Comunicação privilegiada

Leia o voto do ministro Peluso no HC de Edemar

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24 de agosto de 2006, 19h44

Informações obtidas através da troca de e-mails entre cliente e advogado constituem prova ilícita. Não podem portanto servir como fundamento para a decretação de prisão preventiva do réu. Este o entendimento do ministro Cezar Peluso ao conceder o Habeas Corpus que revogou a prisão preventiva contra o ex-dono do Banco Santos, Edemar Cid Ferreira pelo juiz Fausto Martin de Sanctis, da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo.

O ministro refutou também o outro fundamento apresentado para a preventiva de Edemar: a falta de informação sobre as obras de arte sequestradas pela Justiça e deixadas sobre sua guarda. Para o ministro, neste caso confundiu-se o sentido da prisão preventivia com o da prisão civil por depositário infiel.

Para Peluso “o Juízo reporta-se a atos de defesa praticados nos próprios autos da ação penal a título de razões suficientes à ordem da prisão, porque os reputou atentatórios à “dignidade da Justiça”. O ministro sustenta que se as conversas entre o réu e o advogado, nas quais trataram da estratégia de defesa a ser adotada, fossem motivos para prisão preventiva “estaria irremediavelmente tolhido o direito de defesa. Patrono e réu, escusaria advertir coisa tão óbvia, podem lucubrar estratégia de atuação que mais bem convenha à defesa”.

O ministro invoca também o inciso LXIII do artigo 5ª da Constituição que garante a todo o cidadão o direito de não se incriminar. “Sabe hoje toda a gente que o réu não tem ônus algum – muito menos, obrigação – de colaborar na apuração dos fatos capazes de o incriminar”

Peluso também adverte para que o juiz mantenha sua imparcialidade no processo, não pendendo para nenhuma das alternativas do processo antes de sua conclusão: “Não custa lembrar que, no processo penal, não existe lide, mas ponderação de dois interesses públicos – o ius libertatis e o ius puniendi.”… O ministro cita Joaquim Canuto Mendes de Almeida: “o poder público não litiga com o indiciado. Seria imoral que o Estado se definisse antes de julgar a verdade criminal e, assim, tivesse preferências por qualquer das atuações contrárias da lei antes do ato decisivo da justiça”.

O ministro sustenta também que ao invocar a garantia da aplicação da lei penal para explicar o pedido de prisão, o juiz confundiu “prisão processual com prisão civil por dívida”. Peluso sustenta que ocorreram dois equívocos : “O primeiro, supor necessidade de prisão do réu para garantir a eficácia do seqüestro e do perdimento eventual e residual dos bens, que essa opera ex vi legis. O segundo, ter por legítima prisão preventiva do acusado a título de coerção análoga à da prisão civil do depositário infiel”.

22/08/2006

SEGUNDA TURMA

AG.REG.NO HABEAS CORPUS 89.025-3 SÃO PAULO

V O T O – V I S T A

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO: 1. Faço breve retrospecto do caso.

O ora agravante, ex-controlador do Banco Santos S/A, responde a ação penal, sob acusação de prática de crimes contra o sistema financeiro e de lavagem de dinheiro.

Em fevereiro de 2005, no curso do processo, o Juízo da 6a Vara Federal Criminal da Seção Judiciária de São Paulo determinou-lhe o seqüestro dos bens. Ao depois, atendendo a requerimento formulado pelo representante do Ministério Público, estendeu a medida, determinando o seqüestro do imóvel onde residiam o agravante e a família, bem como de todas as obras de arte que o guarneciam e daquelas guardadas em depósito na Rua Mergenthaler, nº 900, na cidade de São Paulo, e que correspondiam ao acervo das coleções pertencentes à Cid Ferreira Collection Emprendimentos S/A. O agravante foi então nomeado depositário de todas essas obras, as quais foram inventariadas e examinadas por peritos.

Em 04 de novembro de 2005, o agravante foi, porém, destituído da condição de depositário dos bens que se encontravam na Rua Mergenthaler, bem como de algumas peças de cerâmica marajoara que estavam em sua residência, e, mais tarde, também do imóvel em que residia e dos bens que lá estavam.

Diante da informação prestada pela Secretaria da 6a Vara Federal Criminal de que algumas obras, mencionadas em banco de dados atribuído à Cid Collection, não teriam sido relacionadas entre as seqüestradas, o Juízo concedeu ao agravante o prazo de 15 (quinze) dias para que as apresentasse ou indicasse, com descrição completa, o local onde se encontrariam.

O agravante, mediante petição, respondeu às indagações, defendendo-se.

Diante de tais circunstâncias, o Juízo decretou-lhe a prisão. E é esse o ato atacado mediante impetração sucessiva de habeas corpus no Tribunal Regional Federal da 3a Região, no Superior Tribunal de Justiça e nesta Casa.

Da longa decisão que decretou a prisão preventiva do agravante consta:

“Há evidente obstrução sistemática da Justiça Federal Penal, de molde a exigir resposta séria a evitar a sua continuidade.

O juízo de valor sobre a conduta do acusado esteve, como se viu, vinculado aos fatos concretos acima aduzidos e que impõem, neste momento, sua constrição cautelar. Com fundamento nos artigos 311 e 312, ambos do Código de Processo Penal, para garantia da ordem pública, ou seja, evitar que pratique novos crimes, assegurar a credibilidade e respeitabilidade das instituições públicas, que restaram seriamente abaladas em face das condutas do increpado, e a segurança da atividade jurisdicional, a salvo das intimidações de qualquer natureza e manobras que gerem atraso e custo financeiro desnecessários à Ação Penal, e para a aplicação da lei penal, isto é, a efetividade do Seqüestro das obras desaparecidas e não apresentadas, notadamente a legislação que prevê a perda de bens seqüestrados no caso de condenação, artigo 2o, II, ‘b’, c.c. o artigo 7o, I, da Lei nº 9613, de 03.03.1998, que textualmente prevê a ‘perda, em favor da União…’, DECRETO a PRISÃO PREVENTIVA de Edemar Cid Ferreira” (fls. 216).

2. Em resumo, o decreto da prisão preventiva do agravante funda-se, portanto, em dois suportes: (i) e-mails trocados entre o agravante, os patronos e terceiras pessoas, bem como atos praticados por advogados no curso do processo da ação penal revelariam linha de defesa que, no entender do Juízo, atentaria contra a credibilidade da Justiça e entravaria o regular andamento do feito, de modo que, nesse sentido, a prisão se prestaria a garantir a ordem pública; e (ii) o agravante teria frustrado a eficácia do seqüestro, donde a suposta necessidade de, com a prisão, assegurar-se a aplicação da lei penal, no tocante ao perdimento de bens em favor da União.

Analiso cada qual.

3. Colho do decreto de prisão alguns assertos que dizem com o primeiro fundamento:

“A compatibilização entre os preceitos da verdade/democracia e da defesa (não culpabilidade/silêncio) dá-se de forma restritiva, cabendo ao defensor a ratificação integral das palavras do suspeito ou acusado. Não lhe assiste, porém, a faculdade de inventar fatos e, até ser constituído, ainda que verbalmente, vigora o preceito da Justiça, o império da lei sobre o direito de defesa.

Dentro esse espírito, cabe aduzir que somente pode haver apreensão de documentos e objetos no escritório de advocacia ou de conversas entre o defensor e o réu (conforme consta, em parte, dos Autos Principais), na esteira do Estatuto da OAB (artigo 7o, II), quando constituírem corpo de delito ou quando houver suspeita de que o defensor participa do delito.

Note-se que o corpo de delito não significa objeto material do crime, mas tudo o que puder servir de elemento de prova. […]

Ora, os e-mails citados revelam, no mínimo, intensa tratativa com autoridades de Antigua, visando subtrair das autoridades brasileiras informações solicitadas pelo próprio acusado, tumultuando sensivelmente o percurso normal da Demanda Principal, fato que mereceria uma apuração mais detida, merecedor, aliás, de atenção do CFATF (Caribbean Financial Action Task Force).

Doutra parte, em face de solicitação do acusado Edemar, em 25.08.2005, por ocasião de sua defesa-prévia (item 01, fls. 3759/3762), foram de fato solicitadas cópias de todas as Atas de reunião da Diretoria e do Conselho de Administração do BoE, desde 1999 até a instalação do receivership, para as autoridades da ilha citada, mediante solicitação de assistência jurídica em matéria criminal, sob promessa de reciprocidade (fls. 4572 e 4736/4750, e item 9 do despacho de fl. 5937).

Mais uma vez, usa artifício para ludibriar o juízo, tumultuando sensivelmente a Ação Principal” (fls. 195-196).

Depois de transcrever longos trechos de e-mails entre o agravante e seu defensor, afirma o magistrado que “os fatos ora analisados por este juízo, além de denotarem o desrespeito do acusado para com o Poder Judiciário Federal, afetam a credibilidade deste à medida que não se adote resposta drástica para fazer cessar a prática de atos tumultuários, que estão a prejudicar sensivelmente o bom desenrolar da Demanda Penal principal” (fls. 204).

Por fim, sustenta que a prisão, no caso, serviria a resguardar a credibilidade e a respeitabilidade das instituições públicas, porque o agravante teria tentado:

a) influir no conceito social ao difundir informações sigilosas que atendam a sua defesa, na eventual tentativa de suprimir o desvalor de suposta conduta ilícita;

b) dirigir Solicitação de Assistência Judiciária em Matéria Penal sabidamente a autoridade não competente para tal;

c) constar endereço inexistente de testemunha por ele arrolada, quando nos autos já se sabia residir em país diverso;

d) atribuir ao juízo divulgação indevida quanto há nos autos farta documentação, e-mails trocados entre diversas pessoas, parte advogados, reveladora de que, de fato, tem interesse na divulgação;

e) tentativa de obstrução da apuração da Justiça brasileira a pretexto de influir nas Autoridades de Antigua” (fls. 212).

4. Reproduzo, ainda, trechos concernentes à justificativa da prisão ante o alegado desaparecimento de bens, que levaria à frustração do seqüestro:

“Ora, as manifestações do acusado Edemar Cid Ferreira estão a demonstrar, a contrário do que alega, que repetidamente vem obstaculizando a tutela jurisdicional penal, não apenas pelo fato de lançar dúvidas sobre a seriedade das pessoas envolvidas no árduo procedimento de catalogação e remoção das obras por ele abandonadas em local sem iluminação, água, segurança, objeto de Ação Judicial e Despejo por Falta de Pagamento, mas por se recusar, sistematicamente, a revelar o real paradeiro das obras desaparecidas, nem mesmo daqueles por ele próprio destacadas em seu interrogatório judicial, confirmadas por testemunha arrolada por sua própria defesa” (fls. 187).

(…)

“Ora, já quando da realização do Seqüestro de Bens, iniciado em 01.03.2005, o acusado tomou conhecimento da medida que, aliás, era dirigida a toda e qualquer obra existente no local, preferindo ocultar dos peritos tais obras, demonstrando, de forma inequívoca, a má-fé e a obstrução da efetividade da Justiça” (fls. 189).

(…)

“Todas essas alegações e demais constatações, nestes autos, e nos autos da Ação Penal principal, permitem a este juízo uma análise acerca da estratégia de defesa de que lança mão o increpado para obstruir, quando não obstaculizar, o exercício leal, sério e eficaz da jurisdição criminal” (fls. 189).

(…)

“Os fatos agora analisados por este juízo, além de denotarem o desrespeito do acusado para com o Poder Judiciário Federal, afetam a credibilidade deste à medida que não se adote resposta drástica para fazer cessar a prática de atos tumultuários, que estão a prejudicar sensivelmente o bom desenrolar da Demanda Penal principal” (fls. 204).

(…)

“O Ministério Público Federal, em requerimento formulado às fls. 2170/2174 dos Autos n.º 2005.61.81.900396-6, postulou a extensão da medida cautelar de seqüestro às obras que, de acordo com banco de dados contendo o acervo da Cid Collection, não se encontravam entre as relacionadas nos laudos periciais. Este pedido foi apreciado por meio da decisão proferida em 06.02.2006 na qual ficou assentado que o suposto desaparecimento de várias obras, de valores elevados, certamente comprometeria a restituição de bens apreendidos, os quais em eventual condenação serão destinados à União, como efeito da condenação (fls. 2175/2179)” (fls. 208).

(…)

“Assim, a recusa do acusado em informar o paradeiro das obras de arte seqüestradas, á de ser tida como mais uma tentativa de obstaculizar os trabalhos da Justiça” (fls. 211).

(…)

“Remarque-se que sua recusa não pode ser interpretada como aplicação do princípio da não culpabilidade ou mesmo do princípio do direito ao silêncio porquanto a informação pretendida não diz respeito ao mérito da causa, mas sim com o dever de fornecer os elementos necessários para a concretização de medida judicial, evitando atuação tumultuária de toda ordem, com prejuízo à União” (fls. 211).

(…)

“A garantia da ordem pública, in casu, não há de ser entendida tão-somente como forma de evitar a perpetração de outros delitos, mas como forma de resguardar a credibilidade e respeitabilidade das instituições públicas, que se vêem seriamente ameaçadas pela atuação do acusado que, como se observou, tentou, INDEPENDENTEMENTE do mérito da Ação Penal: […]

f) atribuir o desaparecimento das obras a ‘estranhos’, que admite serem técnicos ou museólogos, Oficiais de Justiça, e, eventualmente, demais pessoas, sem qualquer fundamento para tal;

g) não apresentar, não revelar e fornecer elementos que possam concretizar medida judicial de seqüestro, obrigando o juízo a acionar autoridades estrangeiras (nem mesmo das obras de arte que ele próprio revelou possuir em seu interrogatório, confirmada pela sua própria testemunha Emílio Richa Bechara Kalil), com lato custo financeiro;

h) ocultar dos Oficiais de Justiça e da perícia, diversas obras por ocasião da medida de Seqüestro de Bens, apresentando, parte, nesta oportunidade e sonegando, noutra parte, informação notadamente das mais valiosas” (fls. 212-213).

5. Como se nota claro, a decisão apóia-se em duas pretensas causas concorrentes de prisão cautelar: (i) exigência da ordem pública e (ii) garantia de aplicação da lei penal.

Nenhuma procede.

6. As informações em que se fundou o Juízo para decretar-lhe a prisão constam de correspondência eletrônica trocada entre o paciente e seus defensores e, como tal, protegida pelo sigilo das comunicações entre cliente e advogado. Vê-se de pronto que se trata de prova ilícita (art. 5o, inc. LVI, da Constituição da República), insuscetível de fundamentar decreto de prisão.

Há mais, todavia.

O Juízo reporta-se a atos de defesa praticados nos próprios autos da ação penal – solicitação de assistência jurídica em matéria criminal e remessa de carta rogatória, indicação de endereço errôneo de testemunha de defesa residente no exterior, etc. –, a título de razões suficientes à ordem da prisão, porque os reputou atentatórios à “dignidade da Justiça”.

É evidente que tais atos não figuram causas legais de prisão preventiva, medida que, tendente apenas a garantir eventual resultado útil do processo, pressupõe a existência de dados concretos passíveis de traduzir ameaça à eficácia da instrução processual ou risco à aplicação de pena.

Mas a ilegalidade do argumento vai além.

Fossem aqueles atos motivo para decreto de prisão preventiva, estaria irremediavelmente tolhido o direito de defesa. Patrono e réu, escusaria advertir coisa tão óbvia, podem lucubrar estratégia de atuação que mais bem convenha à defesa. Desde que não acarrete perigo ou dano a bens jurídicos alheios penalmente tutelados, nem transponha a órbita processual, a defesa é garantida em plenitude.[1] Seus atos podem, até, conturbar ou dificultar a instrução criminal, ou revelar incúria do defensor. De modo algum se pode tirar, daí, porém, que tais desvios justificariam a prisão do acusado, a menos que se remontasse ao modelo original do processo inquisitório, em que a defesa mesma era exercida pelo julgador. Compete, deveras, ao juiz condutor do processo, na grandeza da sua imparcialidade, inibir ou reprimir, às partes, atividades supérfluas ou danosas ao interesse da Justiça,[2] contanto que o faça motivadamente; mas, jamais determinar prisão do acusado porque discorde dessa ou daquela linha de defesa.

Sabe hoje toda a gente que o réu não tem ônus algum – muito menos, obrigação – de colaborar na apuração dos fatos capazes de o incriminar, como se tira a limpo ao art. 5º, inc. LXIII, da Constituição da República. Faz muito adverte-se a respeito:

“Privar o homem, outrossim, da mesma ação defensiva apenas por causa da possibilidade de, sendo sempre interessado em viver e ser livre, tumultuar o procedimento penal, seria, igualmente, violentar a natureza das coisas. Se o indivíduo não colabora sinceramente na realização do próprio mal – conduta que seria absurdo exigir dele – não se segue daí que se deva ou que se possa afastá-lo da promoção e tutela do próprio bem, quando identificável com o bem comum. Ao Estado cabe, apenas, à vista das inconveniências da parcialidade, evitá-las, mas nunca suprimir a parcialidade, que pode constituir, em muitos casos, uma fonte natural de justiça”[3].

Aliás, esta Corte já decidiu:

“I. Recurso ordinário de habeas corpus (ou habeas corpus originário que o substitua): liberdade de fundamentação. Não se impondo o requisito do prequestionamento – peculiar aos recursos extraordinário e especial – ao recurso de denegação de habeas corpus – que é ordinário (CF, arts. 102, II, a e 105, II, a) – nem, a fortiori, à impetração originária que a substitua, uma vez mantida a identidade do pedido, é lícito ao recorrente ou impetrante aditar novos argumentos à fundamentação originária. II. Prisão preventiva: fundamentação inadequada. Não constituem fundamentos idôneos, por si sós, à prisão preventiva: a) o chamado clamor popular provocado pelo fato atribuído ao réu, mormente quando confundido, como é freqüente, com a sua repercussão nos veículos de comunicação de massa; b) a consideração de que, interrogado, o acusado não haja demonstrado ‘interesse em colaborar com a Justiça’; ao indiciado não cabe o ônus de cooperar de qualquer modo com a apuração dos fatos que o possam incriminar – que é todo dos organismos estatais da repressão penal; c) a afirmação a ser o acusado capaz de interferir nas provas e influir em testemunhas, quando despida de qualquer base empírica; d) o subtrair-se o acusado, escondendo-se, ao cumprimento de decreto anterior de prisão processual” (HC nº 79.781 – Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – DJ de 09.06.2000. Grifei).

Ademais, não custa lembrar que, no processo penal, não existe lide, mas ponderação de dois interesses públicos – o ius libertatis e o ius puniendi. Por isso, nas palavras do saudoso JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA, “o poder público não litiga com o indiciado. Seria imoral que o Estado se definisse antes de julgar a verdade criminal e, assim, tivesse preferências por qualquer das atuações contrárias da lei antes do ato decisivo da justiça”.[4] A estima, pois, dos atos praticados pela defesa técnica – se bem ou mal sucedidos – é juízo que cabe apenas na sentença de mérito, ao cabo do processo, não podendo, nem de longe, figurar motivo para decretação da prisão processual do acusado.

7. No que tange ao fundamento de garantia de aplicação da lei penal, estou em que se confundiu prisão processual com prisão civil por dívida

Explico.

Alegam os impetrantes que o seqüestro seria medida civil, inserida no âmbito do processo penal, de modo que deixar o ora agravante de elucidar o paradeiro das obras seqüestradas não impediria a aplicação da lei penal.

Não obstante indiscutível o fato de a sentença condenatória transitada em julgado tornar certa a obrigação de reparar o dano, não é bem essa a razão que decide. Relevante é que o perdimento de bens em favor da União constitui efeito secundário ou automático da sentença condenatória.

Assim, o seqüestro de bens, enquanto medida cautelar prevista no Código de Processo Penal, suposto se preordene à reparação do dano que nasce do delito, prende-se à hipótese de perdimento, ainda que de forma residual (art. 91, inc. II, a, do Código Penal, e art. 133 do Código de Processo Penal) [5].

Por ser o perdimento de bens, nos termos do Código Penal, efeito secundário ou automático da decisão condenatória transitada em julgado, poder-se-ia imaginar que a frustração da medida destinada a acautelá-lo legitimaria a prisão preventiva, à conta de necessidade de, por essa via coercitiva ou indireta, garantir a aplicação da lei penal, tal como dispõe o art. 312 do Código de Processo Penal.

Para produzir-se, o perdimento de bens independe, contudo, de recolhimento do condenado ao cárcere. É que, como efeito necessário ou automático da sentença condenatória, atua ope legis, não precisando sequer de ser declarado. Donde, a eficácia do seqüestro, porque tende a garantir-lhe a efetividade, também contra terceiros, atingir sempre os bens onde quer que se encontrem e qualquer que seja seu possuidor ou proprietário aparente (direito de seqüela).

Não se pode, pois, resvalar aqui em dois equívocos de monta. O primeiro, supor necessidade de prisão do réu para garantir a eficácia do seqüestro e do perdimento eventual e residual dos bens, que essa opera ex vi legis. O segundo, ter por legítima prisão preventiva do acusado a título de coerção análoga à da prisão civil do depositário infiel. Não é essa a finalidade da prisão preventiva, que foi a que com tal alcance se decretou no caso, onde a decisão impugnada não cogitou de hipótese de infidelidade de depositário.

A necessidade de garantir a aplicação da lei penal, como causa de prisão preventiva, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal, entende-se apenas com a hipótese de cumprimento de pena privativa de liberdade e, portanto, com perigo de fuga. Ou, como sintetiza autorizada doutrina:

“A terceira das finalidades atribuídas por nosso legislador ordinário à prisão preventiva é a de ‘assegurar a aplicação da lei penal’, ou seja, evitar que, diante da possível fuga do acusado, pelo temor da condenação, venha a ser frustrada a futura execução da sanção punitiva”[6].

Destarte, soa como civil e ilícita a prisão preventiva decretada pelo Juízo da 6a Vara Federal Criminal da Seção de São Paulo, para assegurar a “a efetividade do Seqüestro das obras desaparecidas e não apresentadas” (sic, fls. 216), como se fosse uma das duas exceções à proibição constitucional da prisão por dívida (art. 5°, inc. LXVII, da Constituição da República).

8. Diante do exposto, concedo liminar em favor do agravante, até o julgamento definitivo deste habeas corpus.

É como voto.


[1] PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo penal. O direito de defesa: repercussão, amplitude e limites. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 397.

[2] MENDES DE ALMEIDA, Joaquim Canuto. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais 1973, p. 122.

[3] MENDES DE ALMEIDA, Joaquim Canuto. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais 1973, p. 99-100.

[4] MENDES DE ALMEIDA, Joaquim Canuto. Idem, p. 118.

[5] VICENTE GRECO FILHO, diferentemente, entende que o seqüestro, fundado no interesse público, visa unicamente ao perdimento ou confisco de bens como efeito da condenação e, por isso, caso o ofendido também objetive assegurar a reparação do dano, deve, concomitantemente ao seqüestro, requerer ao Juízo o arresto ou especialização da hipoteca legal (Manual de processo penal. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 185-186 e 188).

[6] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 71.

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