur — O defensor público é pago pelo Estado para litigar contra o Estado. Isso não cria um constrangimento?
Eduardo Flores — Não. O maior violador de diretos do cidadão é o Estado. Nós temos a obrigação de exercer o papel de defensor. Por conta disso, somos independentes para seguir os mandamentos constitucionais.
ConJur — Mas a Defensoria não tem autonomia financeira?
Eduardo Flores — Estamos vinculados ao Ministério da Justiça. Está aí mais um paradoxo: se o ministro da Justiça comete uma ilegalidade, o defensor-geral da União é quem apresenta a ação no Supremo Tribunal Federal. A expectativa é de que até o final do ano seja aprovada a proposta de autonomia financeira e orçamentária da Defensoria da União. Essa autonomia é importante para que possamos prever os gastos de acordo com as necessidades do órgão.
ConJur — Qual é o orçamento da Defensoria da União?
Eduardo Flores — Para esse ano, chegou a R$ 28 milhões. É razoável.
ConJur — Quem pode pagar por um advogado escolhe aquele que mais lhe inspire confiança. Ao cidadão carente não deveria ser dado também o direito de escolher o defensor público de sua preferência?
Eduardo Flores — Não. Quem está à frente do processo é a Defensoria Pública da União. O defensor público apenas representa a instituição no processo. Todos foram igualmente selecionados em concurso público e estão igualmente habilitados para bem defender o cidadão.
ConJur — Mas o ideal não seria que os defensores se especializassem em determinada área como os advogados particulares? Ou que pelo menos o mesmo defensor cuidasse de um caso até o fim para o cidadão saber quem é o seu advogado?
Eduardo Flores — O ideal seria mesmo a especialização, mas não acho que prejudique o cidadão o fato de ser assistido por diferentes defensores, já que todos representam a Defensoria. A administração pública é regida pela impessoalidade. Não acho que isso comprometa a eficiência do serviço prestado.
ConJur — Qual é a matéria da maioria dos casos que chegam à Defensoria?
Eduardo Flores — Na parte cível, a maior parte é previdenciária: concessão de revisão de benefícios, aposentadoria por idade e por invalidez. Na parte criminal, são os crimes de estelionato, contrabando, falsificação de dinheiro e contra a ordem tributária e previdenciária.
ConJur — Existe um Projeto de Lei de autoria do senador Antônio Carlos Magalhães que prevê que o réu que faça parte do crime organizado seja impedido de usar o dinheiro do crime para pagar advogados. Ele teria de ser defendido pela Defensoria. O que o senhor pensa disso?
Eduardo Flores — Esse projeto é inconstitucional. No Estado Democrático de Direito, o réu tem o direito constitucional de escolher um advogado de sua confiança. Esse projeto cerceia esse direito.
ConJur — O Estado valoriza a Defensoria Pública como deveria?
Eduardo Flores — Nos últimos três anos, os governantes começaram a se conscientizar da importância que tem o defensor público na sociedade. O serviço público prestado ao pobre é caro porque mais de 90 milhões de brasileiros estão abaixo do índice de pobreza. Mas o Estado tem de investir para diminuir essas mazelas sociais.
ConJur — E ele tem investido?
Eduardo Flores — No âmbito da União, sim. Nosso orçamento foi incrementado. Não é o ideal, mas já é alguma coisa, ainda mais porque existe um descaso com as Defensorias Púbicas no país.
ConJur — A que se deve esse descaso?
Eduardo Flores — Pelo próprio custo que a implementação de um sistema eficaz acarreta. No entanto, esse custo é compensado porque fica mais barato manter um defensor do que nomear um advogado dativo para as causas. O dativo recebe, em média, R$ 70 por ação do processo. Assim, recebe, em média, R$ 500 para acompanhar um processo do começo ao fim nos juizados. Com um defensor público, o processo completo custa cerca de R$ 60. Dativos não foram previamente selecionados em concurso e pagá-los é inconstitucional. O serviço tem de ser prestado pelo Estado ou, então, se algum advogado quiser fazer de forma graciosa, ele pode.
ConJur — Quando a Defensoria ganha honorários de sucumbência, eles são revertidos para a instituição?
Eduardo Flores — Tem um projeto na Câmara dos Deputados para criar o Fundo da Defensoria Pública da União. Enquanto ele não é criado, o dinheiro da sucumbência fica em juízo. O defensor público não tem direito a honorários, já que ele recebe salário para desempenhar a função.
ConJur — A conclusão é: a Defensoria é uma criança que está começando a andar.
Eduardo Flores — É o primo pobre do Ministério Público e da Magistratura. Mas temos esperanças de que esse quadro mude, inclusive em questões salariais. A Defensoria Pública, como um todo, está passando por uma transformação legal, constitucional e a expectativa é de que, em quatro ou cinco anos, nós tenhamos o mesmo status do Ministério Público, para dar à população carente os mesmos instrumentos que o MP tem para combater as questões que envolvem a ordem jurídica.
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