Poder investigatório

MP pode promover suas próprias investigações, diz Celso de Mello

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18 de outubro de 2006, 19h37

Ao negar liminar em pedido de Habeas Corpus a um delegado acusado do crime de tortura, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal antecipou seu voto na questão do poder investigatório, na área criminal, do Ministério Público. No julgamento principal, interrompido por pedido de vista, o MP está ganhando a disputa por três votos a dois.

No caso concreto, o delegado da polícia civil Emanoel Loureiro Ferreira pediu no STF o trancamento da ação penal contra ele, alegando que as investigações foram promovidas pelo Ministério Público e não pela Polícia Judiciária, como prescreve a Constituição. O pedido de trancamento já fora negado pelo Superior Tribunal de Justiça — contra quem se apresentou a nova demanda.

Celso de Mello foi claro em sua decisão: o MP não pode presidir inquérito policial, mas pode promover suas próprias investigações — criminais, inclusive — e utilizá-las na denúncia. Segundo o ministro, "nada impede que o órgão da acusação penal possa solicitar, à Polícia Judiciária, novos esclarecimentos, novos depoimentos ou novas diligências, sem prejuízo de poder acompanhar, ele próprio, os atos de investigação realizados pelos organismos policiais".

Já se manifestaram a favor da investigação criminal por parte do MP, os ministros Eros Grau, Joaquim Barbosa e Ayres Britto. No sentido contrário, votaram Marco Aurélio e Nelson Jobim (substituído agora por Cármen Lúcia que não votará a matéria). Do ministro Sepúlveda Pertence — que, como procurador-geral da República foi quem submeteu a atual lei orgânica do Parquet da União ao Congresso — espera-se que se alinhe a favor do MP. Em menor grau, é a mesma expectativa em torno de Ellen Gracie. Cezar Peluso, em posse de quem encontra-se o processo, é um enigma. Mas acredita-se que os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes votem contra a pretensão do MP.

Leia a íntegra do voto do ministro Celso de Mello

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 89.837-8 DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. CELSO DE MELLO

PACIENTE(S): EMANOEL LOUREIRO FERREIRA

IMPETRANTE(S): JASON BARBOSA DE FARIA E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES): PRESIDENTE DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DECISÃO: A presente impetração insurge-se contra decisão, que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, acha-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 491 – Apenso 4):

“‘HABEAS CORPUS’. CRIME DE TORTURA IMPUTADO A DELEGADO DA POLÍCIA CIVIL. INVESTIGAÇÃO REALIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. COLHEITA DE DEPOIMENTOS. INEXISTÊNCIA DE NULIDADE. INQUÉRITO POLICIAL. PRESCINDIBILIDADE.

1. A teor do disposto no art. 129, VI e VIII, da Constituição Federal, e no art. 8º, II e IV, da Lei Complementar nº 75/93, o Ministério Público, como titular da ação penal pública, pode proceder a investigações, inclusive colher depoimentos, sendo-lhe vedado, tão-somente, presidir o inquérito policial, que é prescindível para a propositura da ação penal.

2. Precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal.

3. Ordem denegada.” (grifei)

O exame dos fundamentos em que se apóia o julgamento ora impugnado parece descaracterizar, ao menos em sede de estrita delibação, a plausibilidade jurídica da pretensão deduzida pelos ilustres impetrantes.

A decisão emanada do E. Superior Tribunal de Justiça — que reconhece, ao Ministério Público, a prerrogativa de promover, por direito próprio, sob sua autoridade e direção, investigações penais — parece legitimar-se em face da Constituição da República promulgada em 1988.

É certo que o ordenamento positivo outorga, à autoridade policial, a atribuição para presidir o inquérito policial, consoante assinala JULIO FABBRINI MIRABETE (“Código de Processo Penal Interpretado”, p. 86, item n. 4.3, 7ª ed., 2000, Atlas).

Essa especial regra de competência, contudo, não impede que o Ministério Público, que é o “dominus litis” — e desde que indique os fundamentos jurídicos legitimadores de suas manifestações (CF, art. 129, VIII) –, determine a abertura de inquéritos policiais, ou, então, requisite diligências investigatórias, em ordem a prover a investigação penal, quando conduzida pela Polícia Judiciária, com todos os elementos necessários ao esclarecimento da verdade real e essenciais à formação, por parte do representante do “Parquet”, de sua “opinio delicti”.

Todos sabemos que o inquérito policial, enquanto instrumento de investigação penal, qualifica-se como procedimento administrativo destinado, ordinariamente, a subsidiar a atuação persecutória do próprio Ministério Público, que é – nas hipóteses de ilícitos penais perseguíveis mediante ação penal de iniciativa pública – o verdadeiro destinatário das diligências executadas pela Polícia Judiciária (RTJ 168/896, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Trata-se, desse modo, o inquérito policial, de valiosa peça informativa, cujos elementos instrutórios – precipuamente destinados ao órgão da acusação pública — visam a possibilitar a instauração da “persecutio criminis in judicio” pelo Ministério Público (FERNANDO DE ALMEIDA PEDROSO, “Processo Penal — O Direito de Defesa”, p. 43/45, item n. 12, 1986, Forense; VICENTE DE PAULO VICENTE DE AZEVEDO, “Direito Judiciário Penal”, p. 115, 1952, Saraiva; JOSÉ FREDERICO MARQUES, “Elementos de Direito Processual Penal”, vol. I, p. 153, 1961, Forense).

É certo, no entanto, que, não obstante a presidência do inquérito policial incumba à autoridade policial (e não ao Ministério Público), nada impede que o órgão da acusação penal possa solicitar, à Polícia Judiciária, novos esclarecimentos, novos depoimentos ou novas diligências, sem prejuízo de poder acompanhar, ele próprio, os atos de investigação realizados pelos organismos policiais.

Essa possibilidade — que ainda subsiste sob a égide do vigente ordenamento constitucional — foi bem reconhecida por este Supremo Tribunal Federal, quando esta Corte, no julgamento do RHC 66.176/SC, Rel. Min. CARLOS MADEIRA, ao reputar legítimo o oferecimento de denúncia baseada em investigações acompanhadas pelo Promotor de Justiça, salientou, no que se refere às relações entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público, que este poderequisitar a abertura de inquérito e a realização de diligências policiais, além de solicitar esclarecimentos ou novos elementos de convicção a quaisquer autoridades ou funcionários (…)”, competindo-lhe, ainda, “acompanhar atos investigatórios junto aos órgãos policiais”, embora não possaintervir nos atos do inquérito e, muito menos, dirigi-lo, quando tem a presidi-lo a autoridade policial competente” (RTJ 130/1053).

Cabe salientar, finalmente, sem prejuízo do exame oportuno da questão pertinente à legitimidade constitucional do poder investigatório do Ministério Público, que o “Parquetnão depende, para efeito de instauração da persecução penal em juízo, da preexistência de inquérito policial, eis que lhe assiste a faculdade de apoiar a formulação da “opinio delicti” em elementos de informação constantes de outras peças existentesaliunde”.

Esse entendimentoque se apóia no magistério da doutrina (DAMÁSIO E. DE JESUS, “Código de Processo Penal Anotado”, p. 07, 17ª ed., 2000, Saraiva; FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, “Código de Processo Penal Comentado”, vol. I/111, 4ª ed., 1999, Saraiva; JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado”, p. 111, item n. 12.1, 7ª ed., 2000, Atlas; EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, “Código de Processo Penal Brasileiro Anotado”, vol. I/288, 2000, Bookseller, v.g.) – tem, igualmente, o beneplácito da jurisprudência dos Tribunais em geral (RT 664/336 – RT 716/502 – RT 738/557 – RSTJ 65/157 – RSTJ 106/426, v.g.), inclusive a desta Suprema Corte (RTJ 64/342 – RTJ 76/741 – RTJ 101/571 – RT 756/481):

O inquérito policial não constitui pressuposto legitimador da válida instauração, pelo Ministério Público, da persecutio criminis in judicio’. Precedentes.

O Ministério Público, por isso mesmo, para oferecer denúncia, não depende de prévias investigações penais promovidas pela Polícia Judiciária, desde que disponha, para tanto, de elementos mínimos de informação, fundados em base empírica idônea, sob pena de o desempenho da gravíssima prerrogativa de acusar transformar-se em exercício irresponsável de poder, convertendo, o processo penal, em inaceitável instrumento de arbítrio estatal. Precedentes.

(RTJ 192/222-223, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Sendo assim, e sem prejuízo da ulterior apreciação da controvérsia em referência, notadamente em face do julgamento plenário, ainda em curso, do Inq 1.968/DF (em cujo âmbito está sendo rejeitada, por três votos a dois, a tese ora exposta na presente impetração), indefiro o pedido de medida liminar.

2. Achando-se adequadamente instruída a presente impetração, ouça-se a douta Procuradoria-Geral da República.

Publique-se.

Brasília, 16 de outubro de 2006.

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

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