Execução penal

Prisão domiciliar de ofício para mãe presa ainda é exceção no país

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8 de outubro de 2017, 7h18

Os juízes de execução penal podem conceder, de ofício, tornozoleira eletrônica a presas com filhos menores. A medida é possível graças a uma interpretação conjunta dos artigos 318 do Código de Processo Penal e 116 da Lei de Execuções Penais. Apesar disso, não é muito comum em função de uma cultura punitivista e de pressões por encarceramento como efetivação da segurança pública. A avaliação é de profissionais do Direito ouvidos pela ConJur.

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Brasil tem 44 mil presas, segundo dados de 2016.
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Dados de 2016 enviados pelos estados ao Departamento Penitenciário Nacional (Depen) mostram que o Brasil tem mais de 44 mil presas, mas não há nenhum levantamento a respeito de quantas delas têm filhos.

O dispositivo do CPP garante a prisão domiciliar a mulheres com filhos menores de idade. Já a norma da LEP autoriza ao juiz modificar as condições estabelecidas conforme as circunstâncias.

Segundo o Infopen de dezembro de 2014, das mais de 37 mil mulheres presas no Brasil, 64% foram encarceradas por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Ainda de acordo com o levantamento, o país ocupa quinto lugar no ranking mundial de encarceramento feminino, atrás dos EUA (205,4 mil), da China (103,7 mil), Rússia (53,3 mil) e Tailândia (44,7 mil).

"Acontece que muitos juízes esperam a provocação do advogado da condenada e muitas sequer sabem desse direito. Se não houver pedido da presa, nada fazem", afirma o criminalista João Martinelli. De acordo com ele, mesmo que o equipamento não esteja disponível, o julgador não pode negar esse direito. "Porque a falha é do Estado, não da pessoa condenada."

Professor de Direito Penal, Martinelli explica que, apesar de a lei de execução penal não dizer expressamente que o juiz poderá conceder de ofício a tornozeleira eletrônica, a interpretação da norma junto com os preceitos da Constituição Federal e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos assinados pelo Brasil permite ao magistrado agir quando houver privação indevida da liberdade.

Apesar de parecer uma equação exata, Luiz Carlos Valois, juiz da Vara de Execuções penais de Manaus, afirma que a concessão de tornozeleira de ofício não é tão simples. Em muitos casos, o magistrado não tem documentos que comprovem a situação da presa. Daí que ele reforça a importância da atuação do Ministério Público como órgão que promove a Justiça e a atenção da defesa, seja ela privada ou pública, em acompanhar o processo.

“A mulher pode alegar, mas o juiz dificilmente vai conceder um direito, que tem um requisito, que é o fato de ela ser mãe de um menor dessa idade, sem comprovação. Se a lei pede a comprovação de ela ser mãe, o juiz deve ter o documento que comprove. Isso acontece porque, na condenação, a pena é a pena privativa de liberdade. Essa é a pena principal e a prevista pela lei. A medida de prisão domiciliar é uma medida alternativa ao encarceramento”, explica Valois.

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Brasil não sabe quantas de suas presas são mães.

Isso ocorre, continua o juiz, porque o funcionamento da execução penal é diferente do processo habitual, pois, na primeira, a regra é a prisão, enquanto que na segunda a regra é a liberdade.

“Na minha atividade jurisdicional tenho concedido prisão domiciliar, com tornozeleira eletrônica, inclusive para presas do regime fechado, mas ouvindo o Ministério Público. Obviamente, não me vinculando ao seu parecer, mas ouvindo", relata Valois.

“A ausência de condições mínimas deve servir de incentivo para o deferimento da medida cautelar, pouco importando, sequer, a efetiva existência de tornozeleiras. A questão se inverte: o Estado não cumpre suas obrigações e quer impor humilhação no cárcere, quando deve ser o contrário”, afirma o juiz catarinense Alexandre Morais da Rosa, para quem a prisão busca mais humilhar do que qualquer outra questão.

Para o advogado criminalista Welington Araújo de Arruda, a concessão de tornozeleira por decisão de ofício parte de uma comparação simples do modelo de aplicação da lei: se serve para prender, porque não para soltar? E faz uma comparação: “O juiz das execuções, ao pegar o caso de determinado preso, que foi condenado a 2 anos de prisão no regime aberto, e vê que ele tem outra condenação que o obriga a cumprir mais 3 anos também no regime aberto por outro delito, soma as penas de ofício e tranca o cara”

O também criminalista José Trad complementa esse raciocínio lembrando que a prisão domiciliar para mulheres com filhos menores surge de uma interpretação da lei de que a reclusão atingiria a criança. “Que, nessa idade de desenvolvimento, precisa da figura da mãe na formação da sua personalidade”, diz.

“Sabendo que o juiz pode agir de ofício e que o sistema penitenciário brasileiro se encontra num estado de coisas inconstitucional, as circunstâncias recomendam que os magistrados decretem a medida”, avalia o delegado da Polícia Civil do Paraná Henrique Hoffmann. Ele diz ainda que esse tipo de medida não é obrigatória para todos os casos, mas destaca que decisões garantindo a concessão da tornozeleira não significam impunidade, mas a execução da pena mais proporcional.

Falta infraestrutura
Arruda explica que, como a maioria das mulheres são presas por tráfico de drogas, a magistratura usa o argumento do crime equiparado ao hediondo para mantê-las presas, mesmo não havendo condições adequadas. Diz ainda que os juízes negam os pedidos de prisão domiciliar alegando que o presídio tem espaço adequado para as crianças recém-nascidas e que os maiores já estão sob os cuidados dos familiares.

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Minoria dos presídios brasileiros têm instalações para que mulheres cuidem de seus filhos no cárcere.
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O Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias) de dezembro de 2014 mostrou que dos 1,4 mil estabelecimentos penais do país, somente 48 têm cela ou dormitório adequado para gestantes.

O levantamento também apontou que existem berçários ou centros de referência materno-infantil em 32% das unidades femininas e 3% das mistas.

Já as creches são encontradas 5% das unidades femininas. O atendimento médico também deixa a desejar, segundo o Infopen, pois há apenas 37 ginecologistas para toda a população prisional feminina brasileira e existem módulos de saúde em 37% das unidades prisionais do Brasil — 52% das unidades femininas e 42% das mistas — e em 25% de estabelecimentos para presos provisórios.

Dentro desse contexto, a pesquisa do Ministério da Justiça apontou que, até junho de 2014, 1,9 mil crianças viviam nos estabelecimentos prisionais do país. Das 342 crianças com até 6 meses de idade, apenas 121 estavam em presídios com berçário ou centro materno-infantil.

Ao todo, o Brasil, segundo informações da pasta, tem 821 Cadeias Públicas, 470 Penitenciárias (417 masculinas e 53 femininas), 74 Colônias Agrícolas ou Industriais, 64 Casas do Albergado (57 masculinas e sete femininas), 33 Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (28 masculinos e cinco feminino) e 16 Patronatos.

“Em muitos casos, falta sensibilidade para soltar”, diz Trad, complementando que, atualmente, há pouco espaço para medidas desencarceradoras, mesmo se previstas em lei. “E negam sob a alegação que aquele presa específica cometeu um crime grave e colocá-la em prisão domiciliar seria um risco à Ordem Pública social”. complementa Arruda.

“A maioria esmagadora sequer cometeu crime com violência, uma vez que em média 80% das mulheres está presa por crimes relacionados às drogas ou, por esse tipo de crime, foi presa e condenada injustamente por causa do envolvimento do companheiro”, conta Valois.

O criminalista Bruno Salles Pereira Ribeiro afirma que as medidas alternativas à prisão não são usadas em um total satisfatório, apesar de os dados mostrarem a falta de infraestrutura do sistema prisional. Isso porque o Judiciário reagiu vigorosamente contra todas as iniciativas dos últimos anos que fomentem o desencarceramento. “Vide o novo regime de cautelares que simplesmente foi jogado de canto”, diz.

“Só indefere a medida cautelar quem aguarda um milagre ou gosta de impor sofrimento inconstitucional, dado o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional. O problema é o rebote que o magistrado sofrerá por uma população que se satisfaz, muitas vezes, em silêncio, com o sofrimento alheio, no império do sadismo jurídico, retórica e cinicamente adornado na Defesa Social”, acrescenta Morais da Rosa.

Já Hoffmann culpa a “cultura de inércia” na fiscalização da execução penal, a sobrecarga de trabalho e posição ideológica mais punitivista de alguns magistrados. Porém, ele conta que os delegados de polícia podem contribuir para mudar esse cenário, pois podem sugerir a prisão domiciliar.

João Martinelli diz que a cultura jurídica brasileira ainda está presa a um legalismo puro, que impede o juiz de reconhecer preceitos constitucionais acima das leis ordinárias. "Muitos sequer fazem referência aos tratados internacionais de direitos humanos. Há verdadeiro desprezo pelos princípios constitucionais.”

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