Estrelas de CPIs não conseguem se reeleger
4 de dezembro de 2000, 23h00
Um deputado federal apresentou à Câmara proposta de criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para “investigar a sonegação de impostos” diante da informação, divulgada pela Receita Federal, segundo a qual pessoas jurídicas e físicas teriam movimentado mais de trezentos bilhões de reais no ano de 1998, sem que tivessem declarado o imposto de renda.
Pretende o deputado que se dê prioridade a essa CPI, face à existência de uma “fila” onde nada menos que outras 28 Comissões aguardam instalação e segundo ele “a possibilidade de quebra de sigilo dentro de uma CPI permitirá obter informações necessárias para desvendar irregularidades”. Registra, ainda, que a CPI não precisa de autorização judicial para quebra de sigilo.
Essa questão merece ser analisada com mais atenção, ante o disposto no parágrafo 3º do artigo 58 da Constituição Federal, que dá a tais Comissões “poderes de investigação próprios das autoridades judiciárias, além de outros previstos nos regimes internos das respectivas Casas…”.
O mesmo dispositivo constitucional, todavia, determina que a CPI destina-se “a apuração de fato determinado e por prazo certo”.
Ao comentar o assunto, CELSO BASTOS (“Comentários à Constituição”, 4º Volume, Tomo I, pág. 300/301, Ed. Saraiva, 2a. Edição, S. Paulo, 1999), lembra que o funcionamento dessas comissões está regulado pela lei 1.579/52, até hoje em vigor e que:
“As CPIs não têm poderes assemelhados aos de um inquérito policial ou mesmo de um processo judicial. Seus destinatários devem ser exclusivamente as autoridades ou aquelas pessoas que, por delegação, exercem atividades próprias daquelas”.
Ensina ainda que “…carecem as CPIs de poder para constranger o particular à exibição de documentos e à prestação de informações.”
A instalação de CPIs para estudar o problema da sonegação fiscal não é novidade, embora a história demonstre que tem sido inútil e mais que isso: normalmente os seus proponentes ou relatores perdem as eleições futuras e desaparecem da vida política.
A Comissão criada em 1983 na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo para apurar os problemas da “carga tributária do ICM”, que foi presidida pelo ex-deputado Osiro Silveira, também tentou discutir a questão da sonegação, mas não tinha, na época, os poderes que a Constituição de 1988 deu a tais trabalhos. A questão, portanto, já é bem antiga.
Em 1997, o seja, na legislatura passada, a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro instalou uma comissão desse tipo, através da Resolução nº 599/97, cujo relator era o deputado Nando da Nacel. Emitiu intimações a inúmeras empresas, especialmente do ramo de automóveis e de supermercados, delas recolhendo cópias de contratos, documentos fiscais e outras informações.
Outra Comissão sobre o mesmo assunto foi constituída pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro pela Resolução 06/99, ou seja, na atual legislatura.
Esta chegou a intimar contribuintes do Estado de São Paulo, o que provocou o Comunicado CAT-37 , do Coordenador da Administração Tributária da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (Diário Oficial do Estado de 27/3/99, página 11) onde a autoridade paulista afirma que:
“…não são válidas quaisquer notificações para que contribuintes paulistas venham a depor ….considerando que apenas as autoridades públicas, e não os particulares, estão obrigados a prestar depoimentos, desde que tal ato não implique auto-incriminação…e que os contribuintes paulistas não estão obrigados a apresentar seus livros fiscais , contábeis ou comerciais à aludida Comissão, por estarem protegidos pelo sigilo…”
Ora, o próprio parágrafo 3º do artigo 58 da Constituição diz que as conclusões das CPIs devem ser “encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores”, enquanto a Lei 9.430/96, em seu artigo 83 diz que:
“…a representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária … será encaminhada ao Ministério Público após proferida decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente”.
Portanto, para se cumpra a Lei vigente, é indispensável que se lavre contra o acusado de sonegação um auto de infração onde estará lançado o crédito tributário e em relação ao qual o contribuinte tem, assegurado pelo artigo 5º inciso LV da Constituição, “o contraditório e ampla defesa”.
Acusações infundadas de sonegação fiscal não destroem apenas reputações, mas aniquilam empresas e afundam qualquer empreendimento.
Uma empresa de importação de veículos em São Paulo, no ano de 1995, sofreu um auto de infração por alegado “sub-faturamento” de cerca de 300 milhões de dólares. Na época, era um grupo econômico com cerca de mil empregados e que, indiretamente, gerava outros 5.000 empregos.
Embora o artigo 198 do Código Tributário Nacional garanta sigilo, a notícia da autuação foi amplamente divulgada pela mídia, inclusive com membros do Ministério Público concedendo entrevistas, onde chegaram a anunciar a prisão do empresário e o bloqueio de seus bens.
Todas essas notícias e entrevistas eram e são proibidas não só pelo CTN, mas principalmente pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição e pelo artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que ordenam a presunção da inocência.
Pois bem: a empresa multada em 1995 com 300 milhões de dólares foi absolvida pela própria Receita Federal, já na primeira instância administrativa, no final de 1997. Isto é: o Fisco reconheceu que a autuação era indevida.
Mas, como logo após a autuação, antes de qualquer julgamento, várias autoridades e funcionários, quebrando o sigilo e jogando no lixo a Constituição, divulgaram a multa, anunciaram prisão e bloqueio de bens, os donos da empresa, no dia seguinte, não tinham mais crédito nem no armazém da esquina e assim, com uma ação nefasta, desequilibrada, injusta e ilegal, a empresa fechou suas portas e milhares de empregos foram extintos.
Por tudo isso, vê-se que é muito fácil propor uma CPI, aparecer na mídia e dar à sociedade a falsa impressão de que se quer combater a sonegação fiscal, o que nós todos queremos e precisamos, quando o objetivo único e imediato está em cabalar votos para a próxima eleição.
Há um consolo: quase todas as “estrelas” das CPIs perdem as eleições depois que o povo vê que o espetáculo televisivo dos interrogatórios, dos constrangimentos, das “quebras de sigilo”, das prisões, era, efetivamente, apenas isso: espetáculo.
A sonegação fiscal precisa ser combatida, mas com técnica, não com fogos de artifício, holofotes ou entrevistas na imprensa. Se há indícios de sonegação, deve a Receita Federal, hoje dirigida por um ilustre geólogo bastante fotogênico, instaurar os procedimentos administrativos cabíveis, abrir as auditorias necessárias, lavrar os autos de infração, aplicar as multas e, se for o caso, representar ao Ministério Público nos casos de indícios de crime. Mas sempre respeitando a Constituição e as Leis deste País.
Enquanto estiverem apenas “jogando para a torcida”, os resultados serão ridículos, obrigando o tesouro a continuar nos espoliando a todos, com essa carga fiscal desumana, injusta e confiscatória.
E, como no caso da importadora de automóveis, todos perderão: os contribuintes, muitos dos quais não sucumbirão às pressões e aos prejuízos sofridos; o Erário, que pouco ou nada arrecadará, na medida em que autuações mirabolantes e retumbantes só fazem barulho e nada mais; e a sociedade brasileira, que vê grandes investidores sendo desestimulados a aplicar seu capital na produção.
Vocês já imaginaram como se sente um investidor internacional ou mesmo um empresário brasileiro, com a possibilidade de se ver depondo numa CPI, talvez presidida por um deputado arrogante, falastrão, ex-policial ou ex-apresentador de programas “mundo-cão” da tevê porno-escandalosa ?
Sonegação é coisa tão séria que só pode ser tratada por quem é do ramo, no caso, os Auditores Fiscais do Tesouro Nacional e os Agentes Fiscais de Rendas, profissionais tecnicamente bem preparados, bem treinados, de alto nível intelectual, aprovados em concursos extremamente rigorosos e que hoje, lamentavelmente, estão em boa parte reduzidos a digitadores de computador, conferentes de carga ou batedores de carimbo, tudo porque os cargos mais importantes do Fisco viraram moeda política, com nomeações de pessoas estranhas à carreira, algumas por causa de parentescos ou filiações partidárias.
Sem prestigiar auditores e agentes fiscais de rendas, sem se fazer a reforma tributária, sem colocar apenas funcionários de carreira ou especialistas de notórios conhecimentos técnicos na área tributária, que dê ao caso tratamento profissional adequado, a sonegação vai continuar. E nisso, não haverá CPI que dê jeito…
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