Carne de sola

Dono da Gallus é condenado a 11 anos de prisão

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20 de maio de 2004, 18h53

O proprietário da Gallus Agropecuária, Gelson Camargo dos Santos, foi condenado em primeira instância a 11 anos de prisão. A empresa faliu em 1998.

Ele é acusado de desvio de bens, fraude falimentar, omissão na escrituração e falsidade material e ideológica. Camargo dos Santos está preso desde meados de 2002, quando foi denunciado pelo Ministério Público. Ainda cabe recurso.

Camargo dos Santos captava recursos financeiros de investidores seduzidos por publicidade falsa, de acordo com os autos. Nas propagandas, a empresa afirmava que era proprietária de fazendas que não existiam ou que existiam — mas que não eram suas, em “ambos os casos dando dimensões cinematográficas às qualidades de todas”.

Além disso, a Gallus ainda defendia o investimento no gado, que traria rentabilidade líquida, ao final de quatro meses, próxima de 12,8%, poucos meses antes da falência. Um dos diversos clientes da empresa, o publicitário Fernando José Thompson Scalamandré, investiu R$ 26 mil em contratos de engorda de frangos e suínos. Ele nada recebeu em troca.

A decisão é o juiz da 19º Vara Cível de São Paulo, Afonso Celso da Silva. Segundo a denúncia do MP, o empresário ofereceu contratos de parceria com remuneração muito acima do padrão de mercado. O Ministério Público sustenta que o dinheiro que ele captava para investimentos agropecuários que deveria ser aplicado em contratos pecuários de engorda de animais ou produção de leite era desviado para proveito próprio, num esquema de administração paralelo.

O MP também alega que Camargo dos Santos cometeu irregularidades com a escrituração de livros e desviou bens da massa falida. Nos livros da Gallus havia registros de pagamentos a atividades não relacionadas à da empresa. A falsidade ideológica está na publicação do balancete contábil da Gallus, no jornal O Estado de São Paulo, composto de informações falsas e assinado por pessoas não habilitadas ao mesmo.

No balanço, o ativo declarado era de R$ 72.397.200,67. O valor, no entanto, segundo o juiz, era imaginário, “bastando para isto que se constate a inexistência de bens de valor arrecadados menos de um ano depois, quando da decretação da falência; as fazendas, que em sua maioria ou não existiam, ou não eram nas dimensões apregoadas, ou não eram de propriedade da massa, foram avaliadas em R$ 50.000.000,00”.

Camargo da Silva argumentou que se afastou totalmente da empresa, por motivo de doença, por longo período, deixando‑a nas mãos de administradores. Um deles, no entanto, garantiu em interrogatório que Camargo dos Santos se afastou da empresa por cerca de dez dias, para ficar em um spa.

Segundo o juiz, no entanto, as provas constantes dos autos revelam que o empresário tanto estava a par de toda a situação que já articulava a saída "de direito" da sociedade (mas não de fato, como acima se concluiu). O fundamento está no fato de que a situação econômica da empresa já era delicada quando ele transformou a sociedade de quotas de responsabilidade limitada em sociedade por ações.

*Nota da redação: Nelson Razzo Filho foi absolvido da acusação através de sentença da 19ª Vara Cível do Foro Central da Capital paulista, do ano de 2006, e que já transitou em julgado.

Leia íntegra da sentença

PODER JUDICIÁRIO

SÃO PAULO

19ª Vara Cível Central

Processo n.º 000.02.093644‑3

Vistos.

Trata‑se de AÇÃO PENAL FALIMENTAR proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, originalmente em face dos réus Gelson Camargo dos Santos, Fernando Adelino Caron, Rosana Aparecida Carvalho Gonçalves e Nelson Razzo Filho, o primeiro nomeado em relação a quem os presentes autos dizem respeito, eis que o processo foi desmembrado, por estar incurso nos artigos 186, VI (inexistência de livro obrigatório e escrituração atrasada), 188, III (desvio de bens) e VII (omissão na escrituração), 187 (fraude falimentar), todos da Lei de Falências, além dos artigos 298 e 299 do Código Penal (falsidade material e ideológica).

Narra a denúncia que o réu Gelson Camargo dos Santos, titular da empresa falida nominada de Gallus Agropecuária S/A, teria capitaneado a captação de dinheiro realizada pela empresa falida, oferecendo contratos de parceria com alta remuneração para os padrões do mercado financeiro, e, além das irregularidades com a escrituração de livros, teria procedido a desvio de bens da massa, em razão de vários pagamentos realizados a atividades não relacionadas à atividade empresarial da falida, e também porque nenhum dos bens que a falida anunciava ter foram arrecadados com a quebra.

Teria o referido réu também participado de fraude falimentar, na medida em que captou a falida quantia razoável de dinheiro para investimentos agropecuários, mas este era desviado, o que culminou com a utilização de conta corrente de pessoas físicas, para que um verdadeiro esquema de administração paralelo operasse em cada unidade da Gallus.

Também teria ocorrido falsidade material e ideológica, consistente na publicação de balancete contábil, publicado no jornal O Estado de São Paulo e na Gazeta Mercantil, assinado por pessoas que não estariam habilitadas a fazê‑lo, e que continham informações absolutamente inverídicas.

A denúncia foi recebida em 10.05.02 (fls. 622/625), sendo o réu citado pessoalmente (fls. 637), tendo a sua prisão preventiva determinada (fls. 792/793); acabou por comparecer espontaneamente, e foi interrogado (fls. 986/989), oferecendo defesa prévia (fls. 1.219/1.220).

Ouviram‑se as testemunhas arroladas (fls. 1.252/1.254), tendo sido encerrada a instrução, ainda pendente a oitiva de uma testemunha por precatória, nos termos do art. 222, § 1º, do Código de Processo Penal.

Ultrapassada a fase do art. 499 do Código de Processo Penal, manifestou‑se o Ministério Público sentido da procedência total da ação penal (fls. 1.266/1.273); a r. Defensoría Dativa, nomeada em substituição àquela constituída pelo réu, em suas alegações finais (fls. 1297/1304), pugnou pela improcedência da ação penal, e absolvição do réu, por não ter ele praticado qualquer das condutas delituosas que lhe foram irrogadas.

É o sucinto relatório.

Fundamento e decido.

A ação penal é integralmente procedente.

1. Da efetiva responsabilidade do acusado pela condução dos negócios da sociedade.

Não obstante o acusado Gelson, desde sua primeira intervenção nos autos, tente negar que teve participação em qualquer das irregularidades ocorridas na gestão da empresa, asseverando que "… todos os problemas surgiram durante a administração de N. R. e F. C. …" (fls. 988), o fato é que não pode ele ser furtar, diante das provas coligidas ao longo da instrução, à responsabilidade pelos delitos cometidos na falida.

Com efeito, não se mostrou verdadeira a versão do acusado de que se afastou totalmente da empresa, por motivo de doença, por longo período, deixando‑a nas mãos de administradores.

Um destes, Nelson Razzo, asseverou, ao ser interrogado (fls. 1.102/ 1.106), que, em verdade G. afastou‑se da empresa por cerca de dez dias, para ficar em um spa, mas que durante o período de pouco mais de seis meses em que trabalhou na empresa, ele dela não se afastou, chegando a para ela se dirigir no período noturno.

Rosana chegou a afirmar que este afastamento durou cerca de um mês (fls. 990/992).

Mas, independentemente do período em que o réu ficou tentando emagrecer em local próprio, a versão de que ele não se afastou da direção da empresa, por tempo relevante, encontra profundo amparo também na prova documental constante dos autos, na medida em que, supostamente afastado na empresa neste período de junho de 1.997 a janeiro de 1.998, (curiosamente o que antecedeu a decretação da falência, ocorrida em 12.05.98) o acusado continuava a praticar atos em seu nome tais como subscrever contratos de fornecimento (datado de 13.11.97 ‑ fls. 479/485) e de comodato (datado de 13.11.97 ‑ fls. 489/493).

Tais fatos são suficientes para se concluir que o réu, em verdade, depois de cometer diversas irregularidades, que serão melhor analisadas de maneira individuada nesta decisão, já engendrava maneira de tentar se ver livre da teia de irregularidades, desvios e arbitrariedades cometidas na condução da Gallus, que em 1.997, seguramente, já estava com seus dias contados.


Prova de que o acusado já articulava sua saída "de direito" da sociedade (mas não de fato, como acima se concluiu), é a transformação da sociedade da forma de quotas de responsabilidade limitada para sociedade por ações, ocorrida em 15.01.97 (fls. 297/310), quando a situação econômica da empresa já era delicada, para não dizer irreversível, termo que seria o mais adequado, fato este que inclusive o auxiliou perante a Comissão de Valores Mobiliários a "manter as aparências".

Tais atitudes do réu revelam que a testemunha Almir Carvalho de Melo, ouvida nos autos da falência (fls. 506/511), já traçava o real contorno da empresa falida e da pessoa de seu administrador, que, em verdade, se confundiam.

Disse referida pessoa, que entre outras afirmações:

"Que aos leilões de gado, quem comparecia em nome da falida era o próprio Gelson Camargo que no entanto o depoente também o acompanhava. Que Gelson tinha por hábito quando se dizia para não comprar determinado animal, insistir na compra e quase que compulsivamente passava a dar lances e mais lances até adquirir o dito boi. Que Gelson gostava de aparecer, de ser fotografado, isto no entender do declarante. Que todos os animais adquiridos em leilão foram adquiridos por preços muito superiores aos reais, por exemplo se hoje vendido em leilão o touro adquirido pela Gallus por R$ 120.000,00 se poderá obter cerca de R$ 40.000,00, conforme avaliação feita pelo declarante.

… Que quando Gelson Camargo comprou a empresa Gallus de imediato passou a multiplicar os contratos de engorda de animais, contratos estes que já existiam na época em que a empresa era tocada por seu antecessor no caso Pascoal Carrieri. Que Pascoal Carrieri tinha uns poucos contratos de engorda de animais.

… Que as taxas de rendimento prometidas poderiam ser tranqüilamente cumpridas pela falida, desde que houvesse aquisição de bois em número compatível com a venda de títulos. Que haviam muito mais títulos que bois.

….Que tanto o depoente como Nelson Razzo advertiram Gelson Camargo que o número de contratos negociados era compatível com o volume de cabeças de gado da falida e ‘que em um momento iria estourar’. Que Nelson Razzo, apesar de não ter qualquer ligação com o ramo de pecuária notava, claramente, a incompatibilidade dentre a comercialização de contratos com o volume de gado armazenado nas fazendas da falida.

….Que Gelson não entendia nada de pecuária, ou melhor ‘não entende’. Que ao chegar a um leilão Gelson Camargo se transformava. Que as orientações fossem seguidas hoje a Gallus seria a maior empresa do mercado. Que Gelson Camargo com o dinheiro dos clientes dava vazão a uma de suas manias, compra de carros, que ao que possa informar Gelson contava com duas Mercedes, duas BMW, Jaguar, Cherokee, dentre outros. Que a falida também patrocinava uma equipe de basquete em Franca equipe esta treinada por Helio Rubens".

O depoimento acima resume, pois, de acordo com a prova dos autos, quem era o acusado, bem como ser ele sabedor de todas as irregularidades existentes na empresa, pois a tinha sob seu exclusivo controle.

2. A imputação do artigo 186, VI – inexistência de livro obrigatório e escrituração atrasada.

Não obstante toda a movimentação financeira da falida, o único livro arrecadado foi o Livro Diário do ano de 1.996; os livros subseqüentes não foram arrecadados e não consta terem sido registrados perante a JUCESP. A escrituração dos períodos, portanto, também estaria atrasada.

Assim, configurados os referidos delitos, na medida em que o tipo penal ora em comento se tem por configurado com a mera ausência da conduta positiva exigida em lei, quanto à guarda e regular escrituração dos livros.

Lembre‑se que:

“Como tem sido reiteradas vezes decidido, o comerciante não é punido pela inexistência de livros destinados à escrituração da empresa; mas ocorrendo a falência, a falta de livros obrigatórios configura ilícito penal. A falta de livro obrigatório constitui crime de perigo contra o comércio, delito de mera conduta. Realçam os doutos que o simples fato de não possuir os livros configura o delito, independentemente de ter ou não concorrido para a falência" (TJSP, rel. Des. Weiss de Andrade, RJTJSP 112/479).

3. A imputação do art. 188, III e VI (desvio de bens e omissão na escrituração).

Configurada a imputação de desvio de bens da massa, na medida em que o acusado, efetivamente, se apropriou de bens pertencentes à empresa, notadamente do dinheiro que lhe era entregue para ser aplicado em contratos pecuários de engorda de animais ou produção de leite, utilizando‑se em proveito única e exclusivamente seu, inclusive utilizando‑se de conta corrente paralela, em nome de funcionária sua (Rosana Aparecida Carvalho Gonçalves) para se furtar ao controle contábil.

O passivo da empresa, segundo consta dos autos da falência, chega a mais de vinte milhões de reais, e nenhuma das propaladas fazendas mencionadas nas propagandas constantes dos autos, e o que é o pior, do gado cuja engorda ou leite se prometia o lucro para os investidores, ou das aves e suínos, nada sobrou.

Sequer das fazendas alardeadas como de propriedade da falida se conseguiu dinheiro para pagamento aos inúmeros credores da massa, eis que eram arrendadas ou compromissadas a venda, e foram todas retomadas diante do inadimplemento ocorrido.

Na propaganda da falida, constava a propriedade de 13 fazendas próprias e 14 arrendadas, 39 caminhões, 20 tratores, 07 automóveis, 21 linhas telefônicas, 28 máquinas incubadoras e 18 nascedouros, sendo que nada disto foi arrecadado, tudo a configurar o crime de desvio de bens da massa.

O crime de omissão na escrituração também se configurou.

Confessado está nos autos que, por determinado período antes da falência, a conta corrente pessoal de Rosana Aparecida Carvalho Gonçalves movimentou dinheiro da empresa, efetuando recebimentos e pagamentos, fato este admitido: não só por esta, como pelo próprio acusado, nos respectivos interrogatórios.

Ademais, farta é a documentação dando conta disto (fls. 1.009/1.039), além da própria conclusão do laudo pericial elaborado (fls. 23/33).

4. A imputação do art. 187 (fraude falimentar).

O crime de fraude falimentar também ocorreu, e este se deu com a venda simulada de bens.

Segundo farta publicidade realizada, a falida, durante longo período, captou recursos financeiros de incautos investidores, que confiaram a remuneração razoável que lhes era oferecida, favorecido o acusado pela ausência de controle sobre os contratos de parceira de engorda, que apenas passaram a ser controlados pela Comissão de Valores Mobiliários em janeiro de 1.998.

Um dos "clientes" da falida, dentre as centena que foram lesadas, foi o publicitário Fernando José Thompson Scalamandré (fls. 53), que investiu R$ 26.000,00 em contratos de engorda de frangos e suínos, e nada recebeu.

Fernando, como tantos outros, foi seduzido pela maciça propaganda desenvolvida pela falida, em cuja pirâmide de comando o acusado Gelson Camargo ocupava o vértice superior.

Anunciava‑se a propriedade de diversas fazendas e laticínios, milhares de cabeças de gado e leiteiro, galinhas e porcos; porém, os aplicadores, em sua quase maioria, pelo menos no ano de 1.997, o talvez até desde o início (dado o modo criminoso como a falida era administrada pelo acusado e seus asseclas), em verdade nua e crua, já estavam dando dinheiro a fundo perdido, sem que o soubessem.

O ano de 1.997 foi o anterior à quebra, a qual foi precedida de proibição da falida em comercializar os contratos de engorda, por parte da Comissão de Valores Mobiliários (a decisão ocorreu em 05 de março de 1.998).

A farsa do patrimônio da falida, que em verdade ou inventava fazendas, ou dizia que lhe pertenciam fazendas que, apesar de realmente existirem, nunca lhes foram vendidas, em ambos os casos dando dimensões cinematográficas às qualidades de todas, atraiu os investidores.

Em propaganda divulgada em dezembro de 1.997 (fls. 1.094/1.097), poucos meses antes da falência (decretada, repita‑se, em maio de 1.998, e às vésperas da proibição emanada da CVM, datada de março de 1.998), a falida ainda defendia o investimento em gado, que traria rentabilidade líquida, ao final de quatro meses, próxima de 12,8%.

Note‑se: a empresa já estava em ruínas, suas contas sequer poderiam ser utilizadas, tanto que utilizaram‑se contas particulares, à exemplo daquela em nome da também denunciada Rosna Aparecida Carvalho Gonçalves, junto ao Banco Real, Agência Nove de Julho, de n.º 9.774.975 (o processo contra ela corre em apartado), e, mesmo assim, a propaganda divulgada em dezembro consistia em alardear as seguintes "novidades":


"Novas máquinas darão impulso aos nossos laticínios" (fls. 1.094).

"Pesquisa mostra que estamos por cima" (fls. 1.095‑verso).

"Sucesso do espírito de equipe" (fls. 1.096).

Desta última manchete, na verdade uma carta do ora acusado aos seus parceiros e funcionários, o cenário pintado para o ano de 1.998 era de bonança, pujança e lucros, que terminava da seguinte maneira:

"Por tudo que conseguimos em 1997, eu pessoalmente afirmo que a Gallus Agropecuária tem muito orgulho de vocês que acreditaram e souberam transformar este ano em uma excelente oportunidade de crescimento para nossa empresa e para a agropecuária no Brasil. Com a esperança de que partilhemos uma vida promissora e plena de bons resultados dentro da Gallus e junto de nossa família, desejo a todos um festivo Natal e um excelente 1998.

G. Camargo

Presidente" (fls. 1.096)

Note‑se: três meses depois a Comissão de Valores Mobiliários proibiu a celebração de novos contratos de engorda, e cinco meses depois foi decretada a falência.

O próprio acusado desenvolveu estratégia de propaganda pessoal de modo a se tornar conhecido: aparecia ao lado de personalidades (na foto de fls. 1.087 aparece ao lado da apresentadora Xuxa, na de fls. 1.088, com os cantores Leandro e Leonardo); patrocinou time de basquete na cidade de Franca, com técnico conhecido (Hélio Rubens), inclusive levando todo o time para a inauguração das instalações destinadas ao leite na cidade (conforme fls. 510).

E, desta maneira, montou‑se, de um lado, a farsa do patrimônio da falida, e, de outro, um modo de captação de dinheiro limpo e bom, para satisfação e enriquecimento pessoal do acusado.

Configurou‑se, assim, o crime de fraude, na medida em que o dinheiro captado, que deveria ser direcionado à compra, engorda e trato de animais, para posterior revenda e pagamento dos investidores acabou sendo desviado, repita‑se, para pagamento das despesas pessoais do falido.

5. As imputações dos artigos 298 e 299 do Código Penal.

Também deve o acusado ser responsabilizado pelos delitos de falsidade material e ideológica, consistente na publicação de balancete contábil, publicado no jornal O Estado de São Paulo do dia 21.10.97, e também no jornal a Gazeta Mercantil do dia 23.10.97, assinado por pessoas que não estariam habilitadas a fazê‑lo, e que continham informações absolutamente inverídicas.

Constatou‑se nos autos que a autoria do parecer de auditoria referente ao balancete datado de 30.06.97 (fls. 432) foi atribuída a W. F. B. (fls. 434/436), que nega tê‑lo feito, fato que também é negado por J. N. F. F. (fls. 427/431).

No depoimento de Washington, asseverou este que o balancete elaborado não poderia ter existido, eis que o último se referia a 1.995; ademais, deveria ele estar lançado no Livro Diário, o qual sequer foi arrecadado; José Nelson bem define este balanço, adjetivando‑o como "não só gelado, é falso, pois totalmente adulterado".

O laudo pericial que encartou a denúncia também verificou que o balanço retro referido foi fraudado (fls. 29) "inclusive com declaração do auditor negando o parecer da auditoria constante da referida publicação o do contador alegando que não se responsabiliza pelo referido balanço".

Analisando‑se o conteúdo de referida peça (que não pode ser chamada propriamente de documento contábil) constata‑se que efetivamente não correspondia à realidade, na medida em que o valor do ativo ali declarado, de R$ 72.397.200,67 era imaginário, bastando para isto que se constate a inexistência de bens de valor arrecadados menos de um ano depois, quando da decretação da falência; as fazendas, que em sua maioria ou não existiam, ou não eram nas dimensões apregoadas, ou não eram de propriedade da massa, foram avaliadas em R$ 50.000.000,00.

Mais não é preciso para comprovar‑se a falsidade ideológica.

Contudo, a falsidade também foi material.

Com efeito, não foi o referido documento assinado por quem de direito, e sequer se sabe quem o fez; contudo, o acusado, responsável que era pela empresa, e que poucos meses depois assinou carta dizendo que tudo ia bem (acima transcrita) era o responsável pela mesma, e responde pelos delitos verificados, mormente porque, como acima constatado, estava ele à testa das decisões relevantes da empresa, mesmo no período que antecedeu o decreto de falência.

Diante do exposto, participou o acusado da falsificação de documento particular, e nele fez inserir declaração falsa, diversa da que deveria constar, com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.

Resta, agora, a dosimetria das penas.

O artigo 59 do Código Penal orienta o modo de fixação da pena dos delitos praticados pelo réu.

No tocante à culpabilidade, que é a intensidade com que se houve o dolo ou grau de culpa do réu, nota-se que o acusado lesou centenas de credores com absoluto conhecimento do que fazia, sabedor de que sua conduta, que pode ser qualificada como de desprezo pelo dinheiro dos investidores que lhe procuraram, iria acarretar‑lhes prejuízo que não seria ressarcido.

Os antecedentes do acusado o reprovam de tal forma que se pode mesmo afirmar que os atos por ele praticados na administração da falida foram apenas o coroamento de uma vida de ilicitudes; possui ele inúmeras condenações por estelionato e outros delitos não só no Estado de São Paulo (fls. 748/758, 944), como também no Estado de Porto Alegre (fls. 979/982, 1166/1170, 1199/1203).

Sua conduta social mostrou‑se deplorável; utilizava‑se do dinheiro alheio para se projetar perante o meio social, inclusive aproximando-se de pessoas influentes no país; sua personalidade, assim, bem edificada ao longo da instrução, permite definir, como o fez seu ex‑empregado A., como sendo pessoa que gastava compulsivamente o dinheiro que não lhe pertencia, sem se importar com as conseqüências futuras de seus atos, que aliás jamais o alcançarão em sua plenitude.

Sobre este ponto, as conseqüências dos crimes por ele praticados foram gravíssimas; inúmeras vítimas perderam as economias, às vezes de toda uma vida, que a ele confiaram; atraiu dinheiro de pessoas integrantes de todas as camadas sociais e, mesmo às vésperas da falência, continuou a afirmar que a falida ia cada vez melhor.

Diante do acima exposto, fixa‑se a pena base dos delitos previstos nos artigos 186, VI, 188, 111 e VII, 187, todos da Lei de Falências, 298 e 299 do Código Penal no máximo abstratamente cominado quer em relação a pena corpórea quer em relação a pena de multa.

Individualizando‑as, a pena do art. 186, VI, da lei de quebras é fixada em 03 anos de detenção; 188, III e VII, assim como 187, ambos do citado diploma é fixada em 04 anos de reclusão; a pena do artigo 298 do Código Penal é fixada em 04 anos de reclusão e 360 dias multa, e, finalmente a pena do artigo 299 do citado Codex, é fixada em 03 anos de reclusão e 360 dias multa.

Diante da unicidade dos crimes falimentares, há de se aplicar somente a pena do crime falimentar mais grave ocorrido, correspondente à dos artigos 188, III e VII e 187, de 04 anos de reclusão.

O referido princípio da unicidade, por força do artigo 192 da lei falimentar não abrange os crimes previstos no Código, Penal, pois, consoante já se decidiu:

"Não é de se invocar, na espécie, o princípio da unicidade dos crimes, porque tal princípio só diz respeito aos crimes falimentares, não abrangendo os delitos previstos no Código Penal. O crime falimentar é de estrutura complexa, a falência converte em unidade a pluralidade de atos do devedor, anteriores à decretação da falência, de sorte que, se são diversos os fatos delituosos, uma só será a ação punível. Mas se a unidade do crime falimentar concorre com outro delito previsto na lei penal, aplica‑se a regra do concurso de crimes estabelecida no estatuto repressivo.” Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, rel. Des. Hélio de Freitas, RT 801/516).

Sendo assim, considerado o concurso material dos crimes falimentares com aqueles previstos no Código Penal, e estes entre si, a pena global é fixada em 11 anos de reclusão e 720 dias‑multa.

Cada dia‑multa é fixado, segundo o critério estabelecido no artigo 49, § 1º, em 5 vezes o maior salário mínimo mensal vigente ao tempo do fato, a ser atualizado, quando da execução, pelos índices da correção monetária; justifica‑se a fixação do valor da pena de multa neste quantum tendo em vista a situação econômica do réu, que chegou a afirmar em Juízo que possui patrimônio pessoal de mais de trinta milhões de reais (muito embora não tenha ele revelado onde depositou tais quantias), sendo que reprimenda menor que esta seria irrelevante, insignificante e sem qualquer alcance (conforme JUTACRIM 94/329, rel. o hoje Des. Canguçu de Almeida).

Assim, diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a presente ação penal, para o fim de CONDENAR o réu Gelson Camargo dos Santos, RG 7.413.116-3, filho de Angelino Alves dos Santos e de Dilma Camargo dos Santos, na sanção corporal de 11 anos de reclusão e pecuniária de 720 dias‑multa, cada qual arbitrado em 05 vezes o valor do salário mínimo vigente na época do fato, em virtude de estar incurso nos artigos 186, VI, 188, III e VII, 187, todos da Lei de Falências, 298 e 299 do Código Penal, na forma do artigo 69 deste último estatuto repressivo.

Em virtude de seus antecedentes e da quantidade da pena aplicada, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado; recomende‑se o réu na prisão em que se encontra.

Com efeito da condenação, atendendo ao disposto no artigo 195 da lei falimentar, reconhece‑se a interdição do exercício do comércio ao réu; não se pode olvidar que:

“… a interdição do comércio ao condenado por crime falimentar não tem, pois, a natureza de pena, mas de umas das providências previstas na lei de quebras para afastar do comércio aquele que faliu" (RJTJSP 109/406).

Após o trânsito em julgado, lance‑se o nome do réu no Livro Rol dos Culpados.

Custas na forma da lei.

P.R.I.

São Paulo, 07 de maio de 2004.

AFONSO CELSO DA SILVA

Juiz de Direito

Comarca São Paulo Foro Central Cível

19ª Vara Cível

19º Oficio Cível

Pça. João Mendes Junior s/nº, 9º andar ‑ sala 905, Centro ‑ CEP 01501‑900 – São Paulo‑SP

3242‑0400 Rl 510

Processo nº 000.02.093644‑3

Ação: Crime Falimentar (arts. 186 a 190 do D.L. 7.661/45)

Autor: Ministério Público do Estado de São Paulo

Réu: Gelson Camargo dos Santos

PUBLICAÇÃO DE SENTENÇA

Em 07 de maio de 2004, faço pública em cartório a respeitável sentença de fls. 1306/1325.

Eu,________(Leonardo Fonseca de Oliveira), escrevente, subscrevi

CERTIDÃO

Certifico e dou fé que, nos termos do artigo 389 do Código de Processo Penal, procedi aos necessários assentamentos, referentes à respeitável sentença, nos livros e fichários, bem como que a mesma foi registrada em livro próprio sob nº 581/04, sob n.º 1124/04, às fls. 02/21. Nada mais. 11/05/2004. Eu, _____, Leonardo Fonseca de Oliveira, Escrevente Técnico Judiciário, digitei.

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