Embargos Culturais

Como ambientalista, Gilberto Freyre chama atenção para olharmos o passado

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

24 de janeiro de 2016, 11h00

Spacca
A propósito da devastação das nossas matas” é o título de um artigo de jornal escrito por Gilberto Freyre, publicado em livro de 1964[1]; o artigo é de 1925, quando Gilberto Freyre contava ainda 25 anos. Estou entre aqueles que acreditam que os problemas ambientais são de nossa época e que não podemos racionalmente entender propostas de contenção à expansão desenfreada, fora de um contexto de alargamento do capitalismo. A regulamentação do aproveitamento dos recursos naturais é razão direta da ampliação do uso dos recursos naturais, obviamente.

A invocação de normas ambientais quando Tomé de Souza teria supostamente se oposto ao corte do pau-brasil no século XVI é de um presenteísmo ingênuo e risível, propício para as páginas iniciais de livros de ambientalismo catastrófico e escatológico. A questão é muito séria, e muito grave, e muito preocupante, para ser tratada apenas com indicações de que o problema já fora objeto de advertências dos antigos.

Essa premissa, no entanto, fragiliza-se algumas vezes. A leitura do excerto de Gilberto Freyre pode exemplificar possível exceção, pautando um modo de ação. O sociólogo invocava que “a devastação das matas fez-se entre nós, neste último século de Independência, Democracia e Direitos do Homem, com uma sem-cerimônia espantosa”. Gilberto Freyre lembrou que havia ampla legislação protetiva das matas, comprovada por vários avisos coloniais, os quais, entre outros, reservavam para o Rei amplas margens dos rios, puniam incendiários e devastadores, reivindicavam para a Coroa espaçosas áreas de matas particulares. O Estado era o núcleo de qualquer medida.

O século da independência, ao qual se referia Gilberto Freyre, não teria produzido normas ou organizado políticas com o mesmo empenho que se teria enfrentado a questão na era colonial. Para Freyre, naquele momento, “neste ponto, como em outros, os capitães-mores del-rei se revelaram melhores arremedos de estadistas do que os bacharéis de Pedro II e da República”. Para Freyre, o passado era mais assertivo do que o presente que vivia, pelo menos do ponto de vista de uma imaginária proteção ambiental.

Há um sintoma curioso nas ciências sociais, caracterizado por um obsessivo apego ao acontecido histórico, como fonte imediata de nossos insucessos e, ao mesmo tempo, como exemplos distantes que deveríamos perseguir; trata-se de questão central no discurso historiográfico. Tem-se um paradoxo: seríamos atrasados e deficitários por culpa de nossos antepassados, que nada fizeram em face de problemas até hoje não resolvidos e também seríamos culpados porque não seguimos as formas e ações dos gigantes, sobre cujos ombros tentamos compreender o mundo.

Há vezes que o passado se mostra superlativamente superior; e há vezes nas quais o passado se revela inerte e macunaímico. Os fundamentos filosóficos da proteção ambiental ilustram emblematicamente esse absurdo. As tragédias das várias marianas que há decorrem também de nosso excesso de zelo para com preocupações conceituais, como a aqui colocada, em detrimento de um necessário rigor para com a fiscalização e para com o monitoramento das intervenções humanas.

Passados 90 anos desse interessante artigo de Gilberto Freyre constata-se, infelizmente, que pouco fizemos, talvez porque do passado também muito pouco aprendemos.           

 


[1] Gilberto Freyre, Retalhos de Jornais Velhos, Rio de Janeiro: José Olympio, 1964, pp. 46-47.

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