Opinião

Cuidado no rateio dos custos de empregados entre empresas do grupo

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7 de maio de 2017, 7h19

 No contexto de grandes grupos econômicos, é comum a figura do rateio de despesas[1], que ocorre quando as empresas dividem entre si custos de determinadas atividades, as quais são desenvolvidas por uma empresa mas acabam beneficiando as demais.

O rateio geralmente envolve atividades de natureza “administrativa” como logística, departamento financeiro, departamento jurídico, RH, propaganda, tecnologia da informação etc. Financeiramente, pode ser bastante eficiente que uma empresa concentre um departamento de RH, por exemplo, que possa atender as demandas das demais empresas do grupo, ao invés de cada empresa ter o seu próprio RH interno.

Durante muito tempo, por se tratar de uma figura atípica, as Autoridades Fiscais da Receita Federal do Brasil (“RFB”) se negaram a reconhecer que o rateio implica somente a simples alocação de despesas em comum entre empresas, com os respectivos reembolsos. No início, tratavam os reembolsos como remuneração de serviços prestados, exigindo a tributação correspondente.

Mas, diante da mecânica desse instrumento, as Autoridades Fiscais admitiram que o rateio deveria ser tratado de forma particular, sem gerar impactos na esfera da tributação, desde observados determinados requisitos[2], tais como: formalização mediante contrato, com prazo certo e critérios de rateio objetivos, formalização dos reembolsos mediante a emissão de notas de débito individualizadas, rateio apenas de atividades não relacionadas ao “core business”, ausência de margem de lucro/remuneração nos reembolsos, entre outros.

Contudo, o reconhecimento da validade do rateio como instrumento jurídico próprio pelas Autoridades Fiscais não significa que as empresas que se valem desse mecanismo estão imunes a questionamentos. Pelo contrário: devem se certificar de que todos os requisitos exigidos pela RFB estão sendo devidamente atendidos.

Nesse contexto, uma situação que merece especial atenção das empresas é o rateio dos custos de empregados, isto, da própria folha de salários.

Note-se que, para fins trabalhistas, é plenamente aceitável que um mesmo empregado exerça atividades para diversas empresas do grupo, sem caracterização de mais de um contrato de trabalho[3]. Esse tipo de rateio, sendo lícito perante à legislação trabalhista, também deveria ser aceito pelas Autoridades Fiscais. Basta que as empresas tenham efetivo controle sobre esses empregados e que haja critérios razoáveis de compartilhamento[4].

Porém, um caso recentemente julgado pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”) mostra a problemática envolvida nesse tipo de rateio. No Acórdão nº 2401-004.672, de 15.3.2017[5], o CARF analisou uma autuação lavrada pela RFB contra uma empresa para cobrança de contribuições previdenciárias sobre valores pagos a outra empresa do grupo a título de reembolso por serviços administrativos.

É importante mencionar que, contabilmente, a empresa autuada lançou os reembolsos pagos como despesas a débito sob a rubrica de “pagamento de salários/ordenados, horas extras, adicional noturno, férias e décimo terceiro”. Com base nesses lançamentos, a RFB entendeu que a empresa autuada teria ela própria realizado o pagamento de remuneração a empregados e deixado de considerar tais valores na base de cálculo das contribuições previdenciárias.

Na realidade, a empresa autuada tinha firmado contrato de rateio com outra empresa pertencente ao seu grupo econômico, estabelecendo a divisão de despesas incorridas com serviços administrativos. A par do contrato, das notas de débitos e das demais evidências apresentadas, as Autoridades Fiscais entenderam que os reembolsos efetuados pela empresa autuada teriam natureza de remuneração, pautando-se em especial nos lançamentos contábeis.

Para fundamentar a cobrança, as Autoridades Fiscais ainda se valeram do artigo 123 do Código Tributário Nacional (“CTN”), para alegar que o contrato de rateio firmado seria inoponível ao Fisco, não podendo alterar a responsabilidade pelo pagamento das contribuições previdenciárias.

Ao examinar a situação, o CARF corretamente cancelou a autuação, reconhecendo que os empregados que prestaram os serviços administrativos tinham contrato de trabalho com outra empresa do grupo, a qual, por sua vez, recolheu todos os encargos e contribuições devidos, e que, portanto, os valores pagos pela empresa autuada não teriam natureza de remuneração, mas sim de mero reembolso.

Ainda, o CARF bem destacou que seria inaplicável o artigo 123 do CTN, porque o contrato de rateio não teria alterado a responsabilidade pelo recolhimento de quaisquer tributos. Por fim, destacou que os lançamentos contábeis realizados erroneamente pela empresa autuada não teriam o condão de transformar o reembolso em remuneração. A contabilidade é um meio de prova, mas não é o único e, assim, não poderia servir, de forma desconexa com a realidade, para fundamentar a cobrança.

Esse caso mostra que todo cuidado é pouco quando se fala em rateio de despesas, em especial de custos relacionados a empregados. É imprescindível que, além dos requisitos gerais exigidos para garantir a validade do rateio, as empresas se certifiquem de toda documentação fiscal e contábil, para evidenciar, em caso de fiscalização, que há empregados contratados por uma empresa e que apenas o custo financeiro dessa mão-de-obra é compartilhado, sem prejuízo do cumprimento de todas as obrigações legais pela empresa empregadora.

Por fim, é importante que as empresas incluam no rateio apenas os empregados que de fato pertencem a setores/departamentos administrativos, na medida em que, segundo a jurisprudência, o rateio não comporta despesas relacionadas a atividades-fim, mas apenas meio. No caso dos empregados que desenvolvem atividades do “core business”, a alternativa seria efetuar a contratação de uma prestação de serviços com cobrança de preço efetivo, e arcar com a respectiva tributação incidente (ISS, IRPJ/CSL, PIS/COFINS) — esse tratamento encontra agora respaldo, inclusive, pela própria legislação trabalhista recentemente aprovada que a princípio autoriza a terceirização de atividade-fim.

O rateio de despesas pode e deve ser utilizado, mas com os cuidados necessários para evitar que um mecanismo que deveria gerar apenas eficiência financeira possa expor as empresas a riscos tributários e previdenciários.

 


[1] Também conhecido como compartilhamento (cost sharing).

[2] Na realidade, os requisitos impostos pelas Autoridades Fiscais surgiram no âmbito da própria jurisprudência. A RFB pacificou seu entendimento, refletido, em especial, na Solução de Divergência nº 23, de 2013, editada pela Coordenação-Geral de Tributação (“COSIT”). Vale observar que a exigência de observância a requisitos como condição de validade do rateio pretende garantir que as partes formalizem o rateio, observem critérios objetivos e realizem os reembolsos de maneira controlada, deixando assim pouca margem para abusos das empresas; afinal, sem muito controle, as empresas poderiam alocar quaisquer custos como bem entendessem e realizar repasses de valores sem maiores consequências.

[3] Segundo o entendimento do Tribunal Superior do Trabalho refletido na Súmula nº 129: “A prestação de serviços a mais de uma empresa do mesmo grupo econômico, durante a mesma jornada de trabalho, não caracteriza a coexistência de mais de um contrato de trabalho, salvo ajuste em contrário”.

[4] Por exemplo, um descritivo das horas trabalhadas para cada empresa (tarefas ou projetos desenvolvidos para cada empresa), ou mesmo um percentual definido entre as partes sobre a remuneração desse empregado.

[5] 4ª Câmara da 1º Turma Ordinária da Segunda Seção de Julgamento. A decisão foi unânime.

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