Investigação criminal

Ao investigar, MP põe em risco a segurança jurídica do país

Autor

  • Luís Guilherme Vieira

    é advogado e cofundador e conselheiro do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e da Sacerj (Associação dos Advogados Criminais do Estado do Rio de Janeiro).

5 de setembro de 2005, 18h21

“(…) a repressão à criminalidade é uma necessidade imperativa de qualquer sociedade. Deve ser efetivada com presteza, seriedade e rigor. Mas há limites muito nítidos. (…) Qualquer transigência, aqui, é o sacrifício do Direito no altar das circunstâncias.”1

I — Introdução

A partir da promulgação da Carta da República de 1988, o Ministério Público, lastreado em fundamento que dizem lhes dar supedâneo legal, vem, amiúde, realizando diretamente investigações criminais (principalmente, como se vê no cotidiano forense, naqueles emblemáticos casos midiáticos ou naqueloutros em que a opinião publicada, que difere da opinião pública, rotula como gravoso), sem requisitar, à autoridade policial, a instauração de inquérito. Sustentam, em síntese apertada, que, sendo os titulares da ação penal pública, não podem ser — aliás, nunca foram — um mero convidado de pedra durante à realização do procedimento adminicular, motivo pelo qual podem, não só requisitar diligências ao delegado de polícia, mas realizá-las diretamente, se for necessário e conveniente (quem pode o mais, pode o menos, alegam). Tudo, sumariam, em nome da segurança pública que está a impor a todos uma adequação à realidade moderna, ditada pela criminalidade dita organizada e/ou violenta.

Para corporificar, ainda mais, esse pseudo-poder investigador, aduzem que a codificação processual penal vigente é inadequada para que o parquet possa, com a presteza que a repressão criminal está a exigir das autoridades em tempos atuais, agir de modo eficaz, porque “o sistema [hoje] adotado deixa a desejar quanto à eficácia e agilidade das investigações. Embora protagonistas da mesma atividade de persecução penal, a interdependência entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público é muito deficitária, quando não rejeitada completamente”.2

Porém, não custa rememorar, tudo isso foi muito bem sopesado pelo constituinte de 1988, que optou, apesar de opiniões em contrário, por manter o sistema vigente, que dá, à autoridade policial, atribuição exclusiva para presidir inquéritos criminais, salvo raríssimas exceções legais. Adequações hão de vir para aprimorar o sistema processual patrício, ninguém ousa contestar, mas desde que não vilipendiem a Carta Política.

II — O Supremo Tribunal Federal: o leading case

O Ministério Público não possui atribuições para realizar, diretamente, investigação de caráter criminal — essa foi a decisão, prolatada em maio próximo passado, no recurso ordinário em Habeas Corpus nº 81.326-7,3 pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, unanimemente, sob o voto condutor do ministro Nelson Jobim. Esse julgamento erige-se num corolário de diversas outras decisões de tribunais de todo o país que, antes com algumas hesitações, hodiernamente têm consagrado o mesmo entendimento.

A divulgação de tal decisum constituiu-se num forte sopro sobre as brasas da polêmica que vem, há mais de dez anos, sendo alimentada, no mundo jurídico, pela instauração e funcionamento dos chamados “procedimentos investigatórios criminais” (no Rio de Janeiro) ou “procedimentos administrativos criminais” (em São Paulo e alhures). Por certo, o assunto é dos mais ardentes, dos mais palpitantes, porque está a envolver acirrados debates Brasil afora, quer nas academias quer nos tribunais, posto que a decisão pretoriana põe por terra toda uma novel ideologia ministerial, que pretendia — e ainda pretende, como veremos posteriormente — inovar, sem abrigo de Constituição ou lei, o destino da investigação de natureza penal.

Em seu voto, o ministro Jobim demonstra que, historicamente, no direito processual penal brasileiro, as atribuições para realizar as investigações preparatórias da ação penal têm sido da polícia, pelas mais diversas razões (que explicitaremos adiante), as quais têm prevalecido a ponto de todas as iniciativas no sentido de mudar as regras nessa matéria terem sido repelidas, desde a proposta de instituir juizados de instrução feita pelo então ministro da Justiça, Vicente Ráo, em 1935, passando pela elaboração da Constituição de 1988, pela feitura da lei complementar relativa ao Ministério Público, em 1993, até propostas de emendas constitucionais em 1995 e 1999, com o objetivo de dar atribuições investigatórias ao parquet.

Os legisladores constituintes e ordinários sempre rejeitaram a idéia de transformar o Ministério Público em “Grande Inquisidor”, reservando a ele o papel superior de controlador/fiscalizador das investigações policiais. Destarte, o ministro Jobim, que foi parlamentar constituinte, afirma, com a autoridade e a segurança de quem faz a interpretação autêntica, que a mens legis das normas em vigor é, seguramente, na direção de manter as investigações criminais como atribuição exclusiva da polícia judiciária.


II — Breve escorço histórico

Mantendo uma perspectiva histórica da discussão, devemos mencionar que, da parte dos advogados, foi A. Evaristo de Moraes Filho4 um dos que mais cedo manifestou sua preocupação diante do (inconstitucional) fenômeno investigatório do Ministério Público. E ousou fazê-lo em palestra proferida na Escola Superior do Ministério Público da Bahia, em fins de novembro de 1996.

Em setembro daquele mesmo ano, o professor Luiz Alberto Machado,5 titular da UFPR, instado a se manifestar sobre a matéria a pedido da Associação dos Delegados de Polícia de Carreira do estado do Paraná, agindo, por certo, em “prévio conluio espiritual” com Evaristo, também, depois de especial estudo, concluiu que “as polícias civis estaduais e a polícia federal detêm o monopólio constitucional da investigação criminal e, conseqüentemente, do inquérito policial”, por conseguinte, “ao Ministério Público é constitucionalmente defeso investigar e coletar informações, indícios e provas para o processo-crime”.

Naquele trabalho, Evaristo deita por terra o mito criado a respeito da legislação européia, cujo exemplo se quis, canhestramente, seguir, demonstrando que, ressalvando-se a Inglaterra, onde o Ministério Público não investiga diretamente, deixando tal mister à polícia, no continente, prevalece sistema oposto, figurando essa instituição como condutora das investigações preliminares. Porém, não são lá as coisas como atualmente se quer fazer — reproduzimos as palavras de Evaristo:

“Há de ressalvar, porém, que o novo código italiano preocupou-se em estabelecer uma diversificação de funções, ainda na fase preliminar, instituindo a figura do giudice per le indagini preliminari (artigo 328), incumbido de manifestar-se sobre certas questões de natureza probatória, e competente para examinar o pedido de arquivamento, e, sobretudo, para decidir sobre a abertura da ação penal, após uma audiência de caráter contraditório, com possibilidade de colheita de novas provas. A presença deste juiz é a forma de controlar, indiretamente, a atuação do Ministério Público, como que em resposta à famosa indagação de Juvenal: Quis coustodiet ipsos Custodes?

Por fim, ratificando a tendência do séparatisme destacada por Pradel, o diploma peninsular não permite ao juiz que prolatou decisão na fase da audiência preliminar prosseguir funcionando nas etapas ulteriores do processo (artigo 342).”6

Como se vê, ainda que inquisidor no Velho Mundo,7 não resta o pubblico ministero senhor absoluto do procedimento; as provas que colhe na sua atividade investigatória são submetidas a juiz e se estabelece contraditório antes mesmo da instauração do processo, ao contrário do que se vem fazendo em terras patrícias, onde a promotoria instaura procedimento, decide que diligências e inquirições realizar (e as realiza ao seu talante), mantém a defesa técnica ao largo da investigação8 e, ao fim e ao cabo, oferece denúncia com base unicamente nesse inquérito ministerial secreto (por eles batizado de procedimento investigatório ou administrativo criminal, como se o eufemismo fosse capaz de suavizar o escopo precípuo, que é a promoção, às avessas, do inquérito policial), com cores da Inquisição e de Kafka, temperado à moda de ditadura militar nacional, do qual, durante o andamento, a ninguém dá satisfações.

Em síntese: registram, investigam e denunciam, quando, não raro, antecipam, pela imprensa, “sentença penal irrecorrível” proferida em desfavor de quem há de ter preservada a presunção de inocência, como determina a Constituição da República. Neste passo, principalmente no atinente às inescrupulosas, às antiéticas e às sensacionalistas revelações midiatizadas, por vezes fornecidas à sorrelfa (parte do povo e os veículos de comunicação, sempre ávidos por furos de reportagem, são testemunhas vivas do que afirmamos), devemos salientar, em honra à importante instituição e à maioria de seus integrantes, que este procedimento não é por todos adotado, mas, como lembra o ex-procurador-geral da República Aristides Junqueira,9 “eles aparecem mais”, talvez porque, como lança Eduardo Carnelós,10 “a turba gosta”.

Aliás, Eduardo Carnelós, ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo, questiona, acicatando o debate e contrapondo argumentos sofistas no sentido de se admitir até, pasmem, ser o Ministério Público investigador criminal uma “verdadeira parte-imparcial, tanto na atividade pré-processual como no plano do trâmite do processo criminal”11, remata:

“Se os membros do Ministério Público se auto-intitulam defensores do povo, acabam com o devido processo legal, com o contraditório. Afinal, quem é que vai estar contra o povo? Quem vai negar o que é do povo? Como posso eu, como advogado, pretender contrariar o que está sendo dito pelo defensor do povo? Como pode o juiz não atender a pretensão do defensor do povo?

Segundo ele, ‘quando se confere poder de proteção do povo a uma simples instituição, chega-se ao totalitarismo. É preciso repensar os poderes do Ministério Público. Hoje, o cidadão não tem proteção diante do poder do MP. Estamos assistindo à disseminação do abuso e o cidadão está perdendo a possibilidade de invocar a seu favor as garantias constitucionais’, disparou”.


Com efeito, a forma de investigação recém-repelida pela Corte Suprema milita em direção frontalmente oposta à tendência mundial em se preservar, ainda nas palavras de Evaristo de Moraes, o respeito à paridade de armas, o que, por si só, já seria razão suficiente para não se admiti-la. Nesse sentido, Nélio Machado12 destaca que a referida tendência ao equilíbrio de forças se manifesta na Carta Política, a qual estabelece “uma verdadeira simetria, uma absoluta paridade entre as funções da acusação pública e da defesa”. E nos chama a atenção para o fato de os doutrinadores afirmarem, em uníssono, que deve haver igualdade entre as partes — a chamada paridade de armas, repita-se, sempre e sempre —, equilíbrio que se esvairá se uma delas, a acusação, açambarcar atividade investigatória, com poderes inauditos, em desfavor da defesa.

Entretanto, além do nefasto desequilíbrio entre as partes, a arranhar o devido processo legal, há razão outra, das melhores, para que não se admita arremedo de inquérito policial pelo parquet. Ainda Evaristo quem a ressalta.13 Trata-se do risco da parcialidade. Diríamos nós, não há risco; há, sim, parcialidade, aventurando-nos a acrescentar algo ao entendimento do mestre que tanta falta nos faz.

Quem investiga adota, logo no início de seus trabalhos, um determinado ponto de vista (independentemente de qual seja a autoridade investigante),14 uma hipótese provisória (no dizer de Altavilla, apud Evaristo), uma premissa maior, sem a qual nenhuma conclusão advirá. Tal hipótese pode seduzir — e como seduz! — o investigador de tal forma, que o torne indiferente (cego, seria a expressão propícia) a qualquer outra possibilidade, o que seria extremamente danoso se ocorresse com um promotor de Justiça inquisidor e se torna minimizado com a separação de funções preconizada nas normas vigentes.

Aliás, não venham argumentar que isto estaria sepultado com o advento da súmula 234,15 do Superior Tribunal de Justiça, porque esta, embora indesejada em nosso sentir — ideal seria adotarmos o sistema processual que, instituindo o juiz das garantias, vedasse, conseqüentemente, tal possibilidade, pois é natural que o promotor que funcionou na fase pré-processual esteja embevecido por suas “verdades”, ou seja, que a exordial só fosse deduzida, e recebida, depois que houvesse ampla oportunidade para a defesa técnica contraditá-la — não tem qualquer relação com a figura do promotor investigante. A súmula faz menção ao representante do Ministério Público que oficia, no exercício do controle externo das atividades policiais, na fase do inquisitorial, não sendo defeso ofertar denúncia sobre aquilo que foi colhido no caderno policial.

III — Ministério Público investigante: vedação constitucional e infraconstitucional

Pois bem, sem embargo dos bons motivos já elencados para não se acatar a figura do promotor de Justiça investigador, a maior das razões é que, simplesmente, a Constituição da República, tanto como as demais leis, não o permitem. A interpretação dada pelos que afirmam poder o Ministério Público investigar crimes é equivocada, de leitura distorcida. Dizemos isso com apreço aos que não comungam desta hóstia, como, por exemplo, o eminente procurador-geral da República, professor Cláudio Fonteles, os representantes do Ministério Público gaúcho, federal e estadual, respectivamente, professores Luciano Feldens e Lênio Streck, 16 e os professores e membros do órgão ministerial no Rio de Janeiro Sérgio Demoro Hamilton,17 José Muiños Piñeiro18 e Paulo Rangel.19 Isso porque não é possível emprestar interpretação outra que não a sistemática e garantista dos incisos de um artigo de legislação em pleno compasso à sua mens legis.

Forçoso rememorar, neste instante, parte do voto do ministro Jobim, 20 o qual, então parlamentar constituinte, bem se recorda dos bastidores do Congresso Nacional, podendo, quinze anos após a promulgação da Carta de 1988, trazer seu abalizado testemunho no sentido de que:

“Na Assembléia Constituinte (1988), quando se tratou de CONTROLE EXTERNO DA POLÍCIA CIVIL, o processo de instrução presidido pelo MINISTÉRIO PÚBLICO VOLTOU A SER DEBATIDO.

Ao final, manteve-se a tradição.

O Constituinte rejeitou as Emendas 945, 424, 1.025, 2.905, 20.524, 24.266 e 30.513, que, de um modo geral, davam ao MINISTÉRIO PÚBLICO a supervisão, avocação e o acompanhamento da investigação criminal.

A Constituição Federal assegurou as funções de POLÍCIA JUDICIÁRIA e apuração de infrações penais à POLÍCIA CIVIL (CF, artigo 144, 4º)”.

O texto constitucional em tela, por conseguinte, restou assim promulgado, in verbis:

“Artigo 129. São funções institucionais do Ministério Público:

I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

(…)

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

IV – promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição;

(…)

VI – expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;

VII – exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;

VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; (…).”


É impossível ter outra exegese — o parquet promoverá, além da ação penal pública, o inquérito civil e a ação civil pública, podendo expedir notificações para requisitar documentos, no âmbito dos procedimentos administrativos de sua competência, quais sejam, os inquéritos civis públicos e outros (os tais “correlatos”, artigo 38, I, da lei orgânica nº 75/1993, como, por exemplo, os preparatórios de ação de inconstitucionalidade ou de representação por intervenção). Não há como se concluir de maneira diferente, a não ser sofismando. Não pode o parquet, por falta de competência legal, realizar investigação criminal.

Diriam, com paralogismo, principalmente os que não concordam com o nosso pensar, em especial destaque, aqueles que conosco debateram na 149ª Reunião Ordinária do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana21, os representantes do parquet Cláudio Fonteles (procurador-geral da República), José Muiños Piñeiro Filho (ex-procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro) e Luiz Antonio Marrey Filho (procurador-geral de Justiça de São Paulo), que o órgão ministerial não pretende, jamais, usurpar as funções da polícia judiciária, a quem compete presidir, com exclusividade, admitem, os inquéritos policiais (artigo 144, IV, CRFB). Não pretendem, de maneira alguma, gizam, transformar seus gabinetes em burocráticos cartórios policiais, em resumo.

Porém, pretendem, sim, investigar, legitimados pela tal “pseudo-atribuição concorrente/supletiva” à polícia judiciária que supõem ter, como assinalou o professor Fonteles,22 fundamentando seu pensar, dentre outros argumentos (vamos relembrar todos adiante), com o conhecido adágio popular “de quem pode o mais pode o menos” — argumento falacioso, porque, como curial entre os hermeneutas de boa estirpe, não pode ter efetividade contra a lei; em conseqüência, inaplicável ao tema em estudo.23 Dizia Fonteles, a título demonstrativo, que, em tais ou quais crimes24 (como os de corrupção de policiais e de outras autoridades hierarquicamente superiores, derivados de organização criminosa etc.),25 a polícia não possui a independência suficiente para investigar, trazendo à balha para clarificar, a investigação que desencadeou na apelidada “Operação Anaconda”, a qual arrastou às agruras do processo criminal juízes, policiais, advogados, auditores da Receita Federal etc., todos, atestam os noticiários, suspeitos de praticarem crimes contra a administração pública e outros mais.

Ademais, explicitou, ainda, o referido professor26, com o brilhantismo que lhe é peculiar, o fato de o artigo 38, inciso I, da lei complementar nº 75/1993, dispor ser função institucional do Ministério Público instaurar inquérito civil público e outros procedimentos correlatos, não lhes retira a atribuição/competência de promover, estribados na tal “pseudo-atribuição/competência concorrente/supletiva”, investigação de índole criminal. Isto não é verossímil: diferentemente do particular, aos órgãos públicos a competência há de estar prevista em lei.27 Se não estiver, como não está in casu, é porque ele não a possui. Tout court.

IV — Vale a palavra do Ministério Público?

Como o debate ali travado era de tempo restrito, não nos foi possível revelar que, por intermédio de Wladimir Sérgio Reale, delegado de polícia fluminense aposentado e presidente da ADEPOL/RJ, havíamos tido acesso à cópia reprográfica do esclarecedor ofício PRESI nº 31/1992, de Brasília e datado de 6/5/1992, da lavra do então presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, doutor Francisco José Teixeira de Oliveira, dirigido ao também então procurador-geral da República, doutor Aristides Junqueira, o qual, em linhas gerais, informava, ao último, “o resultado das conversações que [havia mantido], acompanhado pelo colega Dr. Amir José Finocchiaro Sarti, com representantes dos Delegados de Polícia Federal, a propósito de Lei Orgânica do Ministério Público da União”, salientando o procurador Oliveira que, porventura merecedor da homologação de Junqueira, a conciliação das posições assumidas permitiriam “o prosseguimento dos trâmites legislativos, afastados, pelo menos, os embargos opostos pelos policiais”. Como se observará adiante, no que pertine à matéria em questão, aquele procurador-geral da República não se opôs, tornando-se lei o ajustado.

Sabemos que, durante a tramitação de leis pelo parlamento, os segmentos representativos da sociedade civil, no exercício salutar da democracia, fazem, de forma aberta, o seu lobby, e, no particular, classistas do Ministério Público e da Polícia Federal (antes, com a participação dos da polícia civil) nunca deixaram de fazê-lo, cada um defendendo, dentro do espírito público que os norteia, os pontos de vista das instituições que integram e representam. Travavam-se, naquela ocasião, discussões sobre o projeto de lei que desaguaria, como desaguou, na Lei Orgânica do Ministério Público da União nº 75/1993 e os policiais temiam, não sem razão, atestamos hoje, que a argumentação do órgão ministerial fosse suficientemente capaz de lhes retirar os exclusivos poderes que lhes foram cometidos pela Carta Cidadã, em relevo, o de presidir o inquérito policial.


É mais uma vez o ministro Nelson Jobim28 quem nos faz rememorar tais conversações:

“(…) o tema voltou a ser discutido quando, em 1993, votava-se no Congresso Nacional a lei complementar relativa ao MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO e ao MINISTÉRIO PÚBLICO DOS ESTADOS, em que havia essa discussão do chamado processo de instrução que pudesse ser gerido pelo MINISTÉRIO PÚBLICO.

Há longa disputa entre o MINISTÉRIO PÚBLICO, a POLÍCIA CIVIL e a POLÍCIA FEDERAL em relação a essa competência exclusiva da polícia de realizar os inquéritos.

Lembro-me que toda essa matéria foi rejeitada, naquele momento, no Legislativo (…)”.

Diante desse impasse, a Associação Nacional dos Procuradores da República, contando com o concurso de “representantes dos delegados de Polícia Federal”, e com o fito de pôr cobro aos conflitos de interesses que vinham “obstaculizando a tramitação da nossa lei no Congresso Nacional, em razão de discordância quanto a diversos dispositivos do projeto, supostamente lesivos aos interesses corporativos da classe policial”, celebrou, com aqueles, um ajustamento, que, na parte que nos aproveita, guarda relação, tão-só, com o acréscimo, no artigo 38, I, daquele projeto legislativo (com o advento da lei, o texto não restou alterado, prevalecendo o acordado), do “termo correlatos (o que limita o alcance do dispositivo ao campo da ação civil pública, como parece ser o alcance real do dispositivo)”. “Correlatos”, então, à ação civil pública, confessam. Portanto, este é, e sempre foi, o espírito da lei. Sem tirar nem pôr. Melhor, posto e interpretado, por ser a única exegese, pelo então presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, em documento oficial, enviado a seu chefe institucional, que com ele concordou.

Demais isto, também municiados pelo delegado aposentado Wladimir Reale, podemos anotar que o citado ajustamento já havia sido celebrado, em 25/11/1992 e entre as mesmas partes — sendo que, desta feita, com a participação expressa de dirigentes de órgãos das polícias estaduais (o termo de acordo, que Wladimir Reale nos encaminhou por cópia, é firmado, sem qualquer ressalva, pelos presidentes da ANPR, da CONDEPOL/Brasil e ADEPOL/DF, da ANDPF, da ADEPOL/RJ — assistida pela autoridade policial aposentada e já referida —, do SINDPESP, da ADPESP, e por membros da SPF/MJ e da PGR, a qual, não é desimportante bradar, ao revés, no ato se fazia representar, nada mais, nada menos do que pelo atual procurador-geral da República, professor Cláudio Fonteles) —, e estava vinculado “tanto à aprovação do texto legal no Senado da República, quanto na Câmara Federal, no que pertine às relações entre o Ministério Público da União e a atividade policial, ficando desde logo desautorizada pelas entidades que subscrevem o presente termo qualquer nova alteração do texto proposto pelo Relator. Sen. Amir Lando, no particular”. É o que se lê do documento, sem rebuços e sem ambages, celebrado quando ainda tramitava o projeto de lei nº 11/1991, que disporia, como ao final dispôs, sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, assegurando, no inciso I do artigo 7º, ser função do Ministério Público, in verbis: “instaurar o inquérito civil e outros procedimentos administrativos correlatos”.

Conseqüentemente, o Congresso Nacional, a Casa do Povo, legitimou, privativamente, o que as partes interessadas (Ministério Público Federal e Polícias federal e estadual) haviam pactuado, restando a redação final do indigitado artigo 38, I, da lei complementar nº 75/1993, de maneira idêntica àquela relatada no ofício da lavra do então presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República. Senão, vejamos:

“Artigo 38. São funções institucionais do Ministério Público Federal as previstas nos Capítulos I, II, III e IV do Título I, incumbindo-lhe, especialmente;

‘I — instaurar inquérito civil e outros procedimentos administrativos correlatos.’”

Não custa dizer, só para que não reste “pedra sobre pedra”, que nos Capítulos I, II, III e IV do Título I, da lei complementar nº 75/1993, não encontramos (porque inexistentes) as tais “pseudo-atribuições/competência concorrentes/supletivas” e que estariam, no entendimento de Fonteles, Muiños Piñeiro e Marrey Filho a dar abrigo ao Ministério Público para realizar, diretamente, investigações de índole criminal. Ao contrário, no artigo 3º do Capítulo I, Título I, da lei em tela, vamos encontrar, somente, o relevantíssimo e nobilíssimo papel de poder-dever o Ministério Público exercer “o controle externo da atividade policial”.

Portanto, para os que fazem uma interpretação elástica e oblíqua da Constituição e da lei complementar nº 75/1993, como, citando mais um nome, o professor gaúcho Aury Lopes Jr., 29 sobrou patenteado que a Carta de 1988, por não consagrar qualquer comando expresso, vedou ao Ministério Público investigar crime (a exceção será adiante enfrentada). Em sede constitucional, excetuando-se as garantias individuais, interpretação só restritiva, é cediço.


De outro lado, sabemos que, embora outras entidades, públicas e privadas, também tenham legitimidade para ajuizar ação civil pública, somente ao Ministério Público foi cometido o poder-dever de instaurar inquérito civil, preparatório daquela, e, para a consecução de tal mister (inclusive nos feitos correlatos, correlatos ao inquérito civil público, perdoem-nos a crônica repetição), pode-deve o parquet, sim, se for o caso, ouvir testemunhas, requisitar documentos não acobertados pelo manto da reserva de jurisdição, determinar a realização de perícias etc. Realizar, diretamente, investigação de caráter criminal, não, porque não possui a tal “pseudo-atribuição/competência concorrente/supletiva” dada, apenas, à polícia judiciária.

V — Quem pode o mais, afinal, pode o menos?

É inequívoco reconhecer que pode-deve o Ministério Público, sim, desde que disponha dos elementos suficientes, ofertar denúncia de plano, posto ser o inquérito policial, nestas hipóteses, facultativo e dispensável. Porém, tal circunstância, que é inerente ao regular exercício da titularidade da ação penal pública (artigo 129, I, CRFB), não está a autorizar que, à mingua daqueles indisputáveis elementos necessários ao oferecimento da preambular, possa o órgão acusador prescindir do inquérito policial, o qual é de presidência exclusiva da autoridade policial (artigo 144, IV, CRFB).

Como já se sublinhou, para os entes públicos, 30 não há como se ver aplicado aquele dito popular aclamado por Fonteles. Não é pelo fato de o Ministério Público poder o mais (controle externo das atividades da polícia judiciária e legitimidade ativa exclusiva para promover os processos de natureza penal pública) que o legislador, implicitamente (“princípio constitucional dos poderes implícitos”),31 lhes conferiu poder o menos (investigar crimes), em virtude de limitações legais (explícita limitação àqueles argumentos sofistas). São singelas regras, demarcadas por claras linhas divisórias, que hão de ser respeitadas em uma República que se pretende oxigenada. Nos países democráticos, cada cidadão exerce sua missão na sociedade, com independência funcional, mas dentro dos hígidos parâmetros constitucionais e legais, não se permitindo que um invada as funções do outro. Devem, todos, sim, trabalhar como num time, com vista a atingir o fim almejado: o Estado de direito democrático.

Nem de longe ousaríamos sustentar que, assim, o representante do Ministério Público ficaria, na fase adminicular, restrito aos desconfortáveis limites impostos a um convidado de pedra, que nada poderia fazer para que esta ou aquela prova, por ele tida como indispensável à formação de sua opinio delicti, fosse produzida pela autoridade policial. Pode-deve o promotor de Justiça ter ciência, no prazo de lei, de todos os feitos que foram registrados em sede policial. 32 Se houver inércia, dolosa ou culposa, da autoridade processante, que se lance mão dos meios coercitivos disponíveis.

VI — Só a Polícia Judiciária investiga crime?

É incontroverso, também, que a Constituição conferiu, em certas e raríssimas circunstâncias, a outras autoridades, que não a policial, o poder de investigar, mas não crimes (as exceções ainda virão adiante).

Assim, a título de exemplificação, é que o Congresso Nacional investiga, com o auxílio do Tribunal de Contas da União (artigo 71, CRFB), ao exercer o controle externo sobre “a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas”, todavia, esta investigação/controle externo não ilidirá o “sistema de controle interno de cada Poder”. A mesma investigação/controle será exercida em face das pessoas referidas no parágrafo único, do artigo 71, da Carta Política. Porém, é indisputável que essas investigações não são de caráter criminal. Competindo, como compete, ao Congresso Nacional e/ou Tribunal de Contas da União “representar ao Poder competente sobre irregularidades [se criminais, pode se dirigir diretamente ao Ministério Público, Polícia ou Judiciário, sendo que este último repassará as informações aos primeiros] ou abusos apurados”. Por conseguinte, não investigam crimes, por não terem competência para tanto.

Doutra vertente, sempre ilustrando, vamos encontrar as comissões parlamentares de inquérito,33 as quais, sabemos, não têm o escopo de apurar crimes. Sua função cinge-se — como bem leciona o professor Luís Roberto Barroso,34 membro titular do Conselho de Defesa dos Diretos da Pessoa Humana e designado, pelo ministro Nilmário Miranda, para proferir parecer, ao colegiado, acerca da matéria título deste trabalho — a apurar fatos determinados (§ 3º, do artigo 58, da CRFB), “(…) de competência do Congresso Nacional, sem invadir atribuições de outros poderes, não podendo legitimamente imiscuir-se em fatos da vida privada nem se investir no papel de polícia ou de persecutor criminal” (destacamos).


Pontificando, a parte final do texto constitucional relativo às CPIs, que, “suas conclusões, se for o caso, [poderão ser] encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores”. Nesta hora, mais uma vez antevendo opiniões apressadas, é revelar que o fato de as conclusões das comissões poderem ser encaminhadas, “se for o caso”, ao parquet, a fim de que este “promova a responsabilidade (…) criminal dos infratores”, deve ser entendido, basicamente, na hipótese de o relatório conclusivo do inquérito parlamentar, recebido pelo órgão acusador como peças de informação, dispor daqueles mínimos elementos que o autorizam a oferecer, de imediato, denúncia, porque, nesta conjectura, como se sabe e já se disse, o caderno policial é despiciendo. Do contrário, não há outra solução: o Ministério Público requisitará à autoridade policial a instauração do competente procedimento policial, passando a exercer, por conseguinte, o controle externo da atividade policial, como bem avaliou Scarance.35

Abra-se, por imprescindível, um parêntese.

Olhos açodados hão de dizer que o constituinte de 1988, inovando os poderes das tão em voga comissões parlamentares de inquérito36 — que mais parecem devassas, dos tempos das Ordenações Filipinas, salvo raríssimas exceções —, deu a elas “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” (§ 3º, artigo 58, CRFB), motivo pelo qual podem, os parlamentares integrantes desta célula do Legislativo, investigar do mesmo modo que os juízes.

De imediato, é bom gizar, e com giz bem luminoso, que magistrado não investiga coisíssima nenhuma. A regra de exceção, por todos aceita sem qualquer discórdia, é encontrada, unicamente, no artigo 33 da lei complementar nº 33/1979. Das outras, por mais ímpares ainda, cuidaremos mais tarde.

Como nesta seara todo cuidado é pouco, vamos nos apressar e tomar, logo, e por empréstimo, as lúcidas aulas dos professores Luís Roberto Barroso e Ada Pellegrini Grinover, os quais, do alto de suas cátedras, ensinam:

“Na Itália, leciona Fulvio Fenucci, em estudo monográfico sobre o tema, a despeito de tal cláusula, os limites da investigação parlamentar, sob a luz do artigo 82, da Constituição, são os limites de competência próprios do Poder Legislativo. As comissões, assim, hão de ter por limite material (limiti materiali) a autonomia dos indivíduos, não podendo afetar a independência dos outros órgãos constitucionais. A idéia de poderes de investigação judicial vem associada à aptidão para a produção de provas, com tomada de depoimentos, realização de perícia e mesmo requisição de documentos. Nunca, porém, violando ‘il diritti precostituiti e constituzionalmente garantiti dai privati, sai che si tratti de persone fisiche che di persone giuridiche”37; [e, por tal motivo], (…) numa visão que procure atribuir algum sentido à precisão constitucional, o que se pode inferir é que o constituinte pretendeu, ao outorgar às CPIs os poderes de investigação referidos pelo artigo 58, § 3º, atribuir-lhes na verdade poderes instrutórios idênticos aos reservados aos membros do Judiciário, ou seja, as mesmas prerrogativas que têm os juízes e tribunais na pesquisa probatória: convocação e inquirição de testemunhas, determinação de perícias, requisições de documentos etc., que eram bastante limitadas anteriormente, especialmente em face do artigo 3º, parágrafo único, da Lei 1.579, que fazia depender a convocação de testemunhas de solicitação da CPI ao juiz original”.38

Em ressunta, conclui Barroso:

“o sentido da expressão poderes próprios de investigação de autoridades judiciais é o de criar para a comissão parlamentar de inquérito o direito, ou, antes, o poder de dar às suas determinações o caráter de imperatividade. Suas intimações, requisições e outros atos pertinentes às investigações devem ser cumpridos e, em caso de violação, ensejam o acionamento de meios coercitivos. Tais medidas, todavia, não são auto-executáveis pela comissão. Como qualquer ato de intervenção na esfera individual, resguardada constitucionalmente, deverá ser precedida de determinação judicial”.39

Teorizar diferente é ir de encontro à antiga e profícua assertiva de Francisco Campos,40 no sentido de que “os poderes delegados às comissões de inquérito o devem ser de modo expresso, definido e específico, outros não podendo ser deduzidos por analogia ou sob a alegação de que estão implícitos nos poderes expressamente enunciados, dado que, ainda na esteira doutrinária do ex-ministro da Justiça, ‘uma cláusula constitucional não é uma caixinha de segredos, de que os prestidigitadores extraem os mais heterogêneos objetos’”.


Feche-se, por não ser mais importante, o parêntese.

Poderíamos, aqui, ficar comentando sobre outras hipóteses, todas de natureza não criminal, saliente-se, previstas em legislações ordinárias, como os inquéritos realizados pelo Banco Central em casos de liquidação extrajudicial, os realizados contra funcionários públicos em virtude de falta funcional, os relativos aos assuntos administrativo-tributários etc. Mas, nenhum deles, repique-se, investiga crimes. Se, no curso destes, surgirem indícios da existência de crime (a tal “apuração indireta” aludida por Scarance), deverão as autoridades investigantes extrair peças e encaminhá-las ao Ministério Público, que, reitera-se, diante da escassez de elementos suficientes à propositura da ação penal, deverá requisitar, por imperativo legal, à autoridade policial, a instauração do procedimento adminicular. Do contrário, a ação pode-deve ser ajuizada incontinênti.

Já desta feita voando em “céu de brigadeiro”, forçoso aceitar que, em certas circunstâncias, singulares circunstâncias, diga-se, de soslaio, o legislador constituinte garantiu, a determinadas pessoas, prerrogativa de foro, em razão da função por elas exercida. Nestes casos,41 ímpares casos, repinique-se, o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e os Tribunais de Justiça dos estados possuem, por comando constitucional, competência para investigá-las, processá-las e julgá-las criminalmente. Com a derrogação de súmula pretoriana específica, adveio a lei nº 10.628/2002, a qual, em seu § 1º, estabelece que “a competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública”. Só para ilustrar, os membros do Ministério Público42 e os do Judiciário43 não são investigados por autoridade policial, em razão de possuírem investigadores e foro privilegiados (leis complementares nº 75/1993 e nº 37/1979, respectivamente).

É adequado sacudir, para que nada seja ocultado, que outras legislações ordinárias, sempre lembradas pelos opositores, permitem a autoridade que não a policial investigar crimes.44 A primeira delas, por todos os doutrinadores abominada e apontada com a balda da inconstitucionalidade, 45 é a lei 9.034/1995 — dita do crime organizado — que instituiu a figura do “juiz-inquisidor” nos parágrafos de seu artigo 3º, aniquilando, assim, o primado da imparcialidade do magistrado e ferindo, letalmente, o do devido processo legal. A outra, prevista na Lei de Falências46 (artigo 111), dá ao magistrado o poder de presidir o “inquérito judicial falimentar”, mas, neste procedimento, a investigação do juiz não se limita à busca de elementos de prova para a propositura da ação penal. Como adverte Ada Pellegrini Grinover47 ao comentar a lei, ela objetiva, também, salvaguardar “repercussões no âmbito civil da falência, como a concessão de concordata suspensiva”. Pondere-se que o decreto-lei em testilha pouco difere do projeto de lei nº 4.376/1993, recém-aprovado pela Câmara, razão pela qual a análise de Pellegrini é ainda pertinente.

Arrematando: não pode o Ministério Público, pessoalmente, investigar crimes, por não ter-lhe sido concedida competência/atribuição em lei. Pode-deve, sim, requisitar à autoridade policial a instauração do procedimento instrutório, sendo-lhe vedado utilizar-se da regra estatuída no parágrafo único, do artigo 4º, do Código de Processo Penal, recepcionada pela Carta de 1988, para, tomando-a como “pseudo-atribuição concorrente/supletiva” à polícia judiciária, investigar crimes, posto que a ressalva introduzida pelo legislador de 1940 é aplicada, sim, ao órgão ministerial, mas, única e exclusivamente, nos fatos de poder-dever investigar os crimes praticados por seus representantes. O resto é quimérico.

VII — Dos (legítimos) poderes institucionais do Ministério Público

Trazendo a troca de idéias para terras do estado do Rio de Janeiro, sem qualquer bairrismo — até porque as demais legislações estaduais do Ministério Público, ao que se sabe, não discrepam do que já restou antes consagrado, mas, fundamentalmente, para contrapor, com a seriedade que o assunto está a merecer, a argumentação sacudida, na 149ª Reunião Ordinária do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, pelo ex-procurador-geral de Justiça José Muiños Piñeiro,48 o qual conosco ali dialogou — vale explicitar que a lei complementar nº 106/2003, promulgada em 3/1/2003, repetindo textos das legislações federais, dispõe, em seu artigo 34, VI, ser incumbência do Ministério Público, além das funções previstas nas Constituições da República e estadual e em outras legislações, todas aqui já estudadas amiúde, “promover o inquérito civil e propor a ação civil pública, na forma da lei”, estatuindo as alíneas “a” e “b”, da lei, as vertentes em que aquele e aquela devem ser instaurados e propostos.


De se notar, por interessante, que o legislador fluminense fez questão de estabelecer, no artigo 35, que, “no exercício de suas funções, cabe ao Ministério Público”:

“I — instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos para a apuração de fatos de natureza civil, sempre que tal se fizer necessário ao exercício de suas atribuições e, para instruí-los: a) expedir notificações para colher depoimentos ou esclarecimentos e, em caso de não comparecimento injustificado, requisitar condução coercitiva, inclusive pela Polícia Civil ou Militar, sem prejuízo do processo por crime de desobediência, ressalvadas as prerrogativas em lei;

b) requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades e outros órgãos federais, estaduais e municipais, bem assim das entidades da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e das entidades sem fins lucrativos que recebam verbas públicas ou incentivos fiscais ou creditícios;

c) promover inspeções e diligências investigatórias junto às autoridades, órgãos e entidades a que se refere a alínea anterior;

d) requisitar informações e documentos a entidades privadas, para instruir procedimentos ou processos em que atue;”

e, como soe acontecer, para atingir o alvo, tem ele o poder-dever de:

“III — requisitar [destacamos, requisitar] diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de inquérito policial-militar, observando o disposto no artigo 129, VIII, da Constituição da República, podendo acompanhá-los; [insistimos, acompanhá-los, não realizá-los]

IV — receber diretamente da Polícia Judiciária o inquérito policial, tratando-se de infrações de ação penal pública;

V — requisitar informações quando o inquérito policial não for encerrado em trinta dias, tratando-se de indiciado solto mediante fiança ou sem ela”.

Contudo, se o membro do parquet, no exercício das funções trazidas à colação, detectar indícios da prática de crime, determina o § 7º, do artigo 35, da lei complementar fluminense nº 106/2003, ser seu poder-dever: “Na hipótese do inciso I deste artigo, surgindo no curso dos procedimentos indícios da prática de infração penal, o Promotor de Justiça tomará as providências cabíveis e remeterá peças ao órgão com atribuição”. 49

Agora, levando a boa contenda para terras paulistas, em respeito ao procurador-geral de Justiça Luiz Antonio Marrey Filho, que, de modo igual e representando o Colégio de Procuradores-Gerais de Justiça, também conosco discutiu o tema em causa na reunião realizada pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana,50 vamos encontrar a lei complementar daquele estado nº 734/1993, que, no Capítulo I, Seção I, em particular, em seu artigo 103, dispõe ser função institucional do órgão, afora promover, privativamente, a ação penal pública (inc. VI):

“VIII — promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção, a prevenção e a reparação dos danos causados ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos, homogêneos e individuais indisponíveis;”

Para tanto, no exercício do “controle externo da atividade policial por meio de medidas administrativas e judiciais, pode [o Ministério Público], dentre outras” (inc., XIII):

“a) ter livre ingresso em estabelecimentos policiais ou prisionais;

b) ter acesso a quaisquer documentos relativos à atividade de polícia judiciária;

c) representar à autoridade competente pela adoção de providências para sanar a omissão ou para prevenir ou corrigir ilegalidade ou abuso de poder;

d) requisitar [não presidir, sublinhemos] à autoridade competente [a policial, repiquemos] a abertura de inquérito sobre a omissão ou fato ilícito ocorridos no exercício da atividade policial;

e) receber, imediatamente, comunicação da prisão de qualquer pessoa por parte da autoridade policial estadual, com indicação do lugar onde se encontra o preso e cópia dos documentos comprobatórios da legalidade da prisão”.

Ademais, a legislação do estado de São Paulo estabelece, no artigo 104, inc. I, alíneas “a”, “b” e “c” c/c inc. II a VIII, o que poderá-deverá fazer o parquet para instruir os feitos que lhe estão afetos, no regular exercício da presidência de “inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes”, ao inquérito civil, está bem óbvio. A Seção II, do Capítulo II, por seu turno, nos artigos 105 a 113, disciplina o processo a ser cumprido durante a realização do inquérito civil público. E, por fim, a Seção III, do mesmo Capítulo I, para que não paire qualquer má interpretação, disciplina as atribuições concorrentes (entre membros do órgão, apressemo-nos em consignar) e os conflitos de atribuição (substantivo utilizado em sentido estrito, não é inútil comentar).


VIII — Dos (inconstitucionais e abusivos) poderes institucionais do Ministério Público

A par disto tudo, reconhece-se, não sem enorme tristeza, porque de malefícios incalculáveis, ter surgido nos mais diversos estados da federação — e é provável que ainda surjam, até que o Pleno do Supremo Tribunal Federal e/ou o Congresso Nacional decida, vez por todas (e estão em vias de fazê-lo), sobre a relevante questão — atos normativos especiais, elaborados por órgãos do Ministério Público, os quais, aqui e acolá, tentaram dar roupagem de legalidade aos procedimentos inquisitoriais, mas sempre ferindo de morte a Lei das Leis e demais legislações aplicáveis à espécie.

Em 1996, só para demonstrar o que se traz à luz, um ato do Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça de São Paulo (o de nº 98/1996) pretendeu traçar regras para a realização das investigações criminais. Um parecer, ainda não publicado, de 21/10/1996, do professor José Afonso da Silva,51 no tempo secretário de Segurança Pública daquele ente federado, enviado ao procurador-geral de Justiça Luiz Antonio Marrey Filho (of. SEC. Gab. nº 72/1996, de 16/10/1996), afirmou a inconstitucionalidade gritante do ato, como nos fez saber o já tão saudoso José Carlos Fragoso.52

Só para se ter pequeníssima idéia do que José Afonso da Silva consagrou naquele judicioso parecer, e para recolocar o tema no exato entendimento do catedrático das Arcadas, sem abrir brecha para qualquer exegese outra que não se quede em suas próprias lições, as quais transformaram em pó o ato normativo53 do parquet paulista, vale a transcrição de breve trecho do seu trabalho:

“(…) o controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, previsto no artigo 129, VII, está limitado pela natureza da lei que o regulamenta — lei complementar —, mas também por outras normas constitucionais. Assim é que, no que interessa aqui, a Constituição estabelece que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre a organização, garantias, direitos e deveres da polícia civil. Ora, isso quer dizer que cabe à União estabelecer normas gerais sobre essa matéria, e, aos Estados, normas suplementares. Isso significa que não pode a lei estadual, e menos ainda ato administrativo do MP, atribuir ao controle externo atividades que interfiram com a organização, as garantias, direitos e deveres das policiais civis. Mais, ainda o artigo 144, § 4º, estatui que às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. Isso quer dizer que a Constituição reservou à polícia civil estadual um campo de atividade exclusiva que não pode ser invadido por norma infraconstitucional e, menos ainda, por disposições de ato administrativo. Uma delas é a de realização do inquérito policial, que constitui o cerne da atividade de polícia judiciária, que não comporta o controle externo do Ministério Público, porque tal controle ainda pertence ao Poder Judiciário (…). A outra é que também à polícia civil, polícia judiciária, se reservou a função de apuração das infrações penais, o que vale dizer o poder investigatório, sendo, pois, de nítido desrespeito à Constituição normas que atribuam a Órgão do Ministério Público a faculdade de promover diretamente investigações, como fez o artigo 26 do Ato 98/96”.

Sem tirar, nem pôr, melhor, repondo o verbo de José Afonso da Silva ao lugar de onde nunca deveria ter saído, esta é, queiram ou não, sua única opinião acerca dos (inexistentes) poderes do Ministério Público de investigar, diretamente, crimes.

Na mesma direção é o entendimento do Instituto dos Advogados Brasileiros — que, nos idos de 2000, por intermédio da Comissão Permanente de Defesa do Estado de Direito Democrático, no tempo por nós presidida, instado a se pronunciar pelo à época presidente, professor Marcello Cerqueira, depois de caloroso debate, que contou com a presença, dentre outros, do professor José Afonso da Silva — através do voto médio de Celso Soares, tendo como relator original da indicação de nº 141/2000 José-Ricardo Pereira Lira — se posicionou no seguinte sentido: “a Constituição não atribui ao Ministério Público poderes de investigação policial e sim a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais disponíveis”.

Com efeito, logo após o Supremo Tribunal Federal julgar o writ nº 81.326-7/DF, o Ministério Público paulista editou os atos normativos nº 314-PGJ/CPJ, de 27/6/2003, e nº 324-PGJ/CGMP/CPJ, de 29/8/2003. Em razão disso, para atender consulta formalizada pelo Sindicato dos Delegados de Polícia do estado de São Paulo, foi elaborado percuciente estudo pelos professores Miguel Reale Júnior e Eduardo Reale Ferrari, acerca de sua constitucionalidade/legalidade, no qual, sem firulas, consideram os atos hodiernos tão inconstitucionais quanto o de 1996, analisado pelo professor José Afonso da Silva.


Para não nos alongarmos muito, tomamos a liberdade de transcrever parte da acurada análise realizada pelos Reale, posta em parecer não publicado:

“A simples leitura desses dispositivos constata que foram expressamente distinguidos os poderes do Parquet quando de sua atuação em procedimentos administrativos de sua competência e nos inquéritos policiais.

O inciso VI do artigo 129 da Constituição Federal de 1988 se refere expressamente a procedimentos administrativos conduzidos pelo Ministério Público, como o inquérito civil. Nessa hipótese, caso um Promotor de Justiça necessite de elementos de prova a instruir uma ação civil pública deverá fazer uso de seus poderes a fim de lograr obter informações e documentos.

Diverso constitui o papel do Ministério Público nos casos de investigação por meio de inquérito policial.

A lei, de fato, não contém palavras inúteis. Se assim não fosse, não teriam sido diferenciados os poderes dos órgãos Ministeriais em incisos diferentes para situações diferentes.

O inciso VIII do artigo 129 da Constituição Federal trata especificamente da atuação do Ministério Público no inquérito policial e, mais ainda, a limita à requisição de diligências investigatórias e instauração de inquérito.”54

Noutras épocas não tão remotas assim, em 2/9/1998, “a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão (Matéria Criminal e Controle Externo da Atividade Policial) do Ministério Público Federal decidiu, no Processo nº 8.112.000.502/96-73 (Parecer nº 169/97), relator o il. vice-procurador-geral da República Dr. Haroldo Ferraz da Nóbrega, na parte que interessa”:

“Ementa: Procedimento administrativo criminal instaurado na Procuradoria da República, com fundamento no artigo 129, VIII da Constituição Federal.

(…)

Impossibilidade face aos termos do artigo 144, § 1º, IV da Constituição Federal de 1988 — interpretado como garantia constitucional do cidadão de somente ser investigado pela Polícia Judiciária. Situação diversa do regime anterior.”55

Meses antes desta decisão colegiada, em 19/3/1998, a subprocuradora-geral da República, doutora Delza Curvello Rocha, por se encontrar em descompasso com a resolução nº 38/1998,56 do Conselho Superior do Ministério Público Federal (instituída, exatamente, pelo então vice-procurador-geral da República Haroldo Ferraz da Nóbrega, o mesmo que dera o parecer supra e que se encontrava no exercício da presidência do conselho), representou57, perante a Procuradoria Geral da República, através do ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade (não intentada, como se constata de pesquisa realizada no site do Supremo Tribunal Federal), por entender que:

“(…) a realização de diligências investigatórias destinadas ao inquérito policial ou futura ação penal, fogem à atuação direta do Ministério Público porque devem ficar jungidas a quem detenha constitucionalmente a titularidade para instaurar esse tipo de procedimento, por se encontrar submetido ao controle judicial, na forma da lei processual, sob pena de restarem feridos o inciso LIII do artigo 5º — ‘ninguém será processado (= investigado) nem sentenciado senão pela autoridade competente’, além da afronta ao texto já citado do artigo 144, I e IV, todos da Constituição Federal de 1988. De outro lado, o disposto no artigo 7º da referida Resolução nº 38 fere a norma constitucional inscrita no § 2º do artigo 127, que impõe que a organização e funcionamento da instituição se realizem observado o princípio da legalidade, não se admitindo que mera Resolução possa criar função institucional ou estrutura administrativa para dar suporte a qualquer função.

Finalmente, e porque oportuno, convém deixar consignado que a titularidade plena do exercício da ação penal pública há de ser conceituada como a impossibilidade de ser essa ação iniciada ex officio, nesse segundo caso admitida apenas se o Ministério Público não intentá-la no prazo legal.

Esses, Excelência, os fundamentos que entende a ora Requerente denunciadores da inconstitucionalidade dos dispositivos normativos apontados, que certamente merecerão maiores subsídios com a análise das questões pela 1ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (…).

Finalmente, a ora Requerente solicita seja o presente pedido apreciado com urgência, visto que a divulgação desse ato normativo, poderá acarretar conseqüências indesejadas — quer em relação ao cidadão, que doravante poderá ser alvo de constrangimento ilegal por parte de atuação de membro do Ministério Público Federal — como também em relação à incolumidade física de algum colega menos ponderado que, sem o devido preparo para o mister investigatório-penal, ponha em prática o que a Resolução lhe faculta, colocando inadvertidamente e de alguma forma, sua vida em perigo.”


Curioso, mas essencial marcar com sinal reluzente, que aquela decisão do colegiado do Ministério Público Federal não foi unânime, vencido o atual procurador-geral da República, professor Cláudio Fonteles e seus colegas Antonio Fernando, Paulo de Tarso, Roberto Gurgel, Wagner Mathias, Wagner Gonçalves e Helenita Acioli.

Noutro ano, mas sempre com o mesmo fim, o Ministério Público mineiro criou os Centros de Apoio Operacional de Combate ao Crime Organizado e de Investigação Criminal, respectivamente, CAO e CRIMO, 58 os quais conferiam ao parquet mineiro a “‘competência’ para realizar diligências investigatórias e, para tanto, instaurar e presidir procedimentos administrativos de natureza criminal”.59 Irresignado, o Partido Social Liberal (PSL) ajuizou, no Supremo Tribunal Federal, a ação direta de inconstitucionalidade nº 2.703, em face do Governo, da Assembléia Legislativa e do procurador-geral de Justiça do estado de Minas Gerais, a qual não chegou a ser julgada, porque, independentemente da petição60 “do Procurador-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais requerendo a prejudicialidade da ação por perda de objeto tendo em vista a revogação do texto legal impugnado”, o partido político perdeu sua legitimidade para suscitar o controle concentrado de constitucionalidade, motivo pelo qual, em 19/3/2003, o ministro relator determinou o arquivamento da ADIn. Em 12/8/2003, o partido autor requereu o prosseguimento da ação, por ter readquirido representatividade parlamentar. Os autos estão, hoje, conclusos ao ministro relator.

Enfim, como registrou, para sempre, José Carlos Fragoso:61 “Não é possível, (…) permitir que o Ministério Público possa acumular as funções de investigador (que a ninguém presta contas), e de instituição encarregada de promover a persecução criminal. Trata-se de um acúmulo perigoso de atribuições, que, sobre ser ilegal e inconstitucional, é absolutamente inconveniente, pois dá lugar, pelo excesso de poder, a abusos intoleráveis”.

A Constituição (artigo 144, § 1º, inc. IV) é expressa quanto às atribuições exclusivas da polícia judiciária em presidir inquéritos policiais. A Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, de nº 8.625/1993, também não se afasta do balizamento constitucional. Estabelece ela funções no artigo 25 e seus incisos, sempre em perfeita sintonia com a Carta Cidadã, não custa falar de novo, e, já agora, também com a lei complementar nº 75/1993. Estabelece, ainda, ela, no artigo 26, I, “a” e “b”, os poderes de instaurar inquéritos civis e procedimentos administrativos pertinentes (aos inquéritos civis, está bem claro) e, nestes, notificar, colher depoimentos, mandar conduzir, requisitar informações, perícias, documentos etc. No âmbito criminal, reza a lei citada (artigo 26, IV): “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de inquérito policial militar, observado o disposto no artigo 129, inciso VIII, da Constituição Federal, podendo acompanhá-los”. E isso não é pouco nem de pouca importância, ao revés, garante o efetivo controle externo das atividades policiais.

Em razão de todo o exposto, com muito conforto sustentamos, sempre e sempre, que as normas regedoras da matéria, em qualquer esfera, constitucional ou não, se mostram coerentes em tudo permitir ao Ministério Público, mas em matéria de inquérito e ação civil pública. Isso não se estende, à evidência, à área criminal, restando os chamados procedimentos investigatórios/administrativos criminais completamente ao desamparo da lei. É essa, também, a leitura de Miguel Reale Júnior e Eduardo Reale Ferrari:

“Tal distinção é reproduzida expressamente na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993, em seu artigo 26, inciso IV – a atuação do Ministério Público no inquérito policial foi tratada em dispositivo legal específico onde fica autorizado ao Parquet somente requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de inquérito policial militar, observado o disposto no artigo 129, VIII, da Constituição Federal, podendo acompanhá-los. A expedição de notificações para oitiva de testemunhas e a requisição de documentos fica limitada ao inquérito civil, conforme dispõe o inciso I do mesmo artigo.”62

IX — Membros do parquet chancelam: MP não tem competência para investigar crimes

Porém não foram apenas advogados e professores os operadores do direito que acorreram a delatar a extravagância e a inconstitucionalidade das investigações criminais diretas do Ministério Público. Interessante apontar, outra vez, que membros do parquet, na condição de fiscais da lei, têm a mesma interpretação, como nos relatam os professores Reale:


“O próprio Ministério Público Federal reconhece, em parecer lavrado pelo Subprocurador-Geral da República, JAIR BRANDÃO DE SOUZA MEIRA, que a impessoalidade da acusação esgarça-se quando o Ministério Público extrapola de suas funções e substitui-se à Polícia Judiciária, formulando a investigação e a denúncia, em acusações próprias dos Tribunais de Exceção.” (Parecer ofertado no recurso de habeas corpus nº 8106-DF, em 26 de novembro 1998)63.

Dois outros casos são conhecidos: o ilustre professor Juarez Tavares, procurador regional da República no Rio de Janeiro, lavrou parecer, no HC 1.137,64 da 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, pela concessão de ordem de habeas corpus para trancar ação penal em que a denúncia (considerada abusiva no acórdão) fora ofertada com base em inquérito administrativo instaurado e realizado por membro do Ministério Público:

“Primeiramente cumpre-nos salientar que a ação penal desfechada contra o Paciente, lastreada em inquérito penal realizado pelo próprio órgão do Ministério Público, constituiu, realmente, fato inusitado e estranho, face à falta de atribuição do Parquet quanto ao colhimento de provas com a finalidade de instaurar ação penal, eis que cabe ao mesmo, tão-somente, realizar inquéritos civis, conforme reza a nossa Carta Magna, em seu artigo 129, quando dispõe a respeito das funções institucionais do Ministério Público.”

Outro se deu em 1998, quando a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria Geral da República, sob o voto condutor da já mencionada subprocuradora-geral da República, Delza Curvello Rocha, prolatou acórdão de natureza administrativa assim ementado:

“Ementa: Procedimento administrativo criminal instaurado na Procuradoria da República, com fundamento no artigo 129, VIII, da CF, em virtude de expediente que relata a ocorrência de conduta, em tese delituosa, praticada por deputado federal. Tramitação de referido expediente em cartório criminal, instituído por portaria da chefia. Instauração de procedimento criminal administrativo pelo Ministério Público. Impossibilidade face aos exatos termos do artigo 144, § 1º, IV, da CF de 1988 — interpretado como garantia constitucional do cidadão de somente ser investigado pela Polícia Judiciária. (…) Encaminhamento ao Procurador-Geral da República do presente procedimento administrativo, solicitando cancelamento da autuação, bem como revisão do ato administrativo que criou o noticiado ‘cartório criminal’, em face dos princípios contidos na Constituição Federal.”65

X — A jurisprudência. A (futura) decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal

Os tribunais vêm formando, ao longo dos últimos anos, uma corrente cada vez mais firme e coesa em repudiar os supracitados procedimentos que se pretendem inquéritos criminais, independentemente das alcunhas diferentes que lhes são conferidos.

Como dito no início, o provimento dado ao recurso em habeas corpus nº 81.326, pelo Supremo Tribunal Federal, vem consolidar a tendência jurisprudencial, da qual daremos alguns exemplos, de negar validade às investigações criminais diretas do Ministério Público. Vem na esteira de inúmeras outras decisões, das mais variadas cortes, ainda que com algumas hesitações, pois há turmas ou câmaras que se deixaram encantar pela argumentação sofista.

Assim é que a concessão do habeas corpus nº 1.137, por maioria, pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, para trancar ação penal proposta com base em inquérito administrativo instaurado e realizado no âmbito do parquet, que mencionamos ao registrar o parecer (favorável à concessão) do consagrado Juarez Tavares, foi enfrentada por recurso extraordinário interposto por outro membro do Ministério Público. Tal recurso tomou o nº 233.072-4,66 e foi denegado, também por maioria (mantido, portanto, o trancamento da ação penal), em 18/5/1999, e extrai-se de sua ementa que o Ministério Público não tem competência “para produzir inquérito penal sob o argumento de que tem possibilidade de expedir notificações nos procedimentos administrativos.”

Na mesma esteira, trilham decisões prolatadas pelo Tribunal de Justiça de Brasília, nos autos das mandamentais de nos 1999.00.2.002958-2 e 1999.00.2.002413-8, a primeira, sob o voto condutor da desembargadora Aparecida Fernandes, e a segunda, sob o voto condutor do desembargador Joazil M. Gardes, rezando a ementa da última:

“HABEAS CORPUS. CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL. POLÍCIA JUDICIÁRIA. SUBSTITUIÇÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.

Ao Ministério Público, em sua função controladora da atividade policial, não comporta substituir a polícia judiciária na prática de atos de exclusiva competência. Inteligência do artigo 144, §§ 1º e 4º da Constituição Federal.”


Há mais um precedente no Supremo Tribunal Federal — onde se abordou o assunto, pela vez primeira e en passant — foi o recurso extraordinário nº 205.473-9,67 interposto pelo Ministério Público, guerreando concessão de habeas corpus pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que tivera o efeito de trancar ação penal. Já então, dissera o juiz Lázaro Guimarães, relator do writ na corte regional, que não se compreendia “o poder de investigação do Ministério Público fora da excepcional previsão da ação civil pública (artigo 129, III, CRFB). De outro modo, haveria uma Polícia Judiciária paralela, o que não combina com a regra do artigo 129, VIII, CF”. A hipótese era de ação penal por desobediência, a qual foi considerada não ocorrente e o recurso extraordinário não foi conhecido, em julgamento datado de 15/12/1998, com parecer, nesse sentido, do então subprocurador-geral Cláudio Fonteles. Todavia, na ementa, o relator do recurso, ministro Carlos Velloso, não deixou de registrar sua desaprovação às investigações criminais realizadas por procuradores da República: “não cabe ao membro do Ministério Público realizar, diretamente, tais investigações, mas requisitá-las à autoridade policial”.

Do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Quarta Turma, se tem notícia da concessão, com efeito de trancamento de ação penal, em 8/11/2000, do habeas corpus nº 99.2.07263-1,68 relator para o acórdão o desembargador federal Benedito Gonçalves. Da ementa do acórdão, vale sublinhar a parte final: “Diante da falta de atribuição legal ao Ministério Público Federal para promover diretamente atos investigatórios, há que ser reconhecida a ilegalidade das provas coligidas, sob pena de violação ao princípio do due process of law”.

No voto condutor, foram mencionadas outras decisões daquela corte regional, no mesmo sentido, tais como, além da concessão do HC nº 1.137, que ensejou o recurso extraordinário nº 233.072-4, outrora comentado, uma decisão da Primeira Turma, HC nº 97.2.09315-5,69 de 19/8/1997:

“I – Habeas corpus impetrado objetivando o trancamento da ação penal, defluente de denúncia formulada baseada em subsídios probatórios extraídos de inquérito policial instaurado, processado e presidido por membros do Ministério Público Federal, subscritores da peça vestibular da ação penal.

(…)

IV – Concessão da ordem de habeas corpus impetrada em favor dos pacientes para determinar o trancamento da ação penal contra eles instaurada, em curso no Juízo da 13ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro. Unânime.”

Uma homenagem há de ser feita, neste passo, para fins de registro histórico. O leading case, constante de repositório jurisprudencial, aconteceu em processo relatado pelo humanista Silvio Teixeira Moreira, desembargador do Tribunal de Justiça fluminense dos mais notáveis que, ao apreciar o writ 615/1996,70 da 1ª Câmara Criminal daquela corte, salientou:

“(…) A função de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares, são privativas das polícias civis.

Ao Ministério Público cabe o monopólio da ação penal pública, mas sua atribuição não passa do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de inquérito policial militar.

Somente quando se cuidar de inquéritos civis é que a função do Ministério Público abrange também a instauração deles e de outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes, aqui incluídas as diligências investigatórias.”

Garimpando para terçar armas com Lenio Streck no último Congresso Internacional do IBCCrim, Eduardo Carnelós achou e trouxe a lume acórdão de fevereiro de 1991, da lavra do desembargador paulista Weiss de Andrade, proferido no writ nº 99.018-3/2,71 como ele destacou, não constante de qualquer repositório jurisprudencial ou mencionado em revistas especializadas, que dramaticamente está a revelar os perigos da investigação conduzida diretamente por aquele que tem a missão de, em nome da sociedade, promover processo criminal em desfavor do cidadão.

Neste emblemático caso, o tribunal, após deferir medida liminar para colocar em liberdade o paciente, que tinha prisão preventiva decretada e fora denunciado por triplo homicídio qualificado, concedeu a ordem para trancar a ação penal. Com efeito, à míngua dos elementos indispensáveis à propositura da ação, o promotor de Justiça, em vez de requisitar novas diligências, chamou aos peitos a investigação, ouviu depoimentos, pediu pareceres de técnicos e, com estes elementos por ele produzidos, ofertou a inicial que, submetida à análise pela angusta via do habeas corpus, foi posta por terra.


Após tantas digressões doutrinárias e jurisprudenciais, chegou-se (na realidade, já se chegou antes disso), através de pequeníssimo escorço histórico, não teratológico, tampouco teleológico, a um pétreo epílogo: o Ministério Público, cuja inegável importância foi reconhecida na Constituição Cidadã, tem incontáveis poderes, mas, dentre eles, certamente, não se encontra o de instaurar e realizar procedimento investigatório com o escopo de colecionar informações que embasem uma preambular. Suas atribuições para investigar diretamente se cingem aos inquéritos civis, salvo a exceção de poder-dever investigar os crimes atribuídos a membros do próprio órgão.

Porém, infelizmente, a contenda ainda não encontrou águas tranqüilas. Neste mar, já dantes navegado, muitas águas vão rolar… e como vão…

De relance, comente-se que se encontra em tramitação, no Supremo Tribunal Federal, o inquérito nº 1.968,72 do Pleno, relator o ministro Marco Aurélio. Iniciado o seu julgamento em 15/10/2003, no qual se pretende o recebimento de denúncia ofertada em face de deputado federal que está sendo acusado de suposta prática de crimes em desfavor do Sistema Único de Saúde, sua defesa técnica sustentou, dentre outros argumentos, a falta de justa causa para a ação penal, por conseguinte, para iniciar o processo, porquanto as provas apresentadas e que estão a escorar a exordial foram produzidas diretamente pelo parquet, que carece de atribuição constitucional para fazê-lo pessoalmente. O ministro Marco Aurélio, já secundado pelo ministro Nelson Jobim, proferiu voto no sentido de rejeitar a inicial, por entender que o Ministério Público, embora titular da ação penal, não possui competência para realizar diretamente investigações na esfera criminal, mas, apenas, para requisitá-las à autoridade policial competente. O julgamento se encontra suspenso em razão do pedido de vista do ministro Joaquim Barbosa.

Demais isto, também em tramitação no Supremo Tribunal Federal a ação direta de inconstitucionalidade nº 2.943,73 relator o ministro Carlos Velloso, na qual o Partido Liberal questiona a matéria sacudida neste ensaio.

XI — O sistema processual penal do século XXI: o que se pretende?

Cremos ser fundamental, em questão a ser decidida em “preliminar prejudicial de mérito”, que se defina, logo, o que se pretende construir, neste recém-iniciado milênio, a respeito, não só do inquérito policial, mas, sobretudo, de todo o sistema processual penal. Não podemos mais conviver com reformas pontuais, nascidas sob o manto do desespero, do pânico e da irracionalidade.74 Discussões apaixonadas e apaixonantes à parte, o cidadão que vier a ser processado criminalmente, pouco importando a gravidade do crime e do clamor público que dele advier (no mais das vezes, esse é decorrente da opinião publicada, que não guarda relação com aquela), o deve ser com base em um processo penal devido, respeitador das garantias fundamentais que estão fincadas na Carta que Ulysses Guimarães, com orgulho, um dia chamou de Cidadã.

Caso os doutos entendam que o Ministério Público deva poder,75 em tais ou quais condições, dirigir investigação criminal,76 com a tal competência/atribuição concorrente/supletiva, como queiram batizá-la, passo subseqüente será, em primeiro, suspender o andamento das propostas legislativas que tramitam pelo Congresso Nacional a inovar as regras da investigação criminal, em especial o projeto de lei nº 4.209/2001 (os outros também), elaborado por comissão presidida pela professora Ada Pellegrini Grinover, para, em segundo, ouvida a comunidade científica,77 se produzir emenda constitucional, pois a alteração, porventura pretendida, não poderá vir em leito ordinário.

Nesse momento, fazendo eco com Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, em nada adianta reformas parciais, faz-se, de há muito, imprescindível, uma reforma de todo o sistema legal pátrio. 78 Mas, para tanto, é necessário que o Judiciário comece a interpretar o Código de Processo Penal à luz dos princípios fundamentais estatuídos pelo legislador constituinte de 1988. Sem a efetividade dessa leitura, serão produzidas leis, leis e mais leis que não solucionam e nem solucionarão os problemas sociais, embora estas sejam vendidas, pelos oportunistas de plantão, como remédio salvador. Quem sabe, através de Lei Delegada, onde seriam delimitadas as diretrizes comuns — epistêmica e constitucional — fixaríamos as regras a serem observadas na elaboração de anteprojetos, projetos de lei e de emenda constitucional. Sem isto, pensa-se, chegaremos ao caos. Perdão, por já estarmos no caos, a Lei Delegada seria medida de ordem.

Com efeito, os deputados federais Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ), ex-procurador-geral de Justiça e ex-presidente da Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, em ambas, tendo exercido dois mandatos, e Sigmaringa Seixas (PT-DF), duas importantes lideranças no Congresso Nacional, em setembro de 2003, apresentaram a proposta de emenda constitucional de nº 197/2003, que pretende “dar nova redação ao inciso VIII do artigo 129 da Constituição da República que dispõe sobre as funções institucionais do Ministério Público”, o qual, então, passaria a viger como se segue: [Cabe ao Ministério Público] promover investigações [nasce, então, a competência], requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais”.


À guisa de justificativa, enfatizam que:

“A proposta de Emenda à Constituição em epígrafe, visa a permitir, de forma expressa, que o Ministério Público promova procedimentos investigatórios.

O tema diz respeito a uma das mais importantes atribuições dessa Instituição e de fundamental importância para a persecução penal: a investigação de infrações penais.

Vivemos tempos em que as tendências de criminalidade se definem por um acréscimo de condutas delituosas e por fenômenos de organização e internacionalização que sofisticaram o modus operandi dos criminosos obrigando os Estados a aperfeiçoarem as estruturas de resposta.

Acrescente-se a isso, as transformações operadas nas condições tecnológicas e culturais com a velocidade imprimida a circulação da informação, a globalização do conhecimento e o reforço do papel reconhecido à opinião pública, constituindo uma nova realidade para a qual são necessários diferentes instrumentos de diagnóstico e intervenção.

Por esta razão, a Organização das Nações Unidas, o Conselho da Europa e as instituições como a Associação Internacional para o Direito Penal têm aprovado princípios ou recomendações que apontam para a necessidade de as polícias realizarem a investigação criminal sob a direção de uma autoridade judiciária ou de um órgão encarregado do exercício da ação penal.

Ressalte-se que a investigação criminal inclui-se nas funções de defesa da legalidade e de garantia da segurança e dos direitos dos cidadãos, não aplicando-se à investigação criminal a discricionariedade que caracteriza, em geral, os poderes de polícia, realizando-se sempre de forma vinculada. Isto porque a repressão criminal comporta riscos graves de erosão dos direitos individuais e exige, portanto, instrumentos processuais que não permitam que se converta em arbítrio.

Cumpre mencionar, também, que a Constituição Federal em seu artigo 144, § 4º, atribui à Polícia Civil a apuração de infrações penais, exceto de natureza militar, ressalvada a competência da União. Entretanto, tal atribuição não se dá em caráter privativo, sendo esta a correta interpretação deste dispositivo.

A Constituição não deu exclusividade na apuração de infrações penais apenas a Uma Instituição, basta referir que em outro dispositivo (artigo 58, § 3º) dá poderes à Comissão Parlamentar de Inquérito para investigação própria.

Nesse sentido, como titular do jus puniendi, nada deve impedir que o Ministério Público, além de requisitar informações e documentos para instruir procedimentos, promova atos de investigação para a apuração de ilícitos penais.

Assim, a presente proposição tem suporte no reconhecimento de que, nos tempos atuais, a soma de esforços no combate à criminalidade é imprescindível para vencê-la, e a circunstância de a Constituição expressamente prever esta competência atende a necessidade de fortalecimento de papel do Estado, ante o enfraquecimento gradual, mas inevitável, do controle social exercido pela família, pelos grupos e pelas instituições.”

Pronto, talvez, agora — com o explícito (desculpem-nos, mas já nos parecia tão explícito) reconhecimento de que o parquet não goza de qualquer atribuição/competência concorrente/supletiva para promover diretamente investigações de índole criminal (no particular, explicitado pelo mega-ideólogo-defensor das funções investigativas criminais do Ministério Público, deputado Antonio Carlos Biscaia) —, tenha o Congresso Nacional dado o um passo para que, depois ouvida a comunidade jurídica, espera-se, venham a ser traçadas hígidas regras que deverão delimitar a atividade investigatória ministerial.79

O poder exige limites, porque, na falta destes, encontraremos solo fértil para o arbítrio e a prepotência, por todos execrados. Tal freio poderá ser dado, acaso esta seja a opção legislativa, criando-se o chamado “juiz das garantias”,80 aquele que exercerá o pleno e efetivo controle externo dos atos ministeriais investigativos, com o fim de ver respeitada a paridade de armas, colorário do devido processo legal, quando, então, e somente então, poder-se-á responder, com a segurança jurídica que deve nortear o Estado democrático de direito, que a sociedade, de fato, não tem (mais) medo do Ministério Público.81

Enfim, muitas águas revoltas vão rolar… e como vão rolar… enquanto isso…

XII — Uma possível conclusão: mas será permitido concluir?

Enquanto isso, teremos de estar preparados a enfrentar, com todas as forças, colando todos os cacos d’alma ainda existentes, argumentos falaciosos, sensacionalistas, oportunistas, por vezes misturados, subliminarmente ou não, a espúrios e inescrupulosos interesses eleitoreiros ou oligárquicos, sobretudo quando acesos os holofotes da mídia-marrom, no sentido de que a segurança pública “faliu”, a polícia judiciária “faliu” e é corrupta, não está apta e equipada para apurar, com a velocidade da luz, de preferência, os chamados crimes decorrentes de organização criminosa, de corrupção, evasão de divisas, sonegação fiscal etc. Por estes motivos e tantos outros mais, deve o Ministério Público, dito e/ou pretendido “Quarto Poder”, ascender ao patamar mais alto do Poder Público, a todos substituindo, porque seus jovens e idealistas representantes são os únicos incorruptíveis o bastante para, em defesa da sociedade, combater, sem destemor, a criminalidade que, a cada dia, com os nefastos efeitos da globalização, se organiza, se estrutura e cresce em progressão geométrica, atingindo as pequenas, médias e grandes cidades desta República terceiromundista. Quem a esse discurso se opuser, é porque tem interesses diversos daqueles que deveriam nortear a mente de um cidadão probo. Isso quando não merece, sem direito a defesa, a pecha de integrar/beneficiar, desta ou daquela forma, os tão temidos grupos criminosos. Esse enredo, de tão velho, é de todos conhecido e utilizado, e como foi, pelos governos ditatoriais que comandaram os destinos brasileiros durante o regime militar. Por tudo, leia-se Maria Lúcia Karam.82


Porém, há que se reconhecer, com pesar, que estas mensagens alarmistas não foram extirpadas e ainda são usadas amiúde, principalmente nos momentos em que qualquer voz altiva se levanta para falar, em alto e bom som, que o Ministério Público tem de ter seus atos vigiados e limitados pela lei, como de resto, qualquer ente do Poder Público. A instituição, por mais importante, não está acima das leis.

Assim aconteceu recentemente com o ministro José Dirceu, Chefe da Casa Civil do Governo Luiz Inácio Lula da Silva, acusado pelo presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, procurador de justiça fluminense Marfam Martins Vieira, em razão de rumores, posteriormente desmentidos pela assessoria do ministro, de que o governo estaria planejando, na reforma do Judiciário, diminuir os (inexistentes) poderes de investigação do parquet. Bastou a fagulha do disse-me-disse para que Vieira lançasse mão do mordaz argumento:

“Se ele [Dirceu] mudou de posição de forma tão radical, certamente fez uma mudança ruim, porque deixou de estar do lado da sociedade para se perfilar ao lado de Fernandinho Beira-Mar, Hildebrando Pascoal, Nicolau dos Santos Neto e outros tantos integrantes do crime organizado. (…) O Ministério Público fraco, que não tenha a seu dispor o arsenal jurídico necessário para defender a sociedade, só interessa aos que estão a margem da lei”.83

Em monografia que mereceu chancela do IBCCrim, a professora Débora Regina Pastana,84 abordando a denominada cultura do medo, com muita propriedade, a desmistifica, informando-nos que é importante “nos distanciarmos destas fantasias políticas de segurança-total” [e, conseqüentemente, de apuração total das infrações penais,85] agora partilhadas pela direita e a esquerda. Diz a autora:

“Loic Wacqüant nos remete à reflexão dizendo que ‘o que carece está em jogo na escolha entre a edificação, por mais lenta e difícil que seja, de um Estado social e a escalada, sem freios nem limites, uma vez que se auto-alimenta da réplica penal, é simplesmente o tipo de sociedade que o Brasil pretende construir no futuro: uma sociedade aberta e ecumênica, animada por um espírito de igualdade e de concórdia, ou um arquipélago de ilhotas de opulência e de privilégio perdidas no seio de um oceano frio de miséria, medo e desprezo pelo outro (…)’.

Cidadania, democracia e direitos, mesmo quando confrontados com desigualdade, miséria e exclusão social, revelam o caminho possível de luta política e de busca de autonomia. Não há processo de desenvolvimento de direitos sem compromissos democráticos explícitos em torno da redução da iniqüidade social, o que certamente implica o fortalecimento da sociedade civil e não do Estado.

O fortalecimento do Estado não diminui a insegurança social, uma vez que atua diretamente contra os criminosos e não contra as causas do crime. Tal insegurança é também o instrumento de autoritarismo para que sempre a força seja desejada socialmente e prometida politicamente. Toda a ideologia de segurança total, longe de restaurar a tranqüilidade, apenas gera incivilidades, afastando o indivíduo de sua condição de cidadão.”

Em relação à parte desse discurso punitivo, que em nada contribui para o aperfeiçoamento do Estado de direito democrático, tivemos a oportunidade de reconhecer, noutra ocasião, que:

“O brasileiro não vive em paz. Diariamente se depara com o noticiário que faz da violência a sua razão de ser. Cada crime, uma midiática ‘sentença condenatória irrecorrível’. Se ele for cruel ou se a vítima é afortunada, o tom é virulento e a pena sem limite. Paredão é dádiva dos justiceiros. São os juízes paralelos. Eles julgam. Não são julgados. Sobrevivem, sem pudor, da tragédia humana. O ‘furo’ e o discurso eleitoreiro ganham manchetes à custa das dores dos vitimados.

O tema não varia. Violência pela manhã. Violência à tarde. Violência à noite. Ela dá ibope e todos a temem. Ninguém a quer por perto. Câncer do qual se crêem imunes. Poucos admitem encontrar remédio com especialistas. Preferem, sem base ou com base científica distorcida de países primeiromundistas (Itália não é Brasil e Manhattan não é Rio de Janeiro), vender à população solução milagrosa: o fim da criminalidade com o aumento das penas. Cadeia, sustentam os defensores do rigor penal. Nesta seara não existem milagres, por fervorosas que sejam as rezas. Criminalidade não se combate com lei. Por ser fenômeno social, não tem fim, tem controle. Controle depende de política governamental séria e ininterrupta. Esta jamais implementada nos últimos governos, que optaram pelo neoliberalismo, abandonando espaços sociais nos quais a presença do Estado se fazia, e se faz, imprescindível. Depois de José Carlos Dias e Reale Jr., temos, mais uma vez, com o ministro Márcio Thomaz Bastos, a esperança de ver frutificado o sonho de gerações.

Exemplo desta propaganda enganosa são os crimes hediondos (pura criação mental dos legisladores patrícios) que datam dos anos 1990. Há mais de década o seqüestro e o tráfico de entorpecentes passaram a merecer tratamento severo. As penas são graves e o apenado ceifado de benefícios durante sua execução. A incidência destes crimes diminuiu? Não. [Será que, se o Ministério Público for o investigante, serão apurados com maior presteza e eficácia?, indagamos agora e já respondemos negativamente.]

O Brasil é vítima da desigualdade social. Esta é um dos pilares da violência. Há que se diminuir o fosso que separa os que tudo têm dos que nada têm. Mas, de outro lado, urge investir na Polícia, no Judiciário e no Ministério Público. Urge, também, seja instalada, país afora, a Defensoria Pública, única instituição capacitada a franquear aos excluídos o pleno exercício da cidadania, espinha dorsal do Estado democrático de direito.”86.


Claro está, e até seria desnecessário qualquer marcação, que aquele não é o enfoque utilizado pelos ilustrados juristas antes citados, por nós muito admirados, os quais, com a liberdade exigida no debate de idéias, se contrapõem a nós neste tema com muita elegância e ética. Mas não há como deixar de reconhecer que segmento, muito barulhento do Ministério Público e de outros setores representativos da sociedade civil, se utiliza deste artifício — sem pudor e impunemente — porque de forte apelo popular. 87.

Tampouco, é bem dizer, que não estamos nos referindo, nem de passagem, ao presidente do Colégio Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça e aos vinte e seis procuradores-gerais de justiça que subscreveram o já referido memorial,88 embora esses, sem timidez, lancem mão daquele apelo dramatizado, para validar a investigação “parquetária”, expressão cunhada, a fórceps, pelo professor Alexandre Wunderlich. Senão, vejamos:

“(…) as exigências da segurança pública têm colocado sob constantes críticas e análises as funções da Polícia Judiciária e do Ministério Público. As instâncias formais de controle da criminalidade têm passado por profundas crises com o aumento da delinqüência violenta e, não raramente, com o desgaste dos órgãos encarregados da aplicação da lei penal. A própria legislação e Justiça Criminal exigem reformas para a sua adequação à realidade. O Código de Processo Penal prevê tímidas hipóteses de atuação do Ministério Público na repressão da criminalidade. O nosso procedimento criminal, por exemplo, representa um tortuoso itinerário para a busca de uma justiça rápida e eficiente. O sistema adotado deixa a desejar quanto à eficácia e agilidade das investigações. Embora protagonistas da mesma atividade de persecução penal, a interdependência entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público é muito deficitária, quando não rejeitada completamente.

(…)

Como se vê, mostra-se anacrônico e contraproducente o entendimento de que a atuação do Ministério Público na fase preparatória da ação penal restringe-se a requisitar diligências investigatórias e inquérito policial sempre que necessitar coletar dados para formação de seu convencimento. Por isto, não se pode coarctar as funções do Ministério Público na prevenção da criminalidade, em busca da celeridade, do aperfeiçoamento e da indisponibilidade da persecução penal.

(…)

Por outro lado, é necessário lembrar que diversas situações recomendam a intervenção do Ministério Público, por sua independência em relação aos demais Poderes do Estado, desde a fase preparatória da ação penal, realizando investigações próprias. Não é raro ver-se policiais que são responsáveis pela prevenção e repressão da criminalidade envolvendo-se com o crime organizado e na prática de atos de corrupção com o objetivo de impedir a investigação de delitos, bem como cometendo atos de violência (p. ex.: tortura) ou abuso de poder. Em outras situações, os próprios chefes dos policiais (p. ex.: Secretário de Segurança, Delegados de Polícia) podem ser os responsáveis pelas ações criminosas. Da mesma forma, não se pode olvidar da criminalidade presente no Poder Público (peculato, desvio de verbas, corrupção etc.). Nestes casos, entre outros, é inegável que a própria atividade de polícia judiciária poderá falhar, quando não for omitida.”

Para responder os argumentos, por ser judicioso, valem muito reproduzir as abalizadas lições de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho,89 que, já nos idos de 1994, no exercício das funções públicas que desempenha na Procuradoria Geral do Estado do Paraná, provocado por consulta, formalizada pelo então delegado geral da Polícia Civil daquele estado, acerca da resolução nº 97/1994, da Procuradoria Geral de Justiça também daquela unidade federativa, a qual instituía a Promotoria de Investigação Criminal — que passaria a atuar junto à Central de Inquéritos, esta criada pelo decreto judiciário nº 543/1993 — ao mesmo tempo em que concluía ser referida norma administrativa inconstitucional, assim fundamentava seu sempre lúcido e coerente pensamento:

“Antecedente psicológico, portanto, à análise do tema, é a desmilitarização do pensamento quando do tratamento de questões que envolvam o poder da Polícia, mesmo porque, ainda hoje, infelizmente, não são poucos — e normalmente os serviçais do Poder e do status quo — que vêem os Delegados de Polícia em nível inferior, partindo de um a priori negativo. Esquecem-se, tais desavisados, que os Delegados de Polícia, como estabelecido em lei, são tão bacharéis em Direito quanto os Magistrados e os Promotores de Justiça, separando-se, quanto a este aspecto, e tão-só, a realização e aprovação em concursos públicos diversos. No mais, cada carreira tem suas peculiaridades, suas vantagens, seus níveis e extensão do poder e suas desvantagens, típicas do exercício da própria função. Por isso, se ao magistrado está delegado o poder jurisdicional e, aí, como função principal, aquela de julgar (sobre relevância que sobressai deste mister frente às demais carreiras (…) às autoridades policiais coube encampar o dever do Estado de oferecer segurança pública, não poucas vezes com a vida, longe dos gabinetes, luxuosos ou paupérrimos, mas distantes dos conflitos letais.”


Rematando mestre Jacinto, com a força e a alma de um garante de primeira estirpe:

“Tem-se, portanto, como fundamental, a conservação da estrutura do Ministério Público na forma como concebida na CF/88, pelo menos até que a sociedade brasileira, por si só, assuma a sua própria defesa, por suas organizações não-estatais. Há, todavia, até tal ponto, um longo processo, como um percurso sinuoso, não poucas vezes incompreendido, até porque fere privilégios de alguns, em favor dos interesses da maioria. Para tanto, é preciso que se pense sistematicamente: a democracia exige que cada um cumpra o seu papel; mas trate de não avançar naquele demarcado aos outros, sob pena de se consolidar uma sobreposição que só faz prejudicar, até porque não permite que se definam as responsabilidades. O pior, porém, é quando essa tentativa, em verdade inadmissível, decorre da desconfiança, da suposição de que o ‘outro’ não cumpre, por infindáveis motivos, o seu papel. E tudo, pela outra face da questão, também pela suposição de que quem se sobrepõe assim o faz porque se imagina capaz de fazê-lo. A mudança, em tal situação, não tem qualquer procedência, ou melhor, é prejudicial (…). ‘Por isso, se não consigo amarrar o juiz pela lei, se não consigo trancá-lo por um garantismo mentiroso (que no fundo só serve para legitimar o status quo da sociedade, para legitimar as camadas da sociedade, que se digladiam na produção normativa), se não consigo alterar essa forma, não há outra solução a não ser partir para a possibilidade oposta e, por ela, buscar soluções. Os juízes, entretanto, precisam ser acreditáveis: e é preciso acreditar nos juízes, mas também nos promotores de justiça, delegados de polícia e assim por diante. E a razão é simples: mesmo que se desconfie, não adianta nada. Não adianta, por exemplo, querer bitolar o delegado de polícia porque, se ele entender que o caso noticiado não é crime, não faz inquérito policial; e toda a estrutura da justiça penal cai de joelhos quando se rasga a papelada da comunicação do crime e se joga no lixo. Não podemos, portanto, fazer de conta que a coisa não existe, porque ela está lá; todas os dias e todas as horas; e está acontecendo agora; e a isso não podemos ficar omissos, divagando tão-só em belos discursos sobre o dever ser.’ A sobreposição, destarte, é um ledo engano. No caso em discussão, quem arriscaria dizer que o Ministério Público, deixando de lado, por vários de seus órgãos, as relevantes funções que lhe foram atribuídas pela CF, deverá perquirir melhor que as autoridades policiais? Ora, tal pensamento chega até a ser ingênuo. Para tanto, basta ver que a hipótese (por óbvio, dentro da estrutura atual do nosso processo penal), que conduz (ou conduziria) a um Juizado de Instrução, de todo indesejável por isso. Afinal, como demonstrou FRANCO CORDERO, com genialidade que lhe é peculiar, não importa quem faz o papel de inquisidor (a função, epistemicamente, conduz o agente), sendo sempre idêntico o resultado (…). Por outro lado, é preciso também questionar até que ponto o próprio Ministério Público tem cumprido a contento com as funções que o legislador constituinte lhe acometeu, v. g. indagando quantos foram os órgãos que deduziram ações em defesa de interesses difusos ou coletivos; e a resposta não pode ser outra que não aquela que se refere a uma tímida atuação. Se é assim, embora pareça singelo, faz-se mister indagar se não é o caso do MP tratar de cumprir com total eficácia as suas atribuições, pelo menos antes de se arvorar a querer ocupar espaços legalmente atribuídos a outras instituições.

(…)

Afinal, sabem todos que a apuração de infrações penais é a função mais relevante da Polícia Judiciária, quase sua própria razão de ser e, enfim, imanente a ela. Retire-se, portanto, desta, aquela função e teremos um órgão reduzido a expedientes burocráticos sem escopo. Por todos, veja-se a lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA: ‘A polícia civil, dirigida por delegados de carreira, em cada Estado, incumbe as funções de polícia judiciária, nos termos já referidos antes, e a apuração de infrações penais, exceto: a) as de competência da polícia federal no âmbito restrito já assinalado; b) as militares’ (…) o qual, como referido anteriormente em seu texto, já havia delimitado o espaço de atuação: ‘(…) mas apesar de toda vigilância, não é possível evitar o crime, sendo pois necessária a existência de um sistema que apure fatos delituosos e cuide da perseguição aos seus agentes. Esse sistema envolve as atividades de investigação, de apuração das infrações penais, a indicação de sua autoria, assim como o processo judicial pertinente à punição do agente. É aí que entra a polícia judiciária, que tem por objetivo precisamente aquelas atividades de investigação, de apuração das infrações penais e de indicação de sua autoria, a fim de fornecer os elementos necessários ao Ministério Público em sua função repressiva das condutas criminosas, por via de ação pública.’”


Só para clarificar o que Jacinto Coutinho nos ensinou, vamos citar duas ocorrências recentes que estão a demonstrar, cada uma a seu modo, a difusão do discurso absolutista e totalitário, de que só este ou aquele ente do Poder Público é capaz, por esta ou aquela razão, de combater os crescentes índices das chamadas criminalidades violenta ou sofisticada. Aliás, este discurso, fora a tangível ameaça ao Estado democrático de direito, por falacioso, não se sustenta, pois assentado em terreno arenoso, de nenhuma concretude, pois de há tanto sabemos que os problemas maiores não são os das instituições, mas os dos homens, que são suscetíveis, deixando-se, por vezes, seduzir a todos os tipos de influência, principalmente as nefastas influências advindas do efêmero e fugaz poder.

Em ligeira pesquisa realizada,90 tomamos conhecimento de que, nos idos de 2000, quando em curso uma investigação ministerial que apurava as ilegalidades de máquinas de azar numa das capitais mais importantes do país, foi divulgado, com grande estrépito, o conteúdo de uma fita contendo a conversa de um cidadão, genro e então chefe de gabinete do procurador-geral de justiça do estado-membro, com suposto “intermediário” do segmento investigado. O conteúdo dessas conversações revelou o seu possível envolvimento com a máfia das máquinas de azar e num esquema de extorsão montado para aliviar a apreensão das máquinas. Nelas, o ex-chefe de gabinete do chefe institucional do Ministério Público negocia o pagamento de propina para que o órgão acusador findasse a perseguição aos empresários do jogo, que estavam com suas atividades proibidas no estado.

O nome do procurador-geral de Justiça — que, em primeiro, pediu férias de trinta dias, para que seus colegas da corregedoria tivessem mais liberdade nas investigações inauguradas para apurar estes graves fatos, e, em segundo, pouquíssimo tempo após estas diminutas férias e/ou licença, pediu a aposentadoria, pois, segundo comentou na mídia, não mais suportava as pressões que vinha sofrendo — foi citado nas conversações levadas a público e aparece como sendo o nome do “chefe de cima”. De se notar, também, que nesse affair foi citado, como integrante do criminoso esquema, o nome de importante político de expressão nacional, ex-ministro e, no tempo desses acontecimentos, secretário de estado.

Ao que se tem notícia, respeitando-se, como se deve, o princípio da presunção de inocência que há de prevalecer, sempre e sempre, o processo foi inaugurado em desfavor das pessoas antes referidas (não podemos afirmar se em face de todas e mais algumas ou não), mas ainda não foi julgado em primeiro grau.

O outro caso, de viés diferente (neste, não se fala no envolvimento de agentes públicos nas práticas de corrupção e/ou extorsão), mas, de jeito igual, gravíssimo e revelador do abuso que pode acontecer na condução de investigações em desacordo com as leis patrícias, nos chegou ao conhecimento através de professores do sul do país.

Com efeito, depois de veiculação de matéria jornalística que estava a denunciar eventual prática de crimes de abuso do poder econômico, consistentes na formação de um cartel de empresas de vigilância privada, Promotoria de Justiça Especializada Criminal de um dos estados-membro, instaurou um expediente investigativo em 2002. Até novamente aflorar o caso, sempre pela mídia, o Ministério Público inquiriu, por várias vezes, os denunciantes. O próprio órgão acusador, que nunca dera qualquer ciência de seus atos (nessas investigações ministeriais de índole criminal isto é comum acontecer) e nunca inquiriu qualquer investigado, apesar de alguns destes lá terem comparecido com este fim, postulou, a juízo de plantão daquele estado, a interceptação telefônica de mais de vinte aparelhos, e outras medidas mais, todas, diga-se de passagem, deferidas e mantidas sob sigilo, até mesmo para os advogados dos investigados, os quais só tiveram acesso aos autos depois de ter-lhes sido concedida medida liminar em mandado de segurança impetrado com este escopo.

Com base nesse arremedo de inquérito policial, a Secretaria de Defesa Econômica, que trabalhou lado a lado com o Ministério Público, determinou a instauração de procedimento em sua instância e celebrou, antes mesmo da inauguração daquele, o primeiro termo de leniência que se tem conhecimento no país.

Por fim, mas não por último, devemos rememorar que pendenga judicial de igual jaez também foi sacudida logo após a promulgação da Constituição da República de 1988. Diziam, alguns, que a Carta de 1988 havia recepcionado a alínea “e”, do inc. II, do artigo 57, do Código Brasileiro de Telecomunicações, motivo pelo qual não havia necessidade de lei a regulamentar a escuta telefônica (inc. XXII, do artigo 5º, CRFB). Portanto, milhares e milhares de cidadãos tiveram suas vidas bisbilhotadas, apesar das “autorizações” judiciais, até que o Pleno do Supremo Tribunal Federal, com todo o poder de Corte Constitucional, proclamou, determinando o trancamento do processo, nos autos da mandamental de nº 69.912-0-RS,91 através do voto do denodado ministro Sepúlveda Pertence, juiz que serve de exemplo para todos que idealizam seguir — ou exercem — a dificílima missão de julgar seus semelhantes, que a prova produzida em processo gaúcho, o qual redundou em condenação de um traficante de entorpecentes, era ilícita, bem como ilícitas eram as dela decorrentes, pois estribada, tão-somente, em escutas telefônicas “autorizadas” judicialmente.


Pronto. Sinal rubro. Milhares de writs a postular tratamento idêntico foram impetrados, pois, como é cediço, as provas ilícitas são inadmissíveis no processo (inc. LVI, do artigo 5º, CRFB). Atento à problemática,92 o então ministro da Justiça e hoje do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, perspicaz como só, encaminhou anteprojeto de lei para o Congresso Nacional, o qual, em tempo recorde, transformou-se na lei 9.296/1996.93

Como se vê, outrora a interceptação telefônica a depender de lei e, hoje, o Ministério Público investigando crimes sem competência para tal, a pôr em risco a segurança jurídica do país, imprescindível ao cotidiano de qualquer povo que se pretende civilizado. Tudo está a recomendar que, desta feita, não haja mais a necessidade de novo sinal vermelho (o amarelo já foi dado por duas vezes: o primeiro, num tom esmaecido, e, o segundo, num tom ouro), a ser dado pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, para que o Congresso Nacional saia de sua conhecida letargia e disponha-se a cumprir seu dever constitucional, o mais rápido possível, como é recomendado ao caso levado à reflexão neste trabalho.

“Navegar é preciso”, já disse o poeta, mas para as águas tranqüilas e límpidas do garantismo penal, porto seguro do Estado democrático de direito e da Constituição da República Federativa do Brasil.

Este artigo, aprofundado a partir de versão apresentada, na 149ª Reunião Ordinária do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, realizada em Brasília, em 19/11/2003, é dedicado à memória de José Carlos Fragoso que nos deixou, em 21/11/2003, com apenas 49 anos de vida. Zeca foi um dos mais notáveis advogados criminais de minha geração. Por certo, de onde estiver, continuará a combater as grandes causas públicas.

Agradecemos ao professor doutor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho que, ao rever o presente ensaio em sua forma original, procedeu acurada revisão e nos trouxe importantes contribuições.

Notas

1 — BARROSO, Luís Roberto. O país das provas ilícitas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro.

2 — Palavra final: STF decide se MP pode conduzir investigações criminais. Disponível na internet: htpp//www.conjur.com.br. Acesso em: 14/11/2003.

3 — BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2ª Turma. Recurso ordinário em habeas corpus nº 81.326-7/ DF, relator ministro Nelson Jobim. DJU 1.8.2003.

4 — MORAES FILHO, Antonio Evaristo de. Ministério Público e o inquérito policial. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v.5, nº 19, p. 105-110, jul/set. 1997.

5 — MACHADO, Luiz Alberto. Parecer exarado a pedido da Associação dos Delegados de Polícia de Carreira do Estado do Paraná. Curitiba. 9/9/2003. Não publicado.

6 — MORAES FILHO, Antonio Evaristo de. Idem, p. 107.

7 — Sobre os sistemas adotados na Alemanha, Itália, França, Espanha, leia-se MENDRONI, Marcelo Batlouni. Curso de Investigação Criminal. São Paulo: Editora Joarez de Oliveira, 2002 e, sobre estes países e mais sobre os sistemas adotados na Inglaterra e Países de Gales, Portugal, Estados Unidos, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia e México, leia-se BASTOS, Marcelo Lessa. A investigação nos crimes de ação penal de iniciativa pública: papel do Ministério Público. Uma abordagem à luz do sistema acusatório e do garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

8 — BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2ª Turma. Liminar em Habeas Corpus nº 82.354. relator ministro Sepúlveda Pertence. Decisão em 14/10/2002.

9 — JUNQUEIRA, Aristides apud DINIZ, Laura. MP aborrecente: novo MP faz 15 anos, com problemas na fase de crescimento. Disponível na internet: http://www.conjur.com.br. Acesso em: 21.11.2003.

10 — CARNELÓS, Eduardo apud DINIZ, Laura. MP aborrecente: novo MP faz 15 anos, com problemas na fase de crescimento. Disponível na internet: http://www.conjur.com.br. Acesso em 21.11.2003.

11 — MENDRONI, Marcelo Batlouni. Curso de investigação criminal. São Paulo: Editora Joarez de Oliveira, 2002, p. 275.

12 — MACHADO, Nélio Roberto Seidl. Notas sobre a investigação criminal, diante da estrutura do processo criminal no estado de direito democrático. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, v.3, nº 5/6, pp. 151-159, 1998.

13 — MORAES FILHO, Antonio Evaristo de. Ibidem, p. 106.

14 — Só para se ter uma simples noção do quão perigoso é o promotor-investigador, Marcelo Batlouni Mendroni (op. cit., pp. 191/192), em seu verdadeiro manual de investigação criminal, sugere que seu colega promotor “deve dizer o ‘o que’ necessita, enquanto que o Delegado de Polícia deve comandar o ‘como’ obter”, como se esse fosse mero bedel do Ministério Público, porque, em seu entender, só o promotor de Justiça sabe dizer “‘o que’ especificamente deve obter para a futura propositura da ação penal e mais que isso, para a confirmação em Juízo”, pois “o Delegado [que é bacharel em direito, ver, adiante, agudas observações de Jacinto Coutinho] não tem precisão no que diz respeito a ‘o que’ especificamente deve obter para a futura propositura da ação penal e mais que isso, para a confirmação em Juízo”. Razão porque, conclui Mendroni, “cada um dos órgãos de persecução tem, portanto, a sua importância peculiar e o seu preparo específico [e desde quando promotor de Justiça sabe investigar?], devendo haver entre eles, não o conflito de atribuições [aliás, os que pensam, como Mendroni, poder o Ministério Público investigar diretamente crimes, nada mais fazem do que estabelecer o tal conflito, em face do sistema processual pátrio], mas sim a união e cooperação de atuações para a finalidade comum do combate à criminalidade e defesa da sociedade”. Faltou Mendroni dizer, apenas, que o Ministério Público — e a sociedade civil — não precisa da polícia judiciária, porque ele é auto-suficiente.


15 — “A participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento de denúncia”.

16 — STRECK, Lenio Luiz e FELDENS, Luciano. Crime e constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

17 — HAMILTON, Sérgio Demoro. A amplitude das atribuições do Ministério Público na investigação penal. Discursos Sediciosos : crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, v.3, n.5/6, pp. 137-150, 1998.

18 — Apontamentos do autor feitos enquanto o professor discursava na 149ª Reunião Ordinária do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, contrapondo nossos argumentos.

19 — RANGEL, Paulo. Investigação direta pelo Ministério Público: visão crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

20 — BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2ª Turma. Recurso ordinário em habeas corpus nº 81.326-7/ DF, relator ministro Nelson Jobim. DJU 1.8.2003.

21 — Realizada em Brasília, em 19/11/2003.

22 — Apontamentos do autor feitos enquanto o professor discursava, na 149ª Reunião Ordinário do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, contrapondo nossos argumentos.

23 — Nesta abordagem, o melhor princípio a dar substrato a uma interpretação segundo a Constituição da República é o da conformidade ao texto constitucional, que implica, quando levado a efeito, na consideração de algumas proposições, segundo doutrina Luís Roberto Barroso, dentre as quais, destacamos: “eleição de uma linha de interpretação para exclusão expressa de outras interpretações possíveis, que conduziriam o resultado contrastante com a Constituição e, por via de conseqüência, a interpretação conforme a Constituição não ser considerada mero preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo de controle de constitucionalidade pelo qual se declara ilegítima uma determinada leitura da norma legal” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 175, destaque do articulista).

24 — Como não há balizamento legal, porque o Ministério Público não têm competência para investigar crimes, os interesses do órgão acusador variam (ou podem variar) de acordo com as vontades (e, em alguns casos, caprichos) de seus integrantes, o que, só por si, está a revelar o abismo a que estamos, todos os cidadãos, submetidos.

25 — Apontamentos do autor feitos enquanto o emérito professor discursava, na 149ª Reunião Ordinário do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, contrapondo nossos argumentos.

26 — Apontamentos do autor feitos enquanto o professor discursava, na 149ª Reunião Ordinária do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, contrapondo nossos argumentos.

27 — No verbo de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Edward Rocha de Carvalho, a “atribuição é exclusiva de quem a detém e excludente dos demais, porque sua fonte, única e exclusiva é a lei, no caso a CR, a qual não vai — e não pode ir — manipulada, em nome de nada, mormente se contra ela vá. Não cabe, ademais, (por evidente que feriria a lógica!) uma solução de compromisso; não se conserta para além do limite fixado em lei e, no caso, a exclusividade não está a permitir sequer a dúvida”. (Excerto colhido em inicial de habeas corpus impetrado no Tribunal de Alçada do Paraná, dezembro de 2003).

28 — BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2ª Turma. Recurso ordinário em habeas corpus nº 81.326-7/ DF, relator ministro Nelson Jobim. DJU 1.8.2003.

29 — LOPES JR., Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 2 ed., rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 156.

30 — Para o particular, vale o adágio: o que não é proibido é permitido.

31 — Palavra final: STF decide se MP pode conduzir investigações criminais. Disponível na internet: http://www.conjur.com.br. Acesso em: 14/11/2003.

32 — No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, há anos existem as Centrais de Inquérito do Ministério Público, tendo os promotores atribuição para atuar diretamente nos feitos decorrentes desta ou daquela delegacia de polícia. Portanto, para a delegacia X, existe o promotor natural Y. Assim, nada impede (aliás, seria de todo recomendável) que este determine àquele que todo e qualquer registro/boletim de ocorrência de ocorrência viesse a seu conhecimento no tempo de lei (artigo 10, do CPP, para não falarmos nas legislações especiais), para que, analisado pormenorizadamente, pudesse o promotor de Justiça, no exercício da fiscalização direta dos atos da autoridade policial, determinar à realização desta ou daquela diligência (perícia, inquirição de testemunha, requisição de documento etc.) que poderia, inclusive, ser produzida em sua presença (em sua presença, não por ele diretamente).


Para tanto, há de haver vontade (e vontade política também) da Promotoria de Justiça de querer cumprir o efetivo controle externo das atividades policiais, recusando-se esta a trabalhar como uma desimportante peça deste cenário chamado inquérito policial, porque o eficaz andamento deste só se dá através de estudo detalhado, onde são traçadas metas investigativas com fito de se apurar os indícios da infração penal e de sua autoria, e, não, através dos burocráticos e reprováveis carimbos (em tempos de informatização, estes foram substituídos por folhas contendo cota-padrão) que, simplesmente, simulam controlar/fiscalizar o andamento das investigações.

Com freqüência indesejável, vemos inquéritos e mais inquéritos com a conhecida cota-padrão: “baixem, por X dias, para ultimar as investigações” e, de lá, da polícia, voltam para o Ministério Público, com o também burocrático e abominável despacho-padrão: “em razão do acúmulo de serviços, não nos foi possível dar andamento à determinação ministerial. Subam, requerendo novo prazo para ultimar o inquérito”. “Baixam”. “Sobem”. Caminham, sim, mas de prateleiras em prateleiras, acumulando poeira e colacionando folhas inúteis. A investigação que seria indispensável, não é levada a efeito com a presteza e seriedade desejáveis. No fim deste cavernoso calvário, o arquivamento e/ou a prescrição da pretensão punitiva estatal advém e o cidadão (vítima ou indiciado) é o grande prejudicado, pois não vê seus direitos respeitados. É o descrédido do Poder Público.

Não por outra razão (em verdade, com outra razão, como veremos ao fim) que a Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro, em nota oficial assinada em 9/10/2003 (disponível na internet: htpp//www.conjur.com.br, acesso em 29/11/2003), delatou o caos fluminense (antes, o próprio presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Miguel Pachá, já o havia feito), alertando a população que o tribunal “está fechando Varas Criminais, pois as estatísticas revelam que o número de processos vem diminuindo, passando de 23.433 processos em 2000, para 15.473 em 2001 e 18.011 em 2002. A distorção provocada também pode ser traduzida em números: enquanto uma Vara Criminal recebe em média 22 processos por mês, as Varas Cíveis recebem cerca de 110 processos.” Mas, ao mesmo tempo em que divulgam esta estatística alarmante, caminham na contra-mão da história mundial, pois pretendem alterações legislativas para que possam ser instaurados os odiados, detestados e temerosos Juizados de Instrução, aqueles que dariam ao juiz (que sempre há de estar longe das fogueiras provocadas pelo calor dos debates, para que possa, com isenção, exercer a difícil tarefa de julgar seus semelhantes) poderes para participar do processo de investigação criminal, porque pensam (ou sonham!) que, assim, a impunidade diminuiria. Não por receio, mas por fugir ao tema foco deste ensaio, vamos nos limitar a fazer este registro, deixando, para um outro momento, analisar os malefícios dos juizados de instrução.

33 — Deve-se registrar, por ser por demais importante, que os procuradores-gerais de Justiça, quando citam o professor Antonio Scarance Fernandes, procurador de Justiça aposentado, no memorial que apresentaram a ministros do Supremo Tribunal Federal (Palavra final: STF decide se MP pode conduzir investigações criminais. Disponível na internet: http://www.conjur.com.br. Acesso em: 14/11/2003), não constataram que o notável jurista da USP, na mesma obra, mas páginas à frente, com toda a força de seu reconhecido magistério, prelecionou acerca dos tais (inexistentes) poderes, ao contrário do aqueles dão a entender no paper endereçado a Corte Constitucional. Vejamos:

“(…) a Constituição atribuiu à polícia a função de investigar as infrações penais, mas, na linha da tendência universal, previu o seu controle pelo Ministério Público e, por outro lado, restringiu, em parte, seus poderes de polícia em prol de maior garantia às pessoas presas ou submetidas a inquérito.

(…) Não se trata, contudo, de atividade que substituiria integralmente a atividade de polícia judiciária, exercida pela autoridade policial, prescindindo-se do inquérito policial. Pela própria Constituição Federal, sem exclusividade, incumbiu-se aos delegados de carreira exercer a função de polícia judiciária (artigo 144, § 4º). Não foi a norma excepcionada por outro preceito constitucional. O que permitiu o artigo 129, inc. VII, é o acompanhamento do inquérito policial pelo promotor.

O avanço do Ministério Público em direção à investigação representa caminho que está em consonância com a tendência mundial de atribuir ao Ministério Público, como sucede em Portugal e Itália, a atividade de supervisão da investigação policial. Entre nós, contudo, depende-se ainda de previsões específicas no ordenamento jurídico positivo, evitando-se incerteza a respeito dos poderes do promotor durante a investigação” (FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 2 ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, pp. 243-244, destaque nosso).


O que Scarance leciona é que, em certas investigações, como as comissões parlamentares de inquérito, sindicâncias, processos administrativos penais etc. é comum haver o que chama de “apuração indireta de crime”.

34 — Apud VIEIRA, Luis Guilherme. Casos Penais. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 152.

35 — Idem.

36 — BARANDIER, Antonio Carlos (Org.). CPI: os novos comitês de salvação pública. Rio de Janeiro: Lumem Juris. 2ª ed. 2002.

37 — Apud VIEIRA, Luis Guilherme, op. cit., p. 81.

38 — Ibidem p.82.

39 — Ibidem, p. 82.

40 — Ibidem, p. 84.

41 — Artigo 102, I, “b” e “c”; artigo 105, I, “a”; artigo 108, I, “a”, todos da CRFB.

42 — Parágrafo único, do artigo 19, da lei complementar nº 75/1993.

43 — Parágrafo único, do artigo 33, da lei complementar nº 37/1979.

44 — Antes da Constituição da República de 1988, encontrávamos os execráveis procedimentos judicialiformes (decreto-lei 3.688/1941, artigo 17), em bom tempo banidos de nosso sistema.

45 — Por todos, ver Grinover, Ada Pellegrini. Que juiz inquisidor é esse. In Boletim do IBCCrim, nº 30, junho/1995 e PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 1999, pp. 175-176.

46 — Decreto-lei 7.661, de 21 de junho de 1945.

47 — Apud VIEIRA, Luís Guilherme. Casos Penais. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 80.

48 — Apontamentos do autor feitos enquanto o emérito professor discursava, na 149ª Reunião Ordinário do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, contrapondo nossos argumentos.

49 — Atribuição para, nunca será cansativo relembrar, cumprir o que determina os incisos III, IV e V, do artigo 35, da lei complementar estadual 106/2003, porventura os tais indícios da prática do crime não sejam suficientes para, tomados como peças de informação, instruir, de plano, denúncia, sem necessidade de se requisitar a instauração de inquérito policial, o qual, como se sabe, é dispensável.

50 — 149ª Reunião Ordinária do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, realizada em Brasília, em 19/11/2003.

51 — É bom adiantar, por ser casual e relevante o instante, que o catedrático da USP citado, literalmente, em memorial, assinado pelo presidente do Colégio Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça (à época, também procurador-geral de Justiça de Minas Gerais) e por todos os outros procuradores-gerais de Justiça dos estados-membros (disponível na internet: www.conjur.com.br, acesso em: 14/11/2003), apresentado a ministros do Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento das ADINs 2.202, 2.613 e 2.703, reconheceu, como não poderia deixar de ser, até porque o mestre não iria de encontro a texto da Carta, que a segurança pública é dever do Estado e direito e responsabilidade de todos (artigo 144, CF), motivo pelo qual, prelecionou em sua clássica obra (o excerto ora transcrito faz parte do paper retro) “a segurança pública não é só repressão e não é problema apenas de polícia, pois a Constituição, ao estabelecer que a segurança é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos (artigo 144), acolheu a concepção do I Ciclo de Estudos sobre Segurança, segundo a qual é preciso que a questão da segurança seja discutida e assumida como tarefa e responsabilidade permanente de todos, Estado e população.” (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p.650). Porém, como se comprova de estudo específico sub o tema, tal fato não está a representar, pontifica o próprio mestre José Afonso da Silva, o poder de o Ministério Público se imiscuir, usurpando de suas relevantes e majestosas funções públicas, nas atividades que foram deferidas, exclusivamente, à autoridade policial. Ver, José Carlos Fragoso, referido no verbete 46. Por sinal, o professor José Afonso da Silva, no ano de 2000, então na presidência da Comissão Permanente de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros teve, mais uma vez, a oportunidade de externar, em alto e bom tom, o mesmo pensamento exteriorizado quando nas funções de Secretário de Segurança Pública de São Paulo.

52 — FRAGOSO, José Carlos. São ilegais os “procedimentos investigatórios” realizados pelo Ministério Público Federal. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, v. 10, nº 37, pp. 241/251, jan/mar 2002.

53 — Neste parecer, José Afonso da Silva sublinha, antes de mais nada, sobre a impropriedade de se lançar mão de ato administrativo do Ministério Público para regular o exercício do controle externo da atividade policial, porque, “de duas uma, ou a Lei Complementar 73/93 regulou adequada e completamente a matéria, e o Ato 98/96, é absolutamente despiciendo, ou deixou lacunas e o questionado Ato não é o meio adequado para supri-las. É que a Constituição outorgou à lei complementar competência para regular a forma de controle externo, nada mais; e não admite delegação nem à lei ordinária e menos ainda ato administrativo para disciplinar a matéria”.


Ademais, disse, com sua inquebrantável autoridade, que a expressão “dentre outros”, contida na parte final do inciso XIII, do artigo 129, da lei complementar nº 743/93, do estado de São Paulo, não era fundamento para tal, porque “não remete a futuro ato administrativo, porque seria delegação inconstitucional, uma vez que a Constituição reservou a regulamentação da matéria exclusivamente à lei complementar estadual. Referida locução, ‘dentre outras’, se liga à cláusula, da cabeça do artigo, ‘nos termos da legislação aplicável’. Liga-se, por exemplo, a diversas disposições do Código de Processo Penal e da Lei das Execuções Penais que atribuem faculdade de fiscalização ao Ministério Público. Em conseqüência, a expressão ‘dentre outras’ não autoriza regular matéria de lei complementar por meio de ato normativo. Aliás, nesse sentido já se pronunciou até mesmo a Dra. Anadyr de Mendonça Rodrigues, com aprovação do não menos insuspeito Procurador-Geral da República, Dr. Geraldo Brindeiro, em parecer exarado na ADIn 638-0/600-RJ. Não é importante, aqui, que essa ação não tenha sido julgada, porque vale a tese. Diz o parecer:

‘Desse modo, parece inequívoco que o artigo 129, VII, da Constituição Federal, ao se remeter à Lei Complementar permitida no artigo 128, § 5º, caput — para fazer a definição da atividade de CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL inserida dentre as funções institucionais do Ministério Público —, não estava conferindo, a tal Lei Complementar, para esse fim, o poder de alterar o Código de Processo Penal tal artigo 129, VII, deve ser entendido, então, tão-somente, no sentido de estar limitado a estabelecer que a ‘lei complementar mencionada no artigo anterior’ haveria de definir A FORMA, através da qual os membros da Instituição a desempenhariam, cumulativamente com as demais atribuições institucionais.”

Mais incisivo, ainda, é o Acórdão do S.T.F., Rel. Min. Ilmar Galvão, exarado na ADIn 1138/RJ, que impugnou a validade de Resolução nº 447, de 17.6.94, da Procuradoria Geral do Rio de Janeiro, que versava sobre a mesma temática do Ato 98/96 da PGJ/SP, in verbis:

‘EMENTA. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR DEISPOSITIVOS DA RESOLUÇÃO Nº 447, DE 17 DE JUNHO DE 1994, DA PROCURADORIA GERAL DA JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. ALEGADA INCOMPATIBILIDADE COM OS ARTS. 22, i, 61, II, ALÍNEA D; 127, § 2º, IN FINE, 128, INCS. VI E VII, E 144, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Impropriedade do meio empregado para regulamentação do controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, reservada, pela Constituição, à lei complementar da União e dos Estados (artigo 128, § 5º), circunstância que reforça a plausibilidade da tese da argüida inconstitucionalidade formal do referido ato e evidencia a conveniência da pronta suspensão da eficácia dos dispositivos impugnados, no prol da harmonia funcional dos órgãos envolvidos”.

54 — REALE JUNIOR, Miguel e FERRARI, Eduardo Reale. Parecer elaborado em face dos Atos Normativos nº 314-PGJ/CPJ, de 27/6/2003, e 324-PGJ/CGMP/CPJ, de 29/8/2003, editados pelo Ministério Público do estado de São Paulo. São Paulo, 21/10/2003, p.5.

55 — Disponível na internet: http//:www.stf.gov.br. Inicial da ADIn 2.943-6/DF, relator ministro Carlos Velloso.

56 — Disponível na internet: http//:www.mpf.gov.br. Da parte a ser destacada, reproduzimos o resumo levado a efeito pela sub-procuradora-geral da República Delza Curvello Rocha (citação nº 24):

“a) instauração de procedimentos administrativos investigatórios (Arts. 1º a 4º):

b) que o membro do Ministério Público Federal, realize pessoalmente, ou em equipe, procedimentos investigatórios próprios, praticando entre outros os seguintes atos (arts. 1º, 2º e 3º)

● inquirição pessoal do investigado;

● inquirição de testemunhas;

● requisição de documentos e perícias.

c)acompanhar pessoalmente, ou em equipe, inquéritos e investigações policiais preliminares, instaurados no âmbito da Polícia Federal, nos termos da Resolução nº 32 do CSMPF (artigo 1º);

d) a criação, no âmbito de cada Unidade Administrativa, de estrutura de apoio a essa função investigatória.”

57 — Disponível na Internet: http//www.stf.gov.br. Acesso em: 22/11/2003. Inicial da ADIn 2.493, relator ministro Carlos Velloso.

58 — Palavra final: STF decide se MP pode conduzir investigações criminais. Disponível na internet: http://www.conjur.com.br. Acesso em: 14.11.2003.

59 — Palavra final: STF decide se MP pode conduzir investigações criminais. Id. ibidem pp. 2/13.

60 — Disponível na internet: http//www.stf.gov.br. Acesso em: 22/11/2003.

61 — FRAGOSO, José Carlos. Op. cit. p. 244.


62 — REALE JUNIOR, Miguel e FERRARI, Eduardo Reale. Id. Ibidem, p. 6.

63 — Apud REALE JUNIOR, Miguel e FERRARI, Eduardo Reale. Id. Ibidem, p.21.

64 — BRASIL, TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO, 2ª Turma, Habeas Corpus nº 96.2.35446-1 (1137/RJ), relator desembargador Silvério Cabral, DJ de 5.8.1997.

65 — Disponível na internet: http//www.stf.gov.br. Inicial da ADIn nº 2.943. Acesso em: 22/11/2003.

66 — BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2ª Turma. Recurso extraordinário nº 233.072-4/RJ, relator ministro Néri da Silveira, DJU 3.5.2002, ementário nº 2067-2.

67 — BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2ª Turma. Recurso extraordinário nº 205.473-9/AL, relator ministro Carlos Velloso, DJU 19.3.1999, ementário nº 1943-2.

68 — BRASIL, TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO, 2ª Turma, Habeas Corpus nº 99.2.07263-1/RJ, relator desembargador Benedito Gonçalves, DJ de 15.3.2001.

69 — BRASIL, TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO, 1ª Turma, Habeas Corpus nº 97.2.09315-5 (1273/RJ), relator desembargador Ney Fonseca, DJ de 9.10.1997.

70 — BRASIL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1ª Câmara Criminal, Habeas Corpus nº 615/1996, relator desembargador Silvio Teixeira, DORJ. 18.9.1996 e 23.9.1996.

71 — BRASIL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2ª Câmara Criminal, Habeas Corpus nº 99.018-3/2, relator Weiss de Andrade, julgado em 25.2.1991. DOSP 2/3/1993.

72 — BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, Tribunal Pleno, Inquérito nº 1.968, relator ministro Marco Aurélio.

73 — BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ADIn nº 2.943, relator ministro Carlos Velloso.

74 — “(…) a CR de 88 traçou, como se sabe, uma base capaz de, sem muito boa vontade, enterrar grande parte do atual CPP, marcado pela concepção fascista do processo penal e ancorado na tradição inquisitória, inclusive da fase processual da persecução, só não percebida por todos em razão da pouca perquirição que se faz das suas matrizes ideológicas e teóricas, a começar pelo velho código de processo penal italiano e seu inescrupuloso difusor e defensor càmicia nera de todos os instantes, Vincenzo Manzini. Que ele foi um vigoroso articulador teórico do processo penal italiano não se pode negar; mas que era um terrível fascista — expressa isso em sua obra — também não. Pior, porém, é o que se passa com a doutrina nacional, alienada em relação a problema do gênero, como sucedeu, por infelicidade — não se pode crer em outro fundamento — com José Frederico Marques, o primeiro grande escritor, no Brasil, de um direito processual penal que queria superar a base praxista da ritualística de antes da polêmica Windscheid x Muther e, por isso, ajudou a formar toda uma geração de processualistas que, não se dando conta das raízes espúrias do discurso fundamentalmente antidemocrático. Assim, não é fácil evoluir; não é fácil avançar na direção da concreção da democracia processual; não é possível proceder ao necessário corte epistemológico e as mudanças — qualquer uma — tendem a manter, como sugeriu Lampedusa, tudo como sempre esteve.

Talvez seja este, afinal, o grande motivo pelo qual vai-se para quarenta anos de tentativas de mudanças (não esquecer que o Anteprojeto Tornaghi era de 1963) e elas não se consumam, dado encontrarem resistências pontuais fundadas em argumentos de tal relevância que se tornam de difícil resposta. Ora, ou se demarca, da melhor maneira possível pela base epistemológica, o campo do incidência da reforma, ou não se retiram as premissas (algumas absolutamente falsas) aos ataques sofridos por ela, a começar daqueles que partem da angústia gerada pelo novo aos castelos da segurança calcada no conforto do velho. De Bachelard a Freud, de Khun a Lacan, de Foucault a Barcellona, de Habermas a Dussel, de Hayek a Hikelammert, de Carnelutti a Cordero, muita gente teria muito a dizer sobre o tema.

Neste diapasão, é necessário discutir imensamente antes de tentar mudar — de verdade! — a estrutura e não há que temer as eventuais deficiências do Parlamento e os jogos políticos, muito menos fazendo de conta que eles não existem ou não têm importância porque junto não dizem respeito à questão. Por esta dimensão é inescurecível discurso político aquele que avança contra uma reforma global com a idéia da dificuldade prática de se conseguir, no Parlamento, uma mudança do gênero, mas nenhum mal há nisso, em se fazer um discurso político; muito pelo contrário. No atual estágio do direito, espaço não há para propostas neutrais e alheias às ideologias. Com isso, todavia, desloca-se o eixo do argumento, passando a ser, antes de tudo, uma opção política o modelo da reforma. E aí é preciso ter confiança na força qualitativa e técnica dos juristas, capazes (por que não?) de armar, desde premissas sólidas, uma estrutura que se não consiga mexer, quanto a substância, por interesses antidemocráticos.


Eis a razão pela qual não se pode deixar de sustentar que um projeto global consistente refletindo seu tempo, há de vingar como, diga-se de passagem, ocorreu na Itália, em que pese os vinte e cinco anos de discussões, com inúmeras atualizações, sem se perder o rumo, justo porque se manteve a unidade. Há de abrir mão (algo não muito fácil em um país como o nosso, sempre marcado pelo imediatismo da glória, mormente em tempos de extremado individualismo narcíseo), por evidente do açodamento, da pressa de se produzir uma reforma para o dia anterior. Pisapia, para infelicidade de todos, não teve tempo para desfrutar o CPP italiano de 89; mas não será menos laureado por isso. Quanto aos guardasigilli, foram tantos no longo período da gestação do código, mas não importavam realmente enquanto o valor primeiro fosse a nação italiana, sem embargo de que Giuliano Vassali, Ministro da época da promulgação, não só fosse extremamente respeitado por ser um grande político, como, sobretudo, porque era, e é, um penalista de primeira linha, que pode, com toda a tranqüilidade, ser esquecido como ocupante momentâneo do cargo naquele momento. Serve, aqui, como advertência, antológica análise de Cordero sobre as macchine giudiziarie: … ogni causa é politica, inutile dirlo. Organo e funzione sviluppano delle strutture. Era tutto contenuto nella protocellula. Qui non attecchiscono invenzioni stravaganti: gli istituti distinati a lunga durata nascono organicamente dal metabolismo politico; ogni sistema sottintende uma cultura, buona, scadiziario. Restano fuori le prassi, su cui capiremmo poco se ignorassimo i meccanismi infralegali del potere: l’apparato penale ne cova uno temibile; che sia esercitato in forme più o meno asseticamente disinteressate, dipende dalla qualità delle persone e dall’imprinting corporativo. Naturale che ogni tanto qualche stregone politico tenti interferenze. Se é assim com os órgãos jurisdicionais, por que haveria de ser diferente com a elaboração legislativa, onde são chamados diretamente a dizer sobre o assunto? É preciso, então, cautela; muita cautela, ou seja, reduzir os espaços de interferência ao máximo possível, o que só se alcança com uma maior solidez da base epistêmica (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Efetividade do processo penal e golpe de cena: um problema às reformas processuais. In Escritos de direito e processo penal em homenagem ao professor Paulo Cláudio Tovo. Org. Alexandre Wunderlich. Rio de Janeiro: Lumem Juris. 2002, pp. 140-143.

75 — E eles querem — e, talvez não seja inconveniente, desde que o legislador constituinte permita, a lei complementar defina em que condições e que venha a ser instituído o juiz das garantias, que exercitará sobre o órgão efetivo controle de suas atividades — pois vemos, nos idos de 2002, expressa manifestação de vontade da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, em documento endereçado ao presidente da Câmara dos Deputados, o hoje governador Aécio Neves (http//:www.conjur.com.br. Acesso em: 29/11/2003) e na Carta de Florianópolis, resultado do XX Encontro Nacional dos Procuradores da República (http//:www.conjur.com.br. Acesso em 29/11/2003).

76 — Cláudio Fonteles, em artigo escrito recentemente, mas antes de ser investido nas funções de procurador-geral da República, denominado Investigação preliminar: significado e implicações (apud Boletim dos Procuradores da República, ano III, nº 35, março-2001, pp.18/21), ao comentar a reforma do Código de Processo Penal que pelo Congresso Nacional tramita, se mostra favorável a manutenção de uma investigação preliminar (“tradicionalmente, essa etapa vem sendo cumprida pelo inquérito policial”, destaque do próprio professor), não sob o manto dos juizados de instrução [como pensamos também], mas com a atuação decisiva do Ministério Público [desde que, repita-se, por oportuno, venhamos a criar o juiz das garantias, que fiscalizá as atividades do parquet], e, para tanto, se socorre de escólios do professor Aury Lopes Jr., que, neste aspecto, assevera:

“A tramitação da investigação preliminar deve acontecer direta e desburocratizadamente entre Ministério Público e Polícia de Investigação.

Com isso, a Polícia de Investigação, no Estado Democrático de Direito, como órgão da Sociedade, e não departamento da estrutura centralizada a Administração Pública, leia-se do Poder Executivo, longe ficará das inevitáveis pressões político-partidárias, e, assim, Polícia e Ministério Público, poderão, juntos, e de forma muito mais célere, efetiva e independente, responder aos anseios de Justiça criminal que não seja seletiva, sempre em detrimento do mais fraco, do excluído, mas contemple a todos, sem injunções preconceituosas.

O Estado Democrático de Direito é o que impõe limites a si próprio, e essencialmente na sua tarefa administrativa — Poder Executivo —, não só para que a pessoa humana dotada de garantias efetivas, até que aconteça o ato final de privação de sua liberdade, se assim concluir judicialmente, mas também para que a sociedade, comprometida com os valores de Justiça e Paz, únicos capazes de a todos propiciar igualdade e as oportunidades, possa voltar-se contra quem quer que seja — ricos e pobres — que, por condutas ofensivas da vida do patrimônio público e privada da saúde, do meio ambiente etc., comprometam o viver em sociedade”.


Ou seja, o professor Fonteles reconhece duas coisas por demais primorosas: uma, admite, sem pestanejar, que o procedimento preliminar criminal vem sendo cumprido pelo inquérito policial (não diz, em momento algum do texto, que o MP, com a tal pseudo-atribuição/competência concorrente/supletiva que hoje ele diz possuir, pode fazer às suas vezes) e, duas, que Polícia e Ministério Público devam caminhar juntos (não um usurpando as funções do outro), pois não há se admitir “que o titular exclusivo da ação penal pública, quem, portanto, elabora e apresenta a pretensão punitiva ao Juiz fique divorciado, alheio, ao trabalho de investigação preliminar” (não lemos, em momento algum do texto, que o MP, com a tal pseudo-atribuição/competência concorrente/supletiva que hoje ele diz ter, pode fazer às suas vezes). Até porque sabemos, todos, que o MP não pode investigar crime, por não ter competência em lei.

77 — É dizer que, conforme regras que norteiam o Estado democrático de direito, não se pode admitir, nem ao longe, que reforma de tamanha envergadura venha a ser realizada de afogadilho, dado que virá alterar, sobremodo, todo o arcabouço processual penal até então vigente em terras brasileiras.

78 — COUTINHO, J. N. Miranda. Efetividade do processo e golpe de cena: um problema às reformas processuais. In: WUNDERLICH, Alexandre. Escritos de direito e processo penal em homenagem ao professor Paulo Cláudio Tovo. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2002.

79 — Deve ser rememorado que o promotor investigante (há de ser respeitado o princípio do promotor natural, devendo ser repelido, por flagrantemente inconstitucional, a fórmula adotada pela resolução nº 38 do Conselho Superior do Ministério Público Federal), por tudo que já tivemos a oportunidade de dizer, não deverá ser o responsável pela condução do processo, pois estará (ou poderá estar) intoxicado por suas (falsas) “verdades”.

80 — Aquele que, falando de forma muito singela, exercerá o controle direto dos atos praticados por membros do Ministério Público, com o precípuo fim de coarctar, de plano, abusos que poderão vir a ser praticados pelo promotor investigante, isto sem falar, ser prudente que este magistrado, tenha competência para, entre o oferecimento da denúncia e seu recebimento (vindo ela ou não de investigação ministerial, aqui restando incluídos, também, os chamados “processos de surpresa”, quais sejam, aqueles que são inaugurados com base em peças de informações e, por conseguinte, sem base em qualquer investigação ministerial ou policial), realizar uma audiência prévia, regida sob a égide do contraditório. Recebida a denúncia, sempre em decisão fundamentada, os autos deveriam ser encaminhados à livre distribuição, respeitando-se, neste passo, o princípio do juiz natural.

81 — O parquet deve ser respeitado, jamais temido. Seus poderes devem ser amplos, mas não absolutos, como sustenta, com acerto, o novato criminalista Marcio Palma.

82 — KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discurso Sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Relume Dumará. Ano 1, nº 1, 1º semestre de 1996.

83 — FREITAS, Silvana de. MP x Ministério Público: Ministro estaria articulando para reduzir os poderes dos promotores, o que provocou reação Folha de S. Paulo, São Paulo, 18/12/2003, Brasil, p. A 5.

84 — In A cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: Editora Método, 2003, p. 89.

85 — Ver, sub o tema, THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? O crime e o criminoso — entes políticos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1998.

86 — VIEIRA, Luís Guilherme. Esperança sem terror. In Carta Capital, São Paulo: ano IX, nº 243, 4/6/2003, p. 71.

87 — JUNQUEIRA, Aristides apud DINIZ, Laura, op. cit.

88 — Disponível na internet: http//conjur.uol.com.br/textos/14807/. Acesso em: 14/11/2003.

89 — COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A inconstitucionalidade de lei que atribua funções administrativas do inquérito policial ao Ministério Público In: Revista de Direito Administrativo Aplicado, Curitiba (2), agosto de 1994, pp. 447/449 e 451.

90 — Disponível na internet: http//:www.estadao.com.br e http//:www.oglobo.com.br. Acessos em: 2/11/2003).

91 — Cumpre salientar, neste passo, que, levado, pela primeira vez o writ a julgamento, a tese restou vencida por seis a cinco. Detectado, pelo impetrante, que havia o impedimento legal do ministro Néri da Silveira, nova mandamental foi posta, e, aí, houve o empate no julgamento, prevalecendo, então, o regimento interno do STF, que, nesta hipótese, delibera a favor da tese mais benéfica ao paciente. Não fosse esta especificidade, milhões e milhões de cidadãos estariam sujeitos à invasão de suas privacidades, ou seja, a mercê de iniqüidades.

92 — Sub o tema, recomenda-se a leitura da exposição de motivos da lei 9.296/1996.

93 — Também sensível aos infindáveis abusos cometidos pelo Judiciário nas autorizações para escutas telefônicas, mormente depois do escandaloso affair baiano, no qual convergiam suspeitas sobre a participação do senador Antonio Carlos Magalhães (denunciado por tal fato, o STF, posteriormente, não recebeu a preambular posta em seu desfavor), o ministro da Justiça, doutor Márcio Thomaz Bastos, um garante por excelência e um dos criminalistas mais afamados de todos os tempos, constituiu comissão, presidida por Ada Pellegrini Grinover, que tivemos a honra de integrar, para apresentar anteprojeto de lei com o fim de substituir a lei vigente. O anteprojeto foi encaminhado ao presidente do Congresso Nacional, senador José Sarney.

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  • Brave

    é advogado criminal (RJ e BSB) e diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Foi secretário-geral do Instituto dos Advogados Brasileiros, onde presidiu, também, a Comissão Permanente de Defesa do Estado Democrático de Direito.

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