Imbróglio jurídico

TRF da 2ª Região anula condenação de vice-prefeito

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14 de outubro de 2004, 11h09

A eleição no município de Belfort Roxo, na Baixada Fluminense, acabou gerando um imbróglio jurídico. Na última segunda-feira (11/10), o Diário da Justiça publicou o inteiro teor do acórdão do Habeas Corpus no qual a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região anulou o processo criminal 200-51-01-5332510. Nele, a 6ªVara Criminal Federal condenou o atual vice-prefeito de Belfort Roxo, o delegado federal licenciado Flávio Assis Gomes Furtado, a três anos e seis meses, em regime aberto, além de uma multa de 48 salários mínimos (R$ 12.480) por crime de “suprimir, em benefício próprio ou de outrem, documento público ou particular verdadeiro, de que não podia dispor”.

A anulação do processo, pedida pelo advogado Felipe Amodeo e acatada pelo relator do caso, desembargador André Fontes, respaldou-se no artigo 345 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que estendeu aos vice-prefeitos o foro privilegiado que a Constituição Federal garante aos prefeitos. Por dois votos a um — o desembargador Poul Erik Dyrlund foi voto vencido e a desembargadora Maria Helena Cisne acompanhou o relator — a 6ª Turma entendeu que a denúncia apresentada contra Furtado por um procurador da República deveria ter sido feita por um procurador regional, enquanto o julgamento em si não cabia ao juízo de primeira instância, mas sim ao próprio TRF.

O problema é que contados os votos eletrônicos do pleito do dia 3 de outubro, Flávio Furtado, que concorreu ao cargo de prefeito da mesma cidade pelo PTB, ficou em quinto lugar com apenas 6.288 votos. Ou seja, a partir do dia 2 de janeiro ele deixará a função de vice-prefeito, devendo retornar ao cargo de delegado federal. Assim, volta a perder o direito ao foro especial.

Oficialmente, a Procuradoria Regional da República pode recorrer da decisão. O recurso, porém, por se tratar de questão constitucional, será direto ao Supremo Tribunal Federal. Agora, o caso vai para Brasília onde só deverá ser apreciado no próximo ano quando a preliminar do foro privilegiado já não mais existirá. Mas o STF poderá simplesmente derrubar a decisão do TRF, estendendo aos vice-prefeitos o entendimento já manifesto naquela Corte para vereadores de que não fazem jus a foro especial. Assim, farão valer a condenação do atual, mandando o processo descer para a 6ª Vara Criminal Federal do Rio. Neste caso, aos advogados do atual vice-prefeito caberá o recurso.

A outra possibilidade é de o STF não conhecer a questão. Aí, valerá a decisão do TRF e o processo terá que ser reiniciado, mas não mais naquele tribunal de segunda instância, e sim na mesma Vara Criminal onde já houve a condenação. Mesmo que de maneira pró-forme, a juíza Ana Paula Vieira de Carvalho terá que refazer tudo de novo, a começar pela oitiva das testemunhas. Ou seja, haverá apenas o retardamento da decisão.

Uma outra hipótese aventada por alguns procuradores da República do Rio é a Procuradoria Regional não apresentar recurso de imediato ao Supremo. Oficialmente, o prazo para recurso é de 15 dias a contar do último dia 11, quando da publicação do acórdão. Mas há a possibilidade de se ganhar tempo com algum agravo evitando a ida do processo para Brasília, de modo a que em janeiro ele ainda esteja no Rio de Janeiro quando o vice-prefeito repassar o cargo.

De qualquer forma, vai ficar valendo a decisão tomada no Habeas Corpus, ou seja, o processo terá sido anulado e deverá ser reiniciado junto à Vara Federal Criminal. O imbróglio está criado, e seja qual for a solução encontrada, ela apenas significará a procrastinação da decisão.

Leia o acórdão

RELATOR: ANDRÉ FONTES

IMPETRANTE: FELIPE AMODEO E OUTROS

IMPETRADO: JUÍZO FEDERAL DA 6ª VARA CRIMINAL DO RIO DE JANEIRO

PACIENTE: FLÁVIO ASSIS GOMES FURTADO

ADVOGADO: FELIPE AMODEO E OUTROS

ORIGEM: JUÍZO FEDERAL DA 6ª VARA CRIMINAL DO RIO DE JANEIRO (200051015332510)

RELATÓRIO

Trata-se de habeas corpus, impetrado por FELIPE AMODEO e outros em favor de FLÁVIO ASSIS GOMES FURTADO, objetivando que, apreciado o requerimento liminar de suspensão do trâmite da ação penal a qual ora responde, seja-lhe reconhecido o foro privilegiado, para que seja processada por esta Corte, consoante o disposto no art. 345 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, tendo em vista o fato de ser vice-prefeito do Município de Belford Roxo.

Em 24 de outubro de 2001, o Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra o paciente, Jair Marchesini e dois servidores da Polícia Federal, nomeadamente Carlos Fagundes e Sônia Maria Andrade de Albuquerque, imputando-lhes a prática do crime tipificado no art. 305 do Código Penal. Consta desta peça que o paciente, delegado da Polícia Federal, teria participado de empreitada criminosa visando a constranger Pedro Ernesto, indiciado em inquérito policial instaurado para apurar sua suposta gestão temerária enquanto gerente de uma das agências do Banco do Brasil, a suprimir a parte de seu depoimento que poderia expor o ora réu Jair Marchesini à investigação de autoridades fiscais, fato que resultou em supressão parcial de prova documental.


Parecer do ilustre membro do Ministério Público Federal, Dr. José Homero de Andrade, às fls. 1630-1637, opinando pelo deferimento da ordem.

É o sucinto relatório.

Em mesa, nos termos do art. 87, I, do Regimento Interno.

Em 10 – 08 – 2004.

ANDRÉ FONTES

Relator

VOTO

A competência para processa e julgar autoridades municipais, em razão de apuração de crime praticado em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, está afeta ao egrégio Tribunal Regional Federal.

Interpretando-se sistematicamente os artigos 29, X, e 125, § 1º, da Constituição da República e 345, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, bem como as decisões sobre o tema, outra não pode ser a conclusão senão a de que é este Tribunal Regional Federal competente originariamente para julgar vice-prefeito por suposto cometimento de crime envolvendo interesse da União.

Neste sentido, são os seguintes acórdãos:

“HABEAS-CORPUS. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE PREFEITO MUNICIPAL POR CRIMES PRATICADOS CONTRA A UNIÃO. 1. Os Tribunais de Justiça são competentes para processar e julgar prefeitos municipais por crimes comuns (Constituição, artigo 29, X), assim entendidos também aqueles relativos à malversação de verbas recebidas da União sem condição. Precedente.

2. Os Tribunais Regionais Federais são competentes para processar e julgar prefeitos municipais por infrações praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União (Constituição, artigo 109, IV), assim entendidas também aquelas relativas à malversação de verbas recebidas da União sob condição e sujeitas a prestação de contas e ao controle do Tribunal de Contas da União. Precedentes.

3. Habeas-corpus conhecido e deferido para anular as decisões do Superior Tribunal de Justiça que julgaram o Conflito de Competência e, em conseqüência, os atos decisórios praticados pelo Tribunal de Justiça e determinar a remessa dos autos ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região para que, fixada a sua competência, proceda como entender de direito.”

(HC 78728 – RS; STF – Segunda Turma; Relator Ministro Maurício Corrêa; data do julgamento 23-02-99; DJ DATA 16-04-99, p.00008)

“CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. ‘HABEAS CORPUS’. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DO VICE-PREFEITO.

A competência, para processar e julgar autoridades municipais, sujeitas à jurisdição do Tribunal de Justiça, pelo cometimento de crime “praticado em detrimento de bens, serviços ou interesses da União”, está afeta ao egrégio Tribunal Regional Federal. Ordem denegada.”

(HC 9702378397; TRF 2ª Região – Plenário, por unanimidade denegou a ordem; Relator Juiz Rogério de Carvalho; data do julgamento 07-05-98; DJ DATA 09-06-98, p. 54)

Nota-se que seguimos o entendimento unânime do órgão Plenário desta Corte, embora não olvidemos as decisões em sentido contrário, como a prolatada nos autos nº 2003.0238114-8 (HC 32863), pela ilustre ministra do Superior Tribunal de Justiça Laurita Vaz, publicada em 02.08.2004.

Desta forma, tendo em vista o fato de que a denúncia foi feita por órgão sem atribuição para tal, isto é, pela Procuradoria da República do Estado do Rio de Janeiro, quando deveria ter advindo da Procuradoria Regional da República, bem como o de a sentença ter sido prolatada por juízo incompetente, mister se faz a anulação da presente ação penal, nos termos do art. 567 do Código de Processo Penal.

Neste sentido é a lição de Sergio Demoro Hamilton (in Temas de Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p. 58):

“ Parece-me que a atribuição surge no processo penal como um verdadeiro pressuposto processual de validez da instância. Colocada a questão nestes termos, chega-se, de forma lógica, à conclusão de que sua falta vicia a relação processual sem a impedir de nascer. Dizendo de outra maneira: a relação processual existe, posto que viciada pela de atribuição do órgão do Ministério Público.

Prosperando, conclui-se que a ausência de atribuição traz como conseqüência a nulidade do processo ou do ato processual, conforme o caso, desde que oficie no feito um promotor despido de atribuição”.

Logo, voto no sentido de que:

I – Seja anulado todo o processo da ação penal (autos nº 2002.02.01.036160-5 e origem nº 2000.51.01.533251-0), devido à falta do pressuposto processual da competência, nos termos do art. 567 do Código de Processo Penal.

II – Sejam os autos remetidos ao Procurador Regional Chefe na 2ª Região na forma do art. 28 do Código de Processo Penal, para, se assim entender, prosseguir na persecução penal.

É como voto.

Em 10-08-2004.

ANDRÉ FONTES

Relator

VOTO VENCIDO

Cuida-se de habeas corpus impetrado por Felipe Amodeo e outros em favor de FLÁVIO ASSIS GOMES FURTADO, objetivando a concessão da ordem para suspensão do andamento da ação penal a que responde, junto ao Juízo Federal da 6ºVara Criminal/RJ, por incurso nas sanções do art.305 do CP, lhe sendo reconhecida e assegurada a prerrogativa de, na qualidade de vice-prefeito do Município de Belford Roxo, se ver processado e julgado por esta Corte Regional.


Peço vênia para divergir da douta maioria, que entendeu pela concessão da ordem para anulação “de todo o processo da ação penal (autos nº2002.02.01.036160-5 e origem nº2000.51.01.533251-0), devido à falta do pressuposto processual da competência, nos termos do art.567 do Código de Processo Penal.”, com a remessa dos respectivos autos ao Procurador Regional Chefe da 2ªRegião, na forma do art.28 do CPP, para, se assim entender, prosseguir na persecução penal, forte nas razões por mim expendidas na sessão de julgamento de 10/08/04, cujo teor encontra-se reproduzido na transcrição fonográfica que passa a fazer parte integrante do presente.

Com efeito.

Objetiva o ora paciente – FLÁVIO ASSIS GOMES FURTADO, a concessão da ordem para suspensão do andamento da ação penal a que responde, junto ao Juízo Federal da 6ºVara Criminal/RJ, por incurso nas sanções do art.305 do CP, lhe sendo reconhecida e assegurada a prerrogativa de, na qualidade de vice-prefeito do Município de Belford Roxo, se ver processado e julgado por esta Corte Regional.

A matéria em foco é inçada de controvérsias para se delimitar o alcance da norma inscrita no §1º, do art.125 da Constituição Federal.

A questão é tormentosa, devendo se fazer uma interpretação desta em conjugação com aquela do art.29, X e, no campo da Constituição Estadual com a do art.345 e art.161 sendo que, esta, em seu inciso IV, nas suas diversas alíneas, foi por inúmeras vezes, objeto de declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, face a questão de ampliação de foro por prerrogativa de função no sentido de que, em não estando previsto expressamente na Constituição Federal, não caberia, nesse campo, à Constituição Estadual dilargar essa competência, adotando o princípio da simetria ou do paralelismo das formas, sendo certo que, deve a interpretação ser efetivada de forma restritiva.

Noutro eito, põe-se a questão da razão de, no caso específico, ter a Constituição Federal previsão em relação a Prefeito, mas não em relação a vice-prefeito? A razão é lógica, ou seja, em função da atividade daquele – entendeu o Poder Constituinte Originário – mereceria uma maior proteção, a fim de não gerar eventual solução de continuidade no exercício de suas atribuições junto ao Município.

Dessa forma, existe uma série de redes de proteção que não foram estendidas ao vice-prefeito, como in casu, tal qual em diversas situações do artigo 161, da Constituição Estadual do Rio de Janeiro.

Do exposto denego a ordem de habeas corpus.

É o voto.

Rio de Janeiro, 10 de agosto de 2004.

POUL ERIK DYRLUND

Desembargador Federal

EMENTA

DIREITO PROCESSUAL PENAL E DIREITO CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. COMPETÊNCIA PARA JULGAR VICE-PREFEITO.

I – Ao Tribunal Regional Federal compete originariamente julgar vice-prefeito por suposto cometimento de crime envolvendo interesse da União, consoante interpretação sistemática dos artigos 29, X, e 125, § 1º, da Constituição da República e 345, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro.

II – É do Procurador Regional da República a atribuição para denunciar vice-prefeito, razão pela qual anula-se o processo, nos termos do art. 567 do Código de Processo Penal, a fim de que sejam as peças encaminhadas ao Ministério Público Federal e dirigidas aos seus membros com função institucional nesta Corte Regional.

III – Ordem concedida.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados os presentes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Membros da Sexta Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por maioria, em conceder a ordem, nos termos do voto do Relator, que fica fazendo parte integrante deste julgado. Vencido o juiz Poul Erik Dyrlund. Votaram os juízes Poul Erik Dyrlund, Maria Helena Cisne e André Fontes.

Rio de Janeiro, 10 de agosto de 2004.

(data do julgamento)

ANDRÉ FONTES

Relator

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