Tráfico de gente

O tráfico de pessoas pode se tornar o mais lucrativo dos crimes

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31 de janeiro de 2005, 11h04

“A droga a gente vende só uma vez, enquanto que as mulheres a gente vende várias vezes, até que não agüentem mais, fiquem loucas, morram de doença, ou se matem”. O dono de uma casa de prostituição fez esta afirmação quando entrevistado pela revista canadense Macleans. Posteriormente, Priscila Siqueira transcreveu-a no livro “Tráfico de Mulheres – oferta, demanda e impunidade”.

De fato, com o significativo aumento da pobreza em todo o mundo, seja em decorrência da globalização ou do crescimento populacional desenfreado, está se tornando mais compensador vender o corpo alheio do que traficar drogas. Diante da prevalência de valores patriarcais, as mulheres são tratadas como se não fossem seres humanos, não merecessem nenhum respeito e viessem ao mundo com a única finalidade de praticar sexo para satisfazer terceiros, por bem ou por mal. A fala abjeta do rufião não traduz nenhuma novidade, apenas explicita conceitos fortemente arraigados.

Estimativas feitas em fevereiro 2003 pelo Departamento de Estado norte-americano apontam para o crescimento descontrolado da exploração sexual de mulheres e crianças, evidenciando que, se nada for feito, dentro de três anos a atividade será a mais lucrativa do mundo do crime, rendendo mais do que o tráfico de drogas e o de armas. Atualmente, o comércio ilegal de pessoas já alcança o terceiro lugar em termos de lucratividade no ranking internacional.

Segundo cálculos da Organização das Nações Unidas (ONU), de um a quatro milhões de seres humanos são traficados por ano no mundo inteiro, sendo que a maioria deles é mulher, destina-se à exploração sexual e encontra-se reduzida à condição análoga à de escrava. Nesse comércio, o Brasil é pólo exportador, obedecendo à regra de que as pessoas são levadas das regiões pobres para as ricas. Já foram identificadas 200 rotas internas de tráfico de seres humanos no país e 100 rotas para o exterior. Nas linhas internacionais, a Espanha é o destino mais freqüente das brasileiras, com 32 rotas. As vítimas, no geral, são iludidas com promessas de bom emprego e de uma vida melhor, ou acabam atraídas por propostas de casamento no exterior. Quando descobrem o engodo, é tarde demais, pois já estão reféns dos criminosos.

O fator econômico, sem dúvida, é fundamental para que sobrevenha a situação de escravidão sexual, mas não é o único. Esse tipo de exploração é apenas mais uma das facetas da violência de gênero. Por mais que se fale em coibir a ação dos aliciadores, na prática pouco se faz, pois a sociedade é conivente com a venda do corpo feminino e procura incentivar esse comércio de todas as formas.

A mera repressão policial, ainda que fosse extremamente eficiente, não seria suficiente para evitar tamanha violação de direitos. É preciso investir no trabalho preventivo, regulamentando-se a prostituição a fim de que o Estado possa controlar a atividade, e promovendo-se a cidadania feminina, para tirar a mulher da subalternidade, do desamparo, da opressão, da desigualdade em relação ao homem. Alguns países já caminharam no sentido de garantir os direitos humanos de sua população, como o Brasil, que se empenhou em reformas legislativas e criou delegacias de polícia especializadas na defesa da mulher. No entanto, muito mais precisa ser feito. Não é possível que, depois de tanta evolução dos conceitos de direitos humanos, pessoas ainda sejam vistas como produto de consumo sexual.

Em São Paulo, a Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania lançou, recentemente, uma campanha de combate e prevenção ao tráfico de seres humanos, com o apoio do Consulado Americano (que destinou 8 milhões de dólares para suporte das atividades) e de outras organizações, dentre as quais o Serviço à Mulher Marginalizada. É um bom começo, mas o caminho é longo e cheio de obstáculos. Resta esperar que a sociedade, como um todo, se empenhe nessa causa.

Autores

  • é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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