Precatórios judiciais

Dívida de precatórios em São Paulo cresceu 65 vezes em 6 anos

Autor

  • Kiyoshi Harada

    é jurista presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (Ibedaft) e ex-procurador-chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

4 de junho de 2005, 12h19

Inúmeras propostas de emenda constitucional foram apresentadas para resolver a questão dos precatórios acumulados ao longo do tempo. Muitos governantes, por conta dessa dívida denominada de “impagável”, não se sabe como e por quê, simplesmente cruzam os braços sem fazer o mínimo esforço para diminuir o estoque de precatórios pendentes, enquanto continuam, tranqüilamente, tocando as obras faraônicas desnecessárias, criando órgãos superpostos e aumentando assustadoramente o número de cargos em comissão.

As propostas de emendas até hoje apresentadas vão desde a instituição do seqüestro das verbas não consignadas no orçamento anual ou daquelas consignadas e não pagas, a vinculação parcial da receita corrente líquida para pagamento de precatórios, a disponibilização financeira das verbas consignadas ao Judiciário em forma de duodécimos ou em forma de cotas trimestrais, até a transformação de precatórios judiciais em títulos sentenciais, de livre circulação no mercado.

Algumas delas são propostas criativas, sem dúvida alguma, mas, que não resolvem o problema atual. Outras, no nosso entender, já estão contempladas na Carta Política vigente, bastando vontade política para implementá-las.

Sem a remoção da cultura da impunidade em matéria de descumprimento de precatório judicial qualquer alteração constitucional que venha a ser aprovada acabará caindo no vazio, como as duas moratórias constitucionais decretadas anteriormente, que só serviram para aumentar a dívida pública. E mais, os precatórios alimentares, não atingidos pelas duas moratórias, porque são de natureza privilegiada, tiveram o fluxo de pagamentos interrompido como se esses credores “privilegiados” não existissem. É uma inversão intolerável, mas as autoridades dos três Poderes fazem ‘vista grossa’ como se tudo estivesse na mais perfeita ordem.

Por absoluta falta de boa vontade dos governantes e da complacência dos Poderes Legislativo e Judiciário, que não vêm prestigiando o princípio da separação dos Poderes, por mera conveniência política, os precatórios judiciais vêm crescendo como bola de neve, representando o perigo de tornar ingovernável este País, em futuro não muito remoto.

Como reiteradamente por nós afirmado, é preciso combater as causas e não ficar remediando os resultados.

No fundo, todos os males como os precatórios impagáveis, o déficit crônico da Previdência Social, a necessidade de ultrapassar o nível de tributação suportável, a necessidade de manter taxas de juros na estratosfera, o quadro de servidores públicos inchado etc., tudo tem explicação nas causas geradoras desses efeitos, que ninguém se dispõe a atacá-las. Alguns não conseguem enxergá-las, outros fingem não enxergá-las.

Todos preferem procurar eliminar os efeitos danosos ou minimizar os efeitos perniciosos que aquelas causas “intocáveis” provocam, por meios legislativos que envolvem, desde pacotes tributários até emendas constitucionais casuísticas, sempre em prejuízo da população em geral.

O descumprimento de precatório judicial deveria gerar: a) intervenção na unidade federativa inadimplente; b) decretação de impeachment do governante desobediente.

O desvio de verba consignada no orçamento anual para pagamento de precatório, além das providências retro apontadas, deveria acarretar para o governante a competente representação ao Ministério Público, quer para a ação de responsabilidade por ato de improbidade administrativa, na forma da Lei 8.429/92, quer para propositura de ação penal, por crime do artigo 315 do Código Penal (emprego irregular de verbas ou rendas públicas), sem prejuízo do seqüestro da verba desviada, pelo órgão judiciário competente.

A não inclusão na lei orçamentária anual do montante da verba requisitada pelo Judiciário deveria merecer do Judiciário uma representação ao Ministério Público, na forma da lei processual penal, por crime de prevaricação previsto no artigo 319 do Código Penal, sem prejuízo do impeachment, da ação de responsabilidade por improbidade administrativa, além de seqüestro de rendas por conta da verba requisitada e não incluída.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, por seu órgão competente, vem acompanhando a relação de precatórios expedidos contendo a discriminação de valores, o montante das verbas consignadas, o montante de valores satisfeitos e o montante de valores não pagos. Tanto é assim que, anualmente, vem publicando a relação de precatórios descumpridos, para ciência dos interessados.

Ora, isso não é suficiente. É preciso que o Tribunal aja de ofício, para evitar que o desrespeito às suas ordens continue sendo aceito como coisa normal e corriqueira. O desprestígio do Judiciário atinge toda a sociedade. É preciso adoção de medidas drásticas contra autoridades do Executivo, nos limites constitucionais e legais.

Afinal, se o presidente do Tribunal competente que, por ato comissivo ou omissivo, retardar ou tentar frustrar a liquidação regular de precatório incorre em crime de responsabilidade (art. 100, § 6º da CF), não é razoável supor que o chefe do Executivo fique impune quando age da mesma forma. Certamente, a Carta Política não abriga o regime de impunidade às autoridades do Executivo que descumprem a requisição judicial, quer ignorando-a, quer promovendo inclusão parcial da verba requisitada e desviar o pouco que incluiu na lei orçamentária anual.

Lamentavelmente, até hoje, não se conhece um gesto, um único ofício expedido ao governante que deixou de consignar o que foi requisitado pelo Tribunal para que, no mínimo, dê as explicações da omissão atentatória à dignidade da Justiça. Se o pagamento depende do comportamento da receita, a inclusão orçamentária depende única e exclusivamente da vontade do governante de levar a sério a determinação judicial.

Por causa da omissão dos três poderes a União, os estados e os municípios devem bilhões de reais que os governantes consideram “impagáveis”, apesar das duas moratórias já decretadas, sem contar os gastos públicos altamente discutíveis do ponto de vista da legalidade, da economia e da legitimidade.

Em São Paulo, o estado mais rico da federação, mais de 35 mil já morreram na fila de precatórios. O que, afinal, é preciso acontecer para levar a sério as requisições judiciais? O que mais é preciso acontecer para que as autoridades dos três Poderes passem a cumprir e fazer cumprir os preceitos legais e constitucionais?

No município de São Paulo, os chamados precatórios alimentares, isto é, aqueles que gozam de privilégios, sem necessidade entrar na fila de precatórios comuns, ironicamente, estão com o pagamento interrompido no número 41 do ano de 1998. Nada vem sendo pago a esse título, ao passo que os precatórios comuns, ainda que aos trancos e barrancos, vêm sendo pagos. É uma inversão total de prioridades, que os governantes fingem não perceber, sob o olhar complacente do Judiciário.

Só para se ter uma idéia, no ano de 1998 o município de São Paulo devia apenas R$30.979.613,21 a título de precatórios alimentares. Hoje, ele deve mais de R$ 2 bilhões, isto é, no interregno de seis anos, houve um crescimento da ordem de quase sessenta e cinco vezes.

Como é possível acontecer uma coisa dessas em um município, cuja receita tributária não para de crescer a cada ano? Qual a mágica empregada para conseguir elevar a dívida em mais de sessenta e cinco vezes em tão curto espaço de tempo?

Nas décadas de 60 e 70, quando o montante da arrecadação era bem menor que o que se arrecada atualmente, os precatórios estavam zerados. Lembro-me que no governo Setúbal os precatórios eram liquidados em três meses, só não o fazendo antes por força das tramitações burocráticas, jamais por desvio de verba consignada ao Judiciário. A maioria dos prefeitos da capital sempre respeitou a voz do Judiciário.

Espera-se que o atual governo municipal siga as pegadas, por exemplo, do então prefeito Jânio Quadros, que havia herdado uma montanha de precatórios já sob efeito de seqüestro coletivo, mas que, com um esforço inusitado conseguiu recolocar o trem sobre os trilhos.

Essa cultura da impunidade, que tomou conta das três esferas políticas, fez com que os governantes não mais cumprissem as leis de reajuste salarial de servidores públicos, apesar de as terem sancionado, sempre contando com a procrastinação propiciada pelo recurso à via judiciária pelo prejudicado. Milhares de ações cobrando o reajuste salarial sonegado vão gerando milhares de outros precatórios “impagáveis”.

Daí a necessidade de atacar as causas, para interromper o ciclo vicioso. Uma das formas de reverter essa cultura da impunidade é a de instituir a certidão de regularidade no pagamento de precatórios, a ser apresentada pelos entes políticos como condição para pleitear operações de crédito junto as agências financeiras oficiais de fomento, como aventado pela Comissão de Precatórios da OAB-SP.

O atual presidente da Corte Suprema não tem medido esforços, procurando ajudar o Executivo a resolver essa gravíssima questão de precatórios “impagáveis”, que compromete seriamente a imagem do Judiciário, o que é bastante louvável. Leis duras servem para daqui para frente; não ajudam a resolver o passado, resultado do longo período de regime de impunidade absoluta, que precisa ser cirurgicamente removido e com urgência.

A transformação dos precatórios em títulos sentenciais é inexeqüível, por interferir nas normas orçamentárias, inviabilizando o mecanismo de controle e fiscalização de gastos públicos pelo Legislativo, com auxílio do Tribunal de Contas. Em um país que tem a tradição de desperdiçar verbas públicas, deixar as despesas sem controle eficaz é coisa bem grave.

A proposta de permitir emissão de títulos com finalidade vinculada à satisfação de precatórios, desprezando o limite de endividamento de cada ente político, além de implicar alteração constitucional, ainda que a título excepcional, esbarraria na dificuldade de colocação de títulos estaduais e municipais. Porém, resolveria a questão na esfera federal. A União que dispõe do Banco Central, inclusive dotado de poder normativo, para colocar esses títulos no mercado financeiro, não teria problema algum.

Na verdade, o saldo de precatório do exercício, não satisfeito, passa a integrar o montante da dívida consolidada, conforme § 7º do artigo 30 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Dívida consolidada é o montante total das obrigações financeiras de um ente político assumidas em virtude de leis, contratos, convênios ou tratados e realização de operações de crédito, para amortização em prazo superior a doze meses.

O problema acontece com os estados e municípios, que não dispõem de um órgão para colocação de seus títulos. E mais, falta liquidez a esses títulos estaduais e municipais.

Pergunta-se, quem irá comprar títulos da dívida pública municipal? Os famosos Bônus do Tesouro Municipal que, à sombra do artigo 33 do ADCT, foram “lançados” pela prefeitura de São Paulo, por meio de instituições bancárias desconhecidas do grande público, como o Banco Vetor e outros da espécie, só serviram para bonificar os donos dessas instituições financeiras, como bem revelou a CPI dos precatórios. Expandiu-se a dívida pública e não se pagou os precatórios pendentes, senão em parte.

A emissão de títulos municipais, por conta de inevitáveis deságios, fará decuplicar as dívidas atualmente representadas por precatórios judiciais, agravando o problema a médio e longo prazo.

Nas esferas estadual e municipal, entendo que a melhor solução, a curto prazo, é a de implementar a legislação que permite a utilização de recursos financeiros depositados em juízo, exclusivamente para quitação de precatórios judiciais.

É preciso que a sociedade cobre seriedade dos órgãos públicos responsáveis para cumprimento das condenações judiciais. Não é crível e nem é séria a alegação deste ou daquele governante de que não há recursos para pagar precatórios alimentares, freados desde o ano de 1998. Apenas 41 deles foram pagos. E os demais? E os dos anos 1999 a 2004? Como está não é possível.

A sociedade precisa reagir, a cidadania deve se fazer presente. Todas as pessoas de bem devem lutar e exigir respeito às determinações emanadas do Poder Judiciário para que a Democracia não venha perecer. Do contrário de nada adiantarão as inovações legislativas em estudo.

Autores

  • Brave

    é professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário, conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo, ex-procurador-chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo. Site: www.haradaadvogados.com.br

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