Embargos Culturais

O jurista baiano João Mangabeira e
as conferências sobre Rui Barbosa

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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21 de junho de 2015, 8h01

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João Mangabeira (1880-1964)[1], importante político, advogado, jurista e publicista baiano, proferiu conferências na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, a propósito do vigésimo aniversário da morte de seu patrono, Rui Barbosa (1849-1923). João Mangabeira aproximou-se de Rui ao longo da campanha civilista (1910), tornando-se um de seus maiores defensores e admiradores. Mangabeira foi grande propagandista de Rui Barbosa, cuja obra exaltou com uma poderosa retórica.

As conferências teriam sido proferidas por Mangabeira sem a auxílio de qualquer anotação, o que (parece-me) era uma de suas maiores prodigalidades. Mangabeira acreditou que as conferências seriam taquigrafadas, e por isso não se preocupou em produzir um texto. Teria esboçado a conferência na imaginação, esperando dar-lhe a forma na hora, reagindo ao auditório. Leu em suas falas apenas um documento, uma carta de Deodoro da Fonseca.

Vários jornais solicitaram que as conferências fossem relembradas e publicadas. Em suplemento do então Diário Carioca o conteúdo das palestras foi retomado, por insistência de Macedo Soares. Reunidos os textos todos, publicou-se íntegra das conferências, no célebre Ruy, o Estadista da República[2].

Do ponto de vista metodológico, chama-me a atenção a nota explicativa que João Mangabeira redigiu para a edição em livro das conferências. Explicou que não se tratava de uma biografia de Rui; isto é, Mangabeira preocupava-se apenas com o Rui republicano, especialmente com os acontecimentos que Rui vivenciou a partir de 1889, quando fora Ministro da Fazenda de Deodoro da Fonseca, por ocasião, inclusive, da crise financeira do encilhamento. Essa crise fora muita vez mencionado por Machado de Assis, em deliciosas passagens de seus livros de sua fase realista, a exemplo de Esaú e Jacó.

Mangabeira reconheceu a dificuldade em se biografar figura tão ímpar como Rui. Comparou seu empenho com o esforço de Joaquim Nabuco, biógrafo do pai, Nabuco de Araújo. Lembra que Nabuco contou com todo o arquivo do pai (que manteve, entre outros toda a correspondência enviada e recebida), o que facilitou o trabalho pela excelência do material, mas o que, ao mesmo tempo, dificultou a tarefa, dada a extensão quantitativa e qualitativa dos documentos. Não é mera coincidência o fato de que Nabuco nos deixou biografia intitulada O Estadista do Império e que Mangabeira esboçou a figura de Rui no Estadista da República.

Assim, Mangabeira observou que “ainda circunscrito ao campo da política, um estudo sério sobre Ruy, o cenário em que se desenvolveu a sua ação e os homens que da cena participaram, demandaria um esforço de muitos anos”[3]. E porque Rui destacou-se como jurista, filólogo, educacionista e estadista é que sua importância na vida nacional deveria ser tratada por vários especialistas. Rui fora um perito em todos esses temas, indício de sua apregoada genialidade.

O Rui de Mangabeira é um imortal, no sentido mais contundente desse conceito. Mangabeira concebeu a imortalidade como a qualidade do que e de quem se perpetua no tempo; “o tempo limpa de seu veio e dissolve no esquecimento as falsas glórias que a bajulação inventa, a subserviência entroniza e a venalidade apregoa”[4]. Nesse sentido, exatamente porque o “efêmero, o artificial, o medíocre, não resistem ao curso de dois decênios”[5], é que a obra de Rui, então celebrado ao ensejo do segundo decênio de sua morte, transcende ao momento em que lutou, garantindo-lhe do ponto de vista metafórico e moral, a imortalidade suscitada por Mangabeira. Além do que, prossegue Mangabeira, essa imortalidade festejada é comprovada pela (…) “designação, pelo seu nome, após o seu falecimento, de ruas ou praças de quase todos os centros povoados, através de todo o território nacional (…) a vulgarização, no registro civil, do seu prenome, raríssimo entre nós antes dele”.[6]

Essa evocação laudatória é recorrente nas referências que se faz a Rui Barbosa, ainda que se discuta seu imaginário apostolado, a verbosidade grandiosa, mas irritante de sua Réplica aos redatores do Código Civil ou, o que mais constrangedor, a queima dos documentos referentes à nossa escravidão, assunto que enfrentarei em breve nessa coluna. Rui persiste como um vulto que paira sobre todos nós, a espera de uma leitura contemporânea, que investigue o seu significado na construção de nosso bacharelismo, prenhe de palavras e ornamentos, e algumas e muitas vezes indiferente para com a edificação de um pensamento prático e solucionador.

Porém, é necessário que nos valorizemos, que retomemos nossos pensadores e nossas ideias, e que fixemos um cânon verdadeiramente nacional. Nesse sentido, as conferências de João Mangabeira sobre Rui Barbosa fornecem farto material de pesquisa e de reflexão: trata-se de livro essencial para a compreensão do pensamento político e jurídico brasileiro.


[1] João Mangabeira é irmão de Otávio Mangabeira, que foi ministro de Washington Luís e que governou o estado da Bahia. É tio-avô de Roberto Mangabeira Unger, um dos mais brilhantes intelectuais brasileiros, que leciona em Harvard e que hoje chefia pasta ministerial no Brasil.
[2] Trabalho nesse ensaio com um exemplar da 3ª edição. Mangabeira, João, Ruy- o Estadista da República, São Paulo: Livraria Martins Editora, 1960.
[3] Mangabeira, João, Ruy- o Estadista da República, cit., p. 7.
[4] Mangabeira, João, Ruy- o Estadista da República, cit. p. 12.
[5] Mangabeira, João, Ruy- o Estadista da República, cit. p. 13.
[6] Mangabeira, João, Ruy- o Estadista da República, cit., loc. cit. 

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