Proteção indispensável

Sem prerrogativas, plenitude da defesa seria prejudicada

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13 de junho de 2006, 7h00

Recebo vários jornais em casa. Vou marcando uma ou outra notícia, para separar acontecimentos que me impressionem. Bati os olhos, domingo, 11 de junho, em O Estado de S. Paulo. O título é: “Os advogados estão na berlinda?”.

Cuida-se, na verdade, de entrevista do professor Carlos Ari Sundfeld, lente na Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, seguramente um dos melhores e mais caros cursos de Direito implantados no país. Uma instituição elitista, no melhor sentido da palavra, voltada à formação de líderes.

O entrevistado discorreu sobre variados problemas atravessados pelos advogados. Deu realce a alguns aspectos ligados, evidentemente, à diferença entre os bem-nutridos e os mal recompensados pela sorte, significando dizer que há, na própria profissão, uma linha de nobreza e outra de miserabilidade. Estabelece-se o fosso entre os “lords” e o populacho.

Carlos Ari Sundfeld é, como outros 10 ou 15% da profissão, um privilegiado. Não precisou, enquanto noviço, aspirar o cheiro ruim da batata passada servida para engrossar a comida dos presidiários e, pior ainda, daqueles que sequer condenados haviam sido. Não teve necessidade de ripostar a autoridades deselegantes, enquanto defendendo pobretões. Não precisou fixar os olhos no defunto que traziam do quinto andar de presídio malcheiroso, carregado o morto como uma carga fedida enrolada em lençol enodoado de marrom.

Não o puseram à prova, na velha morgue próxima ao Instituto Oscar Freire, para suportar a visão triste de alguém dilacerado por multiplicidade de disparos vindos da escuridão. Pouparam-no, na juventude, de se expor em distrito policial montado numa favela, negociando ali, com executores, a vida de alguém que, segundo a comunidade, falta alguma faria se morresse.

Há, portanto, médicos, advogados, conselheiros da corte e palafreneiros, uns situando-se nos degraus mais altos dos palácios, outros conduzindo, no lamaçal, as parelhas da carruagem do rei.

Dentro de tais antinomias, as visões se justapõem às vezes e conflitam em outras oportunidades. Parece, dentro do contexto, que o professor Carlos Ari Sundfeld estabelece uma separação marcante entre o privilégio e o abastardamento porque, ao igualar o advogado à mãe do preso, que é revistada nas partes íntimas enquanto visita a cadeia, avilta os dois. Aquela mulher, sim, não deveria ser envergonhada.

Há, é certo, profundas divergências entre a entrevista do professor e os advogados, com relevo para os criminalistas. A partir de tais confrontos, algumas particularidades se apresentam: o professor quer extrair dos advogados as prerrogativas asseguradas, mas, no fim das contas, pretende equalizar os seres humanos, colocando-os num só patamar.

Em outros termos, propugna, sem o saber, por desvestir-se da toga do magistério e convocar, para a cátedra, aquele que não conhece pressupostos mínimos da ciência do Direito. Defende, por via travessa, a exclusão dos concursos de títulos e provas, dos exames de ingresso à magistratura, dos vestibulares imprescindíveis à entrada, enfim, na própria Faculdade de Direito em que leciona.

Carlos Ari Sundfeld, percebendo ou não, quer estabilizar a raça humana. Perceba-se a curiosidade da projeção do raciocínio: não se trata de coartar a prerrogativa profissional do advogado, mas, aqui, o que se pretende é o envilecimento do todo.

O advogado pode e deve, segundo o entrevistado, ter seus arquivos conspurcados. O médico deve ser privado de seus segredos profissionais, publicizando-se, então, a um simples estalar de dedos, os mistérios que infernizam as dores dos homens. O padre, sentado à frente dos inquisidores, é vergastado para divulgar as confidências recebidas no confessionário, e assim por diante. O rabino, na sinagoga, há de precisar expor à coletividade todas as mazelas que o fazem perder o sono nas noites já tão curtas de um sacerdote. Nisso se põe, entenda-se, o corolário da pregação.

É preciso que o professor de Direito, enquanto leciona num instituto colocado na mais oxigenada camada econômico-financeira do país, reflita sobre a origem das denominadas “guildas”, aprimoradas a partir da Idade Média. Os barbeiros se transformavam em cirurgiões. Os artesãos, preocupados com a abóbada das igrejas, instituíam “exames de estado”. Os sacerdotes fundavam suas Ordens. Os juízes se juntaram após concursos e até os doutores em Direito disputam, na pós-graduação, o direito a assentamento nas cátedras.

Tudo isso é escrito, aqui, sem o chamamento de qualquer artigo de lei. Dentro de tal padrão rude transluzindo na crônica, até os animais ditos inferiores têm prerrogativas uns sobre os outros. Os tigres marcam seu espaço fincando as garras nas árvores e os cães mais antigos protegem a casinhola onde dormem. Não fosse assim e, no campo profissional, a plenitude da defesa estaria seriamente prejudicada, os presidentes da República seriam chicoteados em praça pública, os beleguins de baixa estirpe prenderiam os coronéis, estes zombariam dos generais e os últimos, de seu lado, escarneceriam dos marechais.

No fim de tudo, as prerrogativas constituem, de um lado, proteção adequada a que a humanidade siga seu rumo sob tropeços controláveis. O jovem e culto professor, para pretender o fim das prerrogativas, precisa sofrer na carne as feridas provocadas pelo poder desnaturado. Se e quando vier a exercer a advocacia criminal, há de ter tempo útil para se aprimorar na realidade dos subterrâneos da repressão penal.

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