Olho no olho

Em ritmo industrial, audiências de custódia completam um ano em São Paulo

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25 de fevereiro de 2016, 8h12

Um feirante e um jovem colega sentam-se algemados diante de um juiz, uma promotora de Justiça e um defensor público. Sem antecedentes criminais, eles haviam sido presos no último sábado (20/2) sob suspeita de receptação (transportar ou ocultar objeto que seja produto de crime) e, na falta de dinheiro para pagar a fiança fixada, continuavam em um centro de detenção até essa quarta-feira (24/2). Menos de cinco minutos depois de entrarem na sala, são informados de que responderão ao processo em liberdade, mas ficam proibidos de sair de casa à noite.

A cena tem sido comum no segundo andar do Fórum Ministro Mário Guimarães, no bairro paulistano da Barra Funda, desde o lançamento das audiências de custódia. Há um ano, a Justiça de São Paulo determina que presos em flagrante sejam ouvidos presencialmente por um juiz. O magistrado não pode fazer nenhuma pergunta sobre o mérito — se o suspeito é culpado ou inocente —, mas avalia se ele deve mesmo ficar atrás das grades ou pode cumprir algum tipo de medida cautelar.

O modelo foi costurado junto com o Conselho Nacional de Justiça, que acabou exportando a iniciativa para todas as capitais do país e agora tem o plano de levá-la para cidades do interior e para toda a Justiça Federal.

O número de audiências de custódia tem crescido progressivamente em São Paulo, atendendo agora as oito seccionais da capital: foram 75 em fevereiro de 2015, 574 em março, e 877 em abril, enquanto janeiro de 2016 registrou 1.436 presos ouvidos. A duração média de cada audiência diminuiu: se, no período de implantação, cada encontro levava em média 34 minutos, em janeiro o cronômetro marcou 14.

A revista eletrônica Consultor Jurídico acompanhou três casos na tarde dessa quarta, quando o projeto completou um ano. Nenhum levou mais de cinco minutos. Uma lista na entrada apontava 92 nomes de presos que seriam ouvidos, distribuídos em seis salas no Fórum da Barra Funda. Era frequente nos corredores o vaivém de policiais militares e pessoas algemadas, geralmente homens.

Segundo o juiz Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo, a especialização dos envolvidos foi o fator que otimizou o trabalho. Há juízes escalados especificamente para lidar com essas audiências, assim como promotores e defensores. Poucos advogados comparecem — a Defensoria Pública participa de aproximadamente 80% dos casos.

“As audiências de custódia são uma experiência extremamente positiva. É uma medida simples com um resultado imenso”, defende o juiz. Em um ano, foram ouvidos 16.653 presos: 9.077 (55%) flagrantes foram convertidos em prisão preventiva, restando 7.576 (45%) solturas, sendo 1.588 com fiança. A ideia inicial era disponibilizar tornozeleiras eletrônicas para suspeitos soltos, mas ainda não foi lançada licitação. A taxa de reincidência é de 4%, segundo o Tribunal de Justiça de São Paulo.

A advogada Maria Victoria Lara também considera a medida positiva, inclusive para evitar a superlotação carcerária. Ela começou a representar suspeitos em maio; hoje, estima participar das audiências quatro vezes por semana. Geralmente recebe honorários pelo trabalho específico. O restante do acompanhamento processual acaba com a Defensoria, aponta.

Modo de trabalho
Antes de entrarem na sala, os presos conversam rapidamente com um defensor, em pé, no corredor. Nos casos acompanhados pela ConJur, a promotora descartou qualquer irregularidade na prisão e defendeu que a medida era necessária para garantir a ordem pública. O defensor defendeu a liberdade, por não ver indícios de prejuízo à instrução processual. Mesmo nos casos de reincidência, disse que ninguém pode ser punido de novo por penas já cumpridas.

Das quatro pessoas ouvidas, duas foram soltas e duas ficarão encarceradas. O intervalo entre as audiências é curto, mas suficiente para os participantes tomaram café e conversarem sobre assuntos corriqueiros, como o filho da apresentadora Luciana Gimenez com o roqueiro Mick Jagger.

Em nenhum caso foi questionado se o suspeito sofreu algum tipo de violência enquanto estava detido. O juiz Rodrigo Tellini Camargo afirma que o questionamento não é obrigatório; ele costuma levar em conta a situação física e entende que qualquer relato de agressão pode ser feito ao defensor ou advogado, antes da audiência.

Na maioria dos casos, a apresentação ocorre até 24 horas após a prisão. A dupla de jovens suspeita de receptação, citada no início da reportagem, demorou mais para ser ouvida porque foi presa durante o fim de semana, quando não há atendimento. A fiança foi estabelecida pela autoridade policial e mantida em plantão judiciário. Como os suspeitos não pagaram, acabaram sendo levados posteriormente à audiência.

Camargo aponta que existe assistência para quem deixa a prisão, mas está em situação de miserabilidade ou é usuário de drogas. Há uma ponte com órgãos da prefeitura, afirma, permitindo que pessoas com esse perfil sejam direcionadas para tratamento ou até encaminhadas para cursos profissionalizantes.

TJMA
Ministro Ricardo Lewandowski (segundo à esquerda), presidente do CNJ, participa de audiência de custódia no Maranhão.Divulgação/TJ-MA

Críticas e outras experiências
Bahia e Maranhão já tinham projetos semelhantes antes de 2015, mas com algumas características diferentes. A experiência paulista, por isso, foi vista como a primeira a seguir o modelo do CNJ. Chegou a ser questionada no Supremo Tribunal Federal, pois delegados de polícia reclamavam que o TJ-SP usou uma norma administrativa para legislar sobre Direito Processual e determinar como autoridades de outro poder (a polícia, ligada ao Executivo) deveriam agir.

Em agosto de 2015, porém, o STF decidiu que o provimento do tribunal apenas disciplinou direitos fundamentais do preso já citados no Código de Processo Penal. Os ministros concluíram ainda que a criação das audiências segue a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, que entrou no ordenamento jurídico brasileiro em 1992 — tendo, portanto, ordem supralegal.

Em seu artigo 7º, inciso 5º, o documento estabelece que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”.

O Tribunal de Justiça de São Paulo quer levar agora a experiência a municípios do interior do estado. Ribeirão Preto e Presidente Prudente são candidatas à expansão.

O CNJ já criou resolução determinando que todos os tribunais de Justiça e tribunais regionais federais apresentem, até o dia 1º de março, “planos e cronograma de implantação” das audiências de custódia em suas jurisdições. As cortes têm até o dia 30 de abril para instalarem audiências de custódia em todo o seu território, conforme previsto na Resolução 213 do conselho, publicada em dezembro.

O Senado ainda analisa um projeto de lei sobre o tema, que tramita desde 2011.

Clique  aqui para ver mapa de instalação da iniciativa no país.

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