Diário de Classe

As profecias da doutrina sobre o
fetiche pelos precedentes no Brasil

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5 de novembro de 2016, 7h01

Spacca
“Daí a necessidade de lembrar — e isso é extremamente relevante para a discussão da problemática brasileira — que a autoridade do precedente vai depender e será limitada aos fatos e condições particulares do caso que o processo anterior pretendeu adjudicar. Parece, destarte, que tal circunstância assume relevância para uma comparação com o que ocorre no Direito brasileiro, onde a expressiva maioria das decisões judiciais se baseia em ‘precedentes sumulares’ e ‘verbetes jurisprudenciais’ retirados de repertórios estandardizados, muitos de duvidosa cientificidade, que acabam sendo utilizados, no mais das vezes, de forma descontextualizada. Isso, porém, não ocorre no Direito norte-americano, pela relevante circunstância de que lá o juiz necessita fundamentar e justificar detalhadamente a sua decisão”.

“Ou seja, na common law não basta dizer, como se faz aqui, que a solução da controvérsia é x, com fundamento no precedente y, isto porque o precedente deve vir acompanhado da necessária justificação (contextualização). Isto significa dizer que, vingando a tese, surgirá no Brasil um perigoso ecletismo: no sistema da common law, o juiz necessita fundamentar e justificar a decisão. Já no sistema da civil law, basta que a decisão esteja de acordo com a lei (ou com uma súmula). Assim, acaso vencedora a tese vinculatório-sumular, bastará que a decisão judicial esteja de acordo com um verbete sumular para ser válida…! Nessa perspectiva, haverá no sistema jurídico brasileiro o poder discricionário da common law sem a proporcional necessidade de justificação”.

“O precedente, para ser aplicado, deve estar fundado em um contexto, sem a dispensa de profundo exame acerca das peculiaridades do caso que gerou o aludido precedente. Além disto, o próprio precedente deverá ser examinado no contexto da posição (atual) que o Tribunal tem sobre a referida matéria. Numa palavra: precedentes não são significantes primordiais-fundantes (de cariz aristotélico-tomista), nos quais estariam contidas as universalidades de cada ‘caso’ jurídico, a partir das quais o intérprete teria a simplista tarefa de ‘subsumir’ o particular…!”

Este é um texto que poderia ter sido escrito hoje. Entretanto, ele é dos anos 1990, quando o professor Lenio Streck travou intensa batalha contra a institucionalização das súmulas vinculantes. Sua luta não foi contra as “súmulas em si”, como ele dizia, mas contra a transformação das súmulas e de todo tipo de verbete (ou tese) em significantes primordiais fundantes, isto é, em textos que adquirem vida própria, separando-se de seu DNA. Relendo os fragmentos acima transcritos (há várias versões do texto, que pode ser relido aqui), nota-se que o assunto não evoluiu. Ao contrário. Lendo o artigo escrito pelo ministro Roberto Barroso e por Patrícia Mello, nesta ConJur, intitulado Trabalhando com uma Nova Lógica: a Ascensão dos Precedentes no Direito Brasileiro, constata-se que Lenio Streck tinha razão.

A questão, aqui, não é discutir o conceito de precedente ou o papel que as súmulas vieram a desempenhar depois de aprovada a sua vinculação, com a EC 45, em 2004. Mais importante é compreender que o problema filosófico subjacente continua não descoberto. Antes mesmo de Streck, o saudoso Warat já alertava para o perigo dos verbetes jurisprudenciais. Toda essa história de precedentes e precedentalismo não nasce do simples desejo de imitar o sistema da common law, mas, sim, da pretensão dos juristas de aprisionar a realidade em conceitos.

Ocorre que há uma diferença substancial entre a common law e o sistema brasileiro. Lá, a questão da obediência aos precedentes tem uma dimensão sociológica por trás. É a tradição que estabelece o modo como se faz direito e a maneira de como os juízes devem seguir àquilo que está inscrito nessa tradição. Aqui, não temos nada disso. O que se busca mesmo é aquilo que Streck sempre chamou de “adiantamento de sentido”. O que queremos são as respostas antes das perguntas. Não estamos dispostos a enfrentar as complexidades. E tampouco as singularidades. É como se precisássemos de um “calmante epistêmico”. Warat falava em prêt-a-porter de sentidos. Streck aperfeiçoou esse conceito, a partir da hermenêutica, ao demonstrar que a aposta dogmática em “conceitos sem coisas” (é isso que querem no Brasil, quando fazem tábula rasa com o artigo 927 do CPC, dizendo que tudo é precedente) nos conduz de volta à jurisprudência dos conceitos. Trata-se, com efeito, do mesmo debate que Castanheira Neves travou contra os assentos portugueses.

Em suma: essa questão é velha. Tudo indica, entretanto, que ainda não entendemos a diferença entre o sistema brasileiro e aquele da common law. Não se trata de povo, país, território ou, mesmo, de comportamentos. A questão de fundo é filosófica. Uma parcela considerável da doutrina pretende construir conceitos que adiantem os sentidos que ainda estão por vir. Pior – e essa preocupação também é compartilhada por Georges Abboud, Dierle Nunes, Maurício Ramires e tantos outros – é que esses conceitos com respostas antecipadas são prerrogativas dos Tribunais Superiores.

Mas qual é o limite de sentido daquilo que os tribunais dizem? Se lermos com atenção uma das colunas de Streck e Abboud publicada aqui na ConJur, veremos que não há qualquer problema em se admitir que decisões de tribunais superiores devem balizar o sistema jurídico. Afinal, é isso que está escrito nos artigos 926, 927 e 489 do CPC. Tais dispositivos foram postos no código para isso. O que não se mostra apropriado é que os tribunais superiores legislem por meio da elaboração de teses abstratas.

No fundo, aquilo que Warat e Streck denunciaram há quase 30 anos bate hoje à nossa porta. Paradoxalmente, no momento em que um novo código foi feito para arrumar a casa, para dispensar a criação dessas teses abstratas, para conter a discricionariedade judicial. Todavia, parece que preferimos voltar ao pandectismo. Ou, melhor, a um pandectismo tupiniquim, como deixou claro várias vezes o professor Lenio Streck, sobretudo na crítica que fez aos enunciados da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), em texto que contou inclusive com a “participação especial” do professor Friedrich Müller. Vale a pena reler e refletir sobre tudo isso.

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