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Dinheiro pelo ralo

Continuação: Avanço da evasão fiscal agrava as contas da Previdência

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3 de dezembro de 1998, 23h00

Renúncia

O valor total da renúncia fiscal (R$ 7,9 bilhões), envolvendo diferentes segmentos econômicos ou categorias de segurados, foi calculado com base numa estimativa de contribuição da ordem de R$ 10,4 bilhões, em relação a R$ 2,6 bilhões efetivada, ou 25,52% do estimado. Acrescenta-se ao total das renúncias a perda calculada em R$ 150 milhões com o impacto negativo da CPMF.

O total das renúncia fiscal representou, no ano passado, 16,12% do valor total da arrecadação da Previdência Social, que atingiu R$ 47,9 bilhões. A soma das perdas de receitas correspondeu a 15,9% do valor total dos benefícios pagos em 1997 pelo INSS, que foi de R$ 48,6 bilhões.

Segundo o estudo da Anfip, os segmentos econômicos ou categorias de segurados que contribuíram para se chegar ao montante da renúncia fiscal na Previdência foram: Entidades Filantrópicas, Setor Rural, Segurados Especiais, Clubes de Futebol Profissional, Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) e Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte (Simples).

Filantropia – A renúncia fiscal dentre o grupo de entidades filantrópicas representou, no ano passado, cerca de R$ 2 bilhões, valor resultante das contribuições estimadas à Previdência, da ordem de R$ 2,7 bilhões, e as que foram efetivamente arrecadadas, de R$ 700 milhões. Essas entidades gozam de isenção da contribuição patronal para Seguridade Social.

Existem atualmente um total de 5.279 instituições filantrópicas registradas no País, sendo que 80% delas se concentram nas regiões Sul e Sudeste. Tal distribuição contribui para agravar ainda mais o desequilíbrio da renda nacional, visto que a renúncia fiscal beneficia mais, nesse caso, as regiões mais desenvolvidas do País. As isenções para a Previdência Social referem-se às obrigações patronais e são previstas na Constituição Federal. Mas, no caso das entidades beneficentes acabam sendo estendidas também aos trabalhadores.

“Tais recursos não arrecadados devido às isenções, após comprovados e estabelecidos critérios mais rigorosos para seu funcionamento, deveriam ser subvencionados pelo Tesouro Nacional, através do Orçamento Fiscal”, sugere o estudo da Assessoria Econômica da Anfip. “Seria uma forma de implementar políticas públicas, com base nos serviços efetivamente prestados e voltados para as entidades que realizem atividade de assistência social.”

Também a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou desvios no Orçamento da União em 1995 – conhecido como o escândalo da Máfia dos Anões – propôs, entre suas conclusões, uma redefinição das subvenções fiscais às chamadas entidades filantrópicas ou beneficentes. Além da reformulação, sugeriu uma limpeza nas entidades “fantasmas”, montadas meramente para obter favores a alguns parlamentares, seus familiares e amigos. Do mesmo modo que o estudo da Anfip, a CPI sugeriu que o Tesouro explicitasse as subvenções às entidades, eliminando-se as chamadas entidades “pilantrópicas”, como forma de reduzir a evasão fiscal.

Rural – Os segurados especiais do setor rural, englobando os produtores que exploram a atividade econômica em regime familiar, registrou num montante de renúncia fiscal avaliado pelo INSS em R$ 5,1 bilhões em 1977. O potencial de receita projetado no ano era de R$ 5,5 bilhões, quando o total arrecadado foi apenas R$ 385,1 milhões. O percentual da renúncia, portanto, atingiu a espantosos 93%, ao passo que se arrecadou apenas 7% do previsto.

Em relação à Contribuição sobre a Comercialização da Produção Rural, incidente sobre produtores divididos em pessoas físicas e pessoas jurídicas, em substituição à contribuição patronal incidente sobre a folha de pagamento. A exceção é para a agroindústria, que continua contribuindo com base na folha de salários, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Conforme as projeções da Diretoria de Arrecadação e Fiscalização do INSS, ajustada com a arrecadação efetivada, face ao Anuário Estatístico da Previdência Social/97, verificou-se que esse segmento apresentou uma renúncia fiscal de R$ 210,4 milhões ano passado. O valor é resultante da diferença entre a arrecadação estimada, de R$ 790,9 milhões, e o efetivamente observado, de R$ 580,4 milhões. Tais números demonstram que houve renúncia fiscal de 26,6% nesse segmento.

O estudo da Assessoria Econômica da Anfip demonstra que o segmento rural é um dos mais deficitários dentro do Orçamento da Previdência. Para uma despesa total de R$ 8,97 bilhões com benefícios nesse setor, no ano passado, houve uma receita direta de apenas R$ 965 milhões. Diante desse assombroso déficit, o Governo já está se mexendo para alterar o sistema de contribuições previdenciárias na área rural

A contribuição do setor rural não é apenas insuficiente, mas, da forma como vem sendo feita – um percentual sobre a comercialização, no caso do trabalhador rural – tem permitido enorme evasão fiscal. Quem afirma é o ministro da Previdência e Assistência Social, Waldeck Ornelas. “A contribuição previdenciária do setor rural vai mudar”, avisa. Ele informa que os estudos para reformular a contribuição do trabalhador e do produtor rural estão sendo executados em parceria com a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e a Confederação Nacional da Agricultura (CNA).

As novas alíquotas e a forma de contribuição ainda serão definidas, mas a principal meta do Governo, segundo o ministro Ornelas, é obter uma contribuição mais efetiva e menos sujeita à sonegação e fraudes. Segundo ele, o trabalhador rural com renda insuficiente para pagar a própria aposentadoria terá assegurado o benefício mesmo assim. O subsídio fiscal, nesse caso, de acordo com o ministro, será explícito e transparente. “A sociedade tem de saber o que está pagando e a quem”, diz.

Simples – O modelo de arrecadação do Simples, implantado para simplificar as atividades das empresas de pequeno e médio porte, acabou complicando de forma decisiva a receita da Previdência. Conforme estimativa da Diretoria de Arrecadação e Fiscalização do INSS, observou-se uma renúncia fiscal de R$ 364 milhões nas receitas de contribuições previdenciárias por conta desse modelo no ano passado. Estimava-se uma arrecadação de R$ 1,3 bilhão nesse universo de empresas e obteve-se, efetivamente, uma receita de R$ 936 milhões, ou seja, apenas 72% do que foi projetado.

Além da evasão verificada, a projeção nesse segmento – micros, pequenas e médias -, por conta do Simples, é de um grande déficit a médio e longo prazo. Segundo dados do INSS, a receita média mensal de arrecadação pelo Simples, durante 1997, foi de R$ 85 milhões – considerando onze meses, pois o modelo foi implantado em fevereiro. “Se dividirmos a receita pelo número de empresas, num total de 1,8 milhão, chegamos a uma média mensal de R$ 42,10 por empresa. Considerando que cada uma tem no mínimo um empregado e que ele é remunerado em um salário mínimo, ou R$ 130 atualmente, a Previdência já começa com um déficit de R$ 82,80 por segurado”, assinala o trabalho da Assessoria Econômica da Anfip.

De acordo com dados da Receita Federal, no âmbito do Imposto de Renda da pessoa jurídica, a renúncia fiscal provocada pelo Simples saltou de R$ 534 milhões em 1996 para R$ 1,3 bilhão em 1997. O modelo permitiu a desoneração de tributos federais, estaduais e municipais. No caso da evasão no campo das contribuições do INSS, o que se questiona é o fato de que as despesas com benefícios a empregados e empregadores desse segmento continuam crescendo, ao passo que a receita dele advinda tem caído constantemente, provocando assim um déficit no sistema.

Futebol – A contribuição estimada para o setor foi de R$ 60 milhões, enquanto que a efetivada foi de R$ 23,6 milhões em 1997. Isso significa 39,33% do total, gerando uma renúncia fiscal de R$ 36,4 milhões. Essa renúncia é possivelmente resultante de uma virtual omissão de dados reais pelas confederações, federações e empresas patrocinadoras sobre a realização de eventos/contratos e à modificação da base de cálculo substitutiva utilizada atualmente, segundo o estudo da Anfip.

A contribuição empresarial associação desportiva, destinada à Seguridade Social, corresponde a 5% da receita bruta decorrente dos espetáculos desportivos, em substituição à cota patronal, que é a remuneração paga ao empregado, empresário, autônomo e equiparados.

CPMF – O impacto negativo causado pela implantação da CPMF sobre a receita da Previdência foi da ordem de R$ 150 milhões/ano, conforme cálculos do INSS. A cobrança desse imposto sobre movimentação financeira resultou da redução nas alíquotas de incidência dos trabalhadores, de 8% para 7,82% e de 9% para 8,82%, e um aumento de 0,20% nos benefícios até três salários mínimos.

A pretendida elevação da alíquota da CPMF de 0,20% para 0,38%, incluída pelo governo no recente pacote fiscal enviado ao Congresso Nacional, redundará em impacto maior ainda nas contas da Previdência. Mas o valor desse aumento no prejuízo da arrecadação de contribuições ainda não foi calculado pelo INSS. De qualquer modo, resta a certeza: mais uma vez se estará retirando receitas da Previdência, ao passo que suas despesas crescerão, aprofundando-se o déficit desse setor.

Outras formas de evasão

O estudo técnico da ANFIP assinala ainda que devem ser acrescentados, aos valores resultantes da sonegação e renúncia fiscal, as reduções de receitas previdenciária promovidas pela legislação que concede tratamentos diferenciados a diversos segmentos. Esses artifícios, que resultam em grandes perdas para a Previdência, ainda não estão quantificados, mas os exemplos existem aos montes. Alguns deles:

– Opção, por parte das empresas, de recolher a contribuição instituída pela Lei Complementar 84/96 sobre o salário base do trabalhador autônomo em substituição àquelas sobre o total da remuneração paga (de 15% da remuneração recebida, para 20% do salário base, com opção sempre pelo menor.

– Salário de contribuição inferior ao salário mínimo mensal versus benefícios igual ao salário mínimo. Isto significa que o salário mínimo é estabelecido por mês, dia ou hora, qualquer empregado poderá prestar serviço por alguns dias da semana ou por poucas horas diárias com seu salário contribuição inferior ao mínimo recolhendo para a Previdência somente o total recebido. Mas na hora da concessão do benefício esse trabalhador recebe da Previdência Social o salário mínimo integral.

– A Cooperativa de Trabalho, cuja contribuição chega a ser reduzida em até 80%, como já foi mencionado no presente texto.

– Redução da alíquota da contribuição patronal de 20% para 15% sobre as remunerações pagas aos trabalhadores avulsos.

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Lei 9.613/98

Continuação: Comentários à Lei de Lavagem de Capitais (9.613/98)

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27 de agosto de 1998, 0h00

Princípio da autonomia ou independência do processo penal (art. 1º, inc. II): o processo pelo crime de lavagem de bens, direitos e valores independe do processo e julgamento do crime anterior (do qual derivam tais bens, valores ou direitos), mesmo que praticados em outro país. Se descoberta a autoria de tais crimes precedentes, para além da configuração de um concurso material de crimes, teremos o instituto da conexão (julgamento único, processo único), tendo “vis atrativa” o juízo da infração mais grave.

Denúncia (art. 2º, § 1º): a denúncia pelo crime de lavagem deve ser instruída com indícios suficientes do crime antecedente (tráfico de droga, de armas, contrabando etc.). É preciso que se examine a “justa causa” da ação, que se revela em tais indícios. Não havendo justa causa, impõe-se a rejeição da denúncia. Se o delito de “lavagem” de bens é um crime derivado, porque pressupõe a existência de outro precedente, nada mais lógico que exigir a demonstração (ainda que indiciária) da origem ilícita de tais bens. Cuida-se do “fumus boni iuris”, na parte relacionada com a existência do crime.

Autonomia da punibilidade (art. 2º, § 1º): o crime de lavagem de capitais é punível ainda que desconhecido o autor do crime anterior, ou isento de pena ou ainda que o crime anterior tenha sido cometido no estrangeiro. Não importa o local do crime anterior. Não é preciso que se descubra sua autoria. O que a lei exige, em suma, para a processabilidade do crime de lavagem é unicamente a demonstração (ao menos indiciária) de que houve um crime precedente (dentre aqueles catalogados no art. 1º). Com isso se constata a origem ilícita (“suja”) do capital.

Inaplicação do art. 366 do CPP ( art. 2º, § 2º): a proibição de aplicação do art. 366 para os crimes de lavagem de bens é absurda e inconstitucional (v. Damásio E. de Jesus, artigo ainda inédito). E flagrantemente contraditória com o disposto no art. 4º, § 3º, da mesma lei. Revela, nesse ponto, altíssimo despreparo técnico e jurídico do legislador. Que legisla, cada vez mais freqüentemente, sob a égide da emoção, produzindo o que se denomina Direito Penal “simbólico”.

Da inconstitucionalidade da proibição: cuida referido artigo (366) da suspensão do processo decorrente da citação por edital. O direito de ser informado da acusação é impostergável (v. Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 8º, que tem “status” constitucional, por força do art. 5º, § 2º, da CF). Todo acusado tem esse direito. Faz parte da ampla defesa. É garantia constitucional, que não pode ser suprimida pelo legislador infraconstitucional. Conclusão: o art. 2º, § 2º, da Lei 9.613/98 ganhou vigência mas não possui validez (Ferrajoli). Não é juridicamente válido. É um nada jurídico.

Contradição autofágica: se no art. 2º, § 2º, o legislador prescreveu a inaplicabilidade do art. 366 do CPP, no art. 4º, § 3º, está prevista sua incidência. É uma contradição inexplicável. E autofágica em relação àquele preceito. Enquanto o desaparecido (citado por edital) não comparecer pessoalmente para responder ao processo, nenhum pedido de restituição seu será conhecido. A impossibilidade de se conhecer qualquer pedido de restituição, enquanto o sujeito está desaparecido, é um estímulo a mais para que ele compareça em juízo e responda pessoalmente ao processo.

Fiança (art. 3º): constitui erro crasso o de proibir a fiança nesses crimes. Pelo contrário, aqui é que deveríamos exigir fiança de alto valor. O legislador, com o intuito de (“simbolicamente”) endurecer, proíbe a fiança. Isso implica que o juiz, quando for o caso, conceda liberdade ao acusado sem fiança (mesmo porque é inconstitucional a proibição de liberdade sem fiança). Equívoco lamentável do legislador. Mais uma demonstração do seu despreparo e do total desconhecimento dos limites legiferantes ordinários.

Liberdade provisória (art. 3º): a proibição de liberdade provisória, prevista neste art. 3º., segue a mesma linha equivocada da proibição da fiança. É um erro lamentável tentar conter a criminalidade com corte de direitos e garantias fundamentais. E além disso, obviamente, inconstitucional. Salvo o flagrante, toda prisão deve ser fundamentada e decretada por “juiz”. A regra é a liberdade. Por força do inc. LXI do art. 5º da CF só cabe prisão por ordem escrita e fundamentada da autoridade competente. A exigência de fundamentação da prisão afasta a possibilidade de o legislativo, com seus critérios abstratos, impor a prisão. O inc. LXI mencionado procura evitar a “ditadura” do legislativo, exigindo fundamentação do juiz em cada caso concreto. Na iminência do século XXI torna-se impensável o restabelecimento do despótico “Bill of Attainder”. Ninguém pode ser privado da liberdade “sem o devido processo legal”. Nem o judiciário pode pretender impor uma política autoritária (negando a liberdade onde o legislador permite – inc. LXVI), nem tampouco pode o legislativo supor que tem legitimidade para substituir o juiz na decisão de decretar ou não uma prisão, em cada caso concreto .


Direito de apelar em liberdade (art. 3º): é a regra. O Juiz somente pode mandar prender se presentes os requisitos da preventiva. É um avanço (comparando-se com o ultrapassado art. 594 do CPP). De qualquer modo, o certo é desvincular o direito de apelar da prisão cautelar , tal como reconheceu recentemente o STJ , em julgamento da Sexta Turma.

Apreensão e seqüestro de bens (art. 4º): os bens ilícitos encontrados (do acusado ou em seu nome) serão apreendidos (CPP, art. 240 e ss.) ou seqüestrados (podem ser seqüestrados os bens imóveis adquiridos com os proventos da infração ou os bens móveis que não podem ser apreendidos – v. CPP, arts. 125 e 132). É medida cautelar “inaudita altera pars”, valendo o chamado contraditório diferido. Se a ação penal não for intentada em cento e oitenta dias, a medida cautelar perde seu efeito. Caso o acusado venha a ser condenado, haverá confisco dos seus bens (cautelarmente assegurados). Caso o acusado seja absolvido ou extinta a punibilidade, levanta-se o seqüestro (art. 131 do CPP).

Liberação “antecipada” dos bens, direitos e valores apreendidos: o § 2º do art. 4º diz: “O juiz determinará a liberação dos bens, direitos e valores apreendidos ou seqüestrados quando comprovada a licitude de sua origem”. É preciso que seja bem compreendido esse dispositivo, se se pretende dar-lhe algum tipo de aplicação. Sua literalidade poderia dar ensejo a uma interpretação completamente absurda e inconstitucional, além de autoritária e seriamente perigosa, e que consistiria na exigência de inversão do ônus da prova (com flagrante violação ao princípio da presunção de inocência). Dito de outra maneira: tem-se a impressão, pelo que está escrito na lei, que os bens só seriam liberados, em qualquer hipótese, quando o acusado comprovasse sua licitude.

Estaríamos nesse caso diante de interpretação inconstitucional e totalmente errônea, além de tirânica. O que o citado parágrafo, no máximo, poderia significar seria o seguinte: durante o curso do processo, tendo havido apreensão ou seqüestro de bens, se o acusado, desde logo, “sponte sua”, já comprovar sua licitude, serão liberados imediatamente, sem necessidade de se esperar a decisão final. Considerando-se a apreensão ou o seqüestro como medida cautelar, a libertação imediata seria uma medida de contra-cautela, reparadora da injustiça ocorrida pouco antes (no momento da privação dos bens). Essa seria a única interpretação possível para o texto legal em análise e mesmo assim com a seguinte observação: o dever de devolução imediata dos bens ao acusado, desde que prontamente se constata que não são de origem ilícita, é do próprio juiz. Nada impede, no entanto, que o interessado apresente prova da legalidade de tais bens.

Supor que a letra da lei permite mais que isso alcança-se a inconstitucionalidade e a arbitrariedade. Ninguém está autorizado a fazer ruir um princípio constitucional conquistado depois de uma luta secular. No regime democrático de direito a ninguém está legitimamente facultado discursar pelo restabelecimento das regras da era da Inquisição. O tempo da caça às bruxas já passou. O Direito está secularizado. Os princípios e dispositivos constitucionais são vinculantes. O Estado moderno não pode, tal como fazia o Monarca Absolutista dos séculos XVI ou XVII, apropriar-se dos bens dos particulares sem seguir o devido processo legal (fundado na presunção de inocência). Cabe ao Estado a prova de que os bens apreendidos são ilícitos. Sua impotência e desorganização não podem ser razões para a inversão do ônus da prova. O Estado de Direito não se coaduna com tamanha violência, tão despótica quanto à do Antigo Regime.

De certo modo, no diploma legal enfocado, há uma inversão do ônus da prova, mas é uma inversão que surge dentro do contexto de uma medida de contra-cautela, saneadora de um ato injusto precedente. Caso o interessado (proprietário ou possuidor dos bens apreendidos ou seqüestrados) não possa ou não queira prontamente comprovar a licitude dos seus bens, deve-se aguardar a sentença final. Sendo absolutória, levanta-se o seqüestro (CPP, art. 131) ou a apreensão. Sendo condenatória, confisca-se tais bens.

Prorrogação das medidas cautelares (art. 4º, § 4º): as medidas cautelares penais e pessoais podem ser prorrogadas e executadas no momento mais oportuno, desde que haja determinação judicial. Isso quando o cumprimento imediato delas possa comprometer as investigações.

4 – Da Responsabilidade Administrativa

A lei em questão, visando prevenir a lavagem de capitais, criou não só uma série de ilícitos penais, como vimos, senão também um enorme conjunto de obrigações. E sujeitam-se às obrigações administrativas previstas nos artigos 10 e 11 as pessoas jurídicas e físicas que tenham como atividade principal ou acessória a captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros, compra e venda de moeda estrangeira ou ouro ou títulos ou valores mobiliários etc. (bolsa de valores, bancos, seguradoras, corretoras, administradoras de cartões de crédito, imobiliárias, “leasing”, “factoring”, comerciantes de jóias, ouro, objetos de arte etc. (art. 9º). Os cassinos estão fora. Não foram previstos pela lei, porque no Brasil, por enquanto, são ilícitos.


Todas as pessoas jurídicas que aparecem como destinatárias da lei 9.613/98, doravante, devem conferir especial importância a seus dispositivos legais. Impõe-se conhecê-los, estudá-los e estruturar programas de prevenção, para que não incidam em sanções administrativas ou até mesmo penais, sem contar que qualquer conduta ilícita também pode implicar responsabilidade civil. De outro lado, só a divulgação do envolvimento de uma empresa ou instituição com a lavagem de capitais, ainda que tudo tenha ocorrido involuntariamente, já é o suficiente para denegrir profundamente sua imagem e reputação dentro do mercado.

As obrigações específicas estabelecidas na lei sob análise são basicamente as seguintes: a) identificação dos clientes; b) manutenção dos cadastros dos clientes; c) manutenção de registros de algumas transações; d) atendimento das requisições do COAF (órgão novo, previsto na lei, que terá por função o controle de atividades financeiras); e) dever de vigilância em relação às operações financeiras ou comerciais “suspeitas”; f) comunicação dessas operações “suspeitas” ou das excedem certo limite aos órgãos competentes.

O descumprimento de qualquer uma dessas obrigações sujeita a pessoa jurídica assim como seus administradores a várias sanções (advertência, multa, inabilitação temporária e cassação de funcionamento), que serão impostas respeitando-se o devido processo legal.

As autoridades competentes (Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários e Susep) assim como o COAF se encarregarão da aplicação de tais sanções. Por ora, por falta das instruções referidas nos artigos 10 e 11, essas sanções administrativas não podem ser aplicadas. Mas não se pode confundir a responsabilidade administrativa com a penal: esta última já está em vigor. Desse modo, a parte penal pode ter incidência em qualquer momento.

5 – A questão da quebra do sigilo bancário

Desde a Convenção da ONU de 1988 (passando pela Recomendação da OEA, Regulamento Modelo etc.) salienta-se que o sigilo bancário não pode ser obstáculo para a apuração do crime de lavagem de capitais. A questão delicada é saber se esse sigilo é um mero instrumento legal de conveniência conjuntural ou seria expressão da personalidade e da intimidade do ser humano. Doutrinariamente hoje concebe-se o sigilo bancário como um direito-dever no sentido de que não só se deve observar tal sigilo, senão também que se deve agir para protegê-lo diante de todas as pretensões ilegítimas, principalmente do Estado, de sua quebra.

No Direito brasileiro o sigilo bancário vem constitucionalmente protegido (art. 5º, incisos X e XII), mas sabe-se que não se trata de um direito absoluto. Das hipóteses de sua quebra cuida a lei 4.595/64, que tem força de lei complementar. Além do Poder Legislativo e de uma CPI, somente o Judiciário pode autorizar tal quebra, que possui a natureza de uma medida cautelar. Logo, deve seguir o devido processo legal (justa causa, decisão fundamentada, juiz competente, contraditório diferido etc.).

A lei 9.613/98, aqui comentada, no nosso modo de ver, surrealistamente, nem alterou o quadro legal vigente (aliás, diga-se de passagem, não poderia fazê-lo), nem tampouco deixou de tomar qualquer providência a respeito. Diante de um verdadeiro “fogo cruzado” (pressão de órgãos internacionais, de um lado, para se facilitar a quebra do sigilo bancário e a necessidade de respeitá-lo, de outro, porque entre nós é direito constitucional) a lei saiu “pela tangente” (tentando agradar a gregos e troianos): criou a obrigação para as entidades financeiras e bancárias de comunicar às autoridades competentes (Banco Central, no caso dos bancos) as operações suspeitas ou que excedem a um certo limite. Mas o Banco Central, convenhamos, já tem acesso a todas as operações bancárias e, por sua vez, sendo um Banco, também possui o dever legal de sigilo.

Até aqui, como se percebe, não se pode propriamente falar em quebra do sigilo bancário. É bem verdade que, no entanto, não é o Banco Central o órgão encarregado de investigar o delito de lavagem. Para isso foi prevista a criação do COAF (ainda não instalado). Este, entretanto, para ter acesso a qualquer operação bancária só poderá fazê-lo com autorização judicial (art. 10, III, da Lei em análise). Se alguém do Banco Central quebrar o sigilo e revelar qualquer operação bancária para o órgão (policial-fazendário) que acaba de ser criado (mas ainda não instalado, repita-se), haverá crime, nos termos da lei 4595/64. A disciplina legal do assunto, como se vê, diante de tantas forças contrárias, acabou criando uma situação nada ortodoxa.

Autores

  • é mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da USP, professor doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madri (Espanha) e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG.

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