Eldorado de Carajás

STF liberta acusado de participar do massacre de Carajás

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23 de setembro de 2005, 22h22

O ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, mandou libertar o ex-comandante da Polícia Militar Mario Colares Pantoja. Ele foi preso por envolvimento no episódio Eldorado dos Carajás, no Pará, que resultou na morte de 19 integrantes do Movimento dos Sem Terra, em 1996.

O ministro entendeu que “a garantia constitucional não tolera execução provisória de sentença condenatória antes do trânsito em julgado”, argumento apresentado pela defesa.

Peluso ressaltou, ainda, que o tema está em discussão no Supremo na Reclamação 2.391, com julgamento iniciado em 2003, assim como a constitucionalidade da execução provisória da sentença condenatória na pendência de análise de recursos extraordinário e especial.

Assim, o relator determinou a expedição de alvará de soltura em favor do ex-comandante, “para que solto aguarde a decisão final da Reclamação 2.391 e do HC 84.078”.

Leia a íntegra da decisão

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 86.274-8 PARÁ

RELATOR : MIN. CEZAR PELUSO

PACIENTE(S) : MARIO COLARES PANTOJA

IMPETRANTE(S) : ROBERTO LAURIA

COATOR(A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DECISÃO: 1. Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de MARIO COLARES PANTOJA, contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça no HC nº 39.912 (Rel. Min. GILSON DIPP), de cuja ementa consta:

CRIMINAL. HC. HOMICÍDIOS QUALIFICADOS. APELAÇÃO DESPROVIDA. EXPEDIÇÃO DE MANDADO PRISIONAL ANTES DO TRÂNSITO EM JULGADO. RECURSOS ESPECIAL E EXTRAORDINÁRIO SEM EFEITO SUSPENSIVO. ART. 675 DO CPP.

INAPLICABILIDADE. CUSTÓDIA DO RÉU. MERO EFEITO DA CONDENAÇÃO. ORDEM DENEGADA.

I. Tanto o recurso especial quanto o extraordinário não têm, de regra, efeito suspensivo, razão pela qual a eventual interposição destes não é hábil a impedir a imediata execução do julgado, com a expedição de mandado prisional contra o réu para o início do cumprimento da pena.

II. Precedentes do STJ e do STF.

III. A regra do art. 675 do Código de Processo Penal, que prevê a expedição de mandado de prisão somente após o trânsito em julgado da condenação, aplica-se apenas no caso de recurso com efeito suspensivo, hipótese não verificada in casu. Precedente da Suprema Corte.

IV. Ordem denegada.

O ora paciente viu confirmada sua condenação – por participação no episódio conhecido como processo de Eldorado de Carajás-PA, em confronto entre membros do Movimento dos Sem Terra e a Polícia Militar Estadual – no Tribunal de Justiça local, que, apesar dos recursos extraordinário e especial interpostos, determinou a imediata expedição de mandado de prisão contra ele (fls. 131). Os recursos não foram admitidos, razão pela qual interpôs agravos de instrumento para esta Corte e para o Superior Tribunal de Justiça (fls. 132 e 133).

Alega, o paciente, violação ao princípio da presunção de inocência, segundo o qual não pode o réu iniciar cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, o que ainda não ocorreu.

Requer seja concedida a ordem para cassar a decisão que lhe determinou o recolhimento e, em liminar, a expedição de alvará de soltura, para que aguarde solto a solução deste writ.

A liminar foi indeferida pela Presidência da Corte (fls. 150).

Parecer da PGR é pela concessão da liminar, sobrestando-se o

julgamento do habeas até que seja proferida decisão final nos autos da Reclamação nº 2.391 ou até que sobrevenha o trânsito em julgado da sentença condenatória (fls. 170).

2. É caso de liminar.

A questão da harmonia entre a execução da sentença condenatória ainda sujeita a recurso e o princípio constitucional da presunção de inocência está sendo, com amplitude, examinada pelo Plenário desta Corte, nos autos da Reclamação nº 2.391, em julgamento desde setembro de 2003.

No HC nº 84.078 (Rel. Min. EROS GRAU), igualmente remetido ao Plenário, analisa-se, especificamente, a constitucionalidade, ou não, da execução provisória da sentença condenatória na pendência de recursos extraordinário e especial, ou de agravos de instrumento contra juízo de sua inadmissibilidade: “A Turma, por maioria, decidiu remeter ao Plenário habeas corpus em que se discute a possibilidade, ou não, de se expedir mandado de prisão contra o acusado nas hipóteses em que a sentença condenatória estiver sendo impugnada por recursos de natureza excepcional, sem efeito suspensivo. Vencidos os Ministros Cezar Peluso e Eros Grau, relator. Tratase de habeas corpus impetrado contra acórdão do STJ que mantivera a prisão preventiva do paciente/impetrante, por entender que esta, confirmada em segundo grau, não ofende o princípio da não-culpabilidade, porquanto os recursos especial e extraordinário, em regra, não possuem efeito suspensivo – v. Informativo 367. HC 84078/MG, rel. Min. Eros Grau, 24.11.2004. (HC nº 84.078)” (Informativo/STF nº 317).


Tendo este writ o mesmo objeto da Reclamação e do Habeas Corpus, fora curial aguardar-lhes o termo dos julgamentos, para decidir aqui sobre o pedido.

Passados vários meses, todavia, os julgamentos ainda se não concluíram, e essa foi a razão mesma por que decidiu o Plenário, na sessão de 18 de dezembro de 2003, conceder habeas corpus de ofício, para que o reclamante pudesse aguardar em liberdade o desfecho da causa.

Sinto-me, pois, livre para reapreciar o pedido de liminar, dada a necessidade de sobrestamento do feito para que se aguarde a solução que o Plenário desta Casa dará à matéria.

Nos termos do voto que proferi no julgamento da Reclamação, na sessão de 1º de outubro de 2003, ao analisar o disposto no inc. VII do art. 5o da Constituição da República: “Parece-me óbvio que essa disposição constitucional não é, como não o é norma constitucional alguma, mera recomendação, nem tomada teórica de posição do constituinte a respeito da natureza da condição processual do réu; ela tem não menos óbvio sentido prático. Embora alguns vejam, em tal norma, uma suposta presunção de inocência, parece-me lícito abstrair indagação a esse respeito, no sentido de saber se hospeda, ou não, presunção de inocência. Há autores, sobretudo na Itália, que a propósito de regra análoga sustentam não conter presunção alguma, nem de inocência, nem de culpabilidade, senão e apenas enunciado normativo de garantia contra possibilidade de a lei ou decisão judicial impor ao réu, antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, qualquer sanção ou conseqüência jurídica gravosa que dependa dessa condição constitucional, ou seja, do trânsito em julgado de sentença condenatória. Em outras palavras, independente de saber se contém, ou não, alcance de presunção – pode-se até dizer que a presunção de inocência é só uma das decorrências ou consectários dessa garantia, projetando-se como tal, por exemplo, na distribuição dos ônus da prova no processo, o certo é que essa cláusula garante ao réu, em causa criminal, não sofrer, até o trânsito em julgado da sentença, nenhuma sanção ou conseqüência jurídica danosa, cuja justificação normativa dependa do trânsito em julgado de sentença condenatória, que é o juízo definitivo de culpabilidade.

Temos, pois, aqui, o seguinte dilema, já posto pelo Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE: tirando-se as hipóteses de prisão em flagrante – a cujo respeito como modalidade de prisão cautelar, que é, não quero discorrer aqui, bastando estar prevista na Constituição – e de prisão preventiva, cuja finalidade básica é a tutela do processo, a possibilidade de alguém ser ou manter-se preso nos termos de ambas as normas invocadas na sentença não vejo como qualificar-se senão como hipótese típica de execução provisória de sentença penal (recorrível) e que por isso mesmo ofende de modo direto a garantia do inciso LVII do art. 5º da Constituição da República, porque se está impondo àquele que, na forma da mesma Constituição, ainda não foi considerado culpado por sentença transitada em julgado, a mais grave das sanções, que é a privação da sua liberdade.

Parece-me que, além disso – como já salientado pelos Ministros MARCO AURÉLIO e SEPÚLVEDA PERTENCE -, o que acentua a gravidade da interpretação da sentença é que as leis tratem de maneira penosamente invertida e desigual bens jurídicos que estão em posições hierárquicas distantes, ou seja, a lei subalterna não admite, na execução civil provisória, a qual tem só efeitos de caráter patrimonial e quase sempre reversíveis, a prática de atos de adjudicação ou de qualquer outra forma de alienação, ao passo que as duas normas penais aplicadas pela sentença permitiriam a imposição da sanção extrema e gravíssima da privação da liberdade, a qual é irreversível pela razão manifesta de que não há maneira de o sistema jurídico repará-la sequer mediante o expediente subrogatório da indenização (que aliás, não se sabe quando é paga). Esse tratamento normativo desigual, que castiga o réu com perda injusta e irreparável da liberdade física, agride o princípio da proporcionalidade, como variável da razoabilidade. Creio inconcebível que o sistema jurídico tolere essa incoerência de regulamentação desproporcional de conseqüências sancionatórias para valores jurídicos absolutamente díspares, atribuindo prudente proteção a bem jurídico que, diria, não é o mais valioso da vida, o patrimônio, e, na esfera penal, negando-a à liberdade do cidadão! Isso, para mim, ofende frontalmente, além de cláusula constitucional específica (art. 5º, LVII), o princípio da proporcionalidade, que veda toda sanção injustificável quando comparada com conseqüência prevista para hipótese mais grave em abstrato.

Considero, também, absurdo não menor que se possa extrair do preceito constitucional, por exemplo, a conseqüência – como já lembrado, na Turma, pelo Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE – de que estaria proibido lançar, antes do trânsito em julgado da sentença, o nome do réu no rol dos culpados, como se esta fosse a coisa mais importante do sistema jurídico.


Como observou S.Exa., nunca se viu ou soube que alguém consultasse alguma vez tal livro! Seria esse, outro tipo gritante de desproporcionalidade: sustentar a impossibilidade de manter o nome do réu no rol dos culpados, mas permitir que ele permaneça preso até que sobrevenha julgamento definitivo, o qual bem pode declará-lo inocente! Nada haveria de razoável nessa desequilibrada ponderação normativa que de igual modo subverteria a escala de valores emergentes da Constituição”.

E, no caso dos autos, a prisão decretada pelo Tribunal de Justiça local não se fundamenta em eventual necessidade de acautelar o juízo, mas apenas na condenação ainda precária do paciente, e cuja sentença está em grau de apelação (fls. 128/130). Ou seja, trata-se da inadmissível “execução provisória” de sentença penal.

No ponto, convém lembrar que esta Corte já vinha repudiando a execução provisória da pena de multa aplicada em caso de condenação criminal, verbis:

“Execução penal: pena de multa: exeqüibilidade sujeita ao transito em julgado da condenação. 1. O transito em julgado da decisão condenatória constitui o termo inicial do prazo para a satisfação da pena de multa (CPen., art. 50), cuja exaustão, de sua vez, e pressuposto daexecução compulsória (LEP, art. 164). 2. Para esse efeito, não e dado reputar transitada em julgado a decisão que, embora proferida em instancia única pelo Supremo Tribunal, esta sujeita a embargos de declaração, pois do seu julgamento pode eventualmente decorrer a alteração do julgado. 3. Do paradoxo de que se venha admitindo, malgrado o art. 5., LVII, da Constituição, a execução provisória da pena privativa de liberdade – por definição, irreparável -, a qual não se admite na da pena pecuniária – de fácil restituição -, o que se extrai e um argumento a mais contra a jurisprudência firmada quanto a primeira, não, a possibilidade de abstrair-se, quanto a execução da multa, da exigência legal inequívoca da coisa julgada” (Pleno, Pet nº 1.079-AgR, Rel. Min.SEPÚLVEDA PERTENCE.).

Não sobreveio ainda trânsito em julgado do acórdão, já impugnado por via de recursos especial e extraordinário, os quais, não admitidos, deram causa à interposição de agravos de instrumento pendentes de decisão, como, aliás, o reconheceu o Superior Tribunal de Justiça. Posto que careçam tais recursos de efeito suspensivo, força é convir que a garantia constitucional não tolera execução de sentença condenatória, em qualquer de suas eficácias, antes do trânsito em julgado.

3. Do exposto, concedo a liminar, determinando a expedição de alvará de soltura em favor do paciente, para que solto aguarde a decisão final da Reclamação nº 2.391 e do HC nº 84.078, período em que devem permanecer os autos na Secretaria Judiciária, voltando-me conclusos após o julgamento.

Comunique-se, com urgência, por ofício e fac-símile, o inteiro teor desta decisão ao Superior Tribunal de Justiça e ao Tribunal de Justiça do Estado do Pará, que deverá providenciar a expedição de alvará de soltura em favor do paciente.

Publique-se. Int..

Brasília, 23 de setembro de 2005.

Ministro CEZAR PELUSO

Relator

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