Direito Penal

Caso Fifa mostra a fragilidade da ordem jurídica do país no assunto

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1 de junho de 2015, 15h30

Na manhã do dia 27 de maio de 2015, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos publicou em sua página oficial a informação de que nove dirigentes da Fifa e cinco executivos de empresas parceiras da entidade esportiva estariam sendo investigados pela suposta prática de comportamentos criminosos[1]. Suspeita-se que há mais de 20 anos tenha sido desenvolvido um esquema internacional de corrupção no futebol, por meio do qual os cartolas assegurariam ilícito enriquecimento pessoal.

Nesse cenário, para viabilizar a obtenção de material probatório, a Corte Federal de Nova Iorque requereu às autoridades Suíças, em processo de cooperação internacional, fossem realizadas medidas cautelares de prisão e de busca e apreensão no país europeu. Com o recolhimento ao cárcere de importantes membros da mais poderosa instituição do futebol mundial, inúmeras discussões passaram a surgir nos noticiários mundo afora sobre as possíveis irregularidades que permeiam as decisões políticas relativas aos grandes eventos esportivos, os quais, é amplamente divulgado, movimentam bilhões de dólares anualmente[2].

No Brasil, país do futebol, segundo consta de reportagem publicada pelo Estado de São Paulo, o Ministério da Justiça teria informado “que será aberto um inquérito pela Polícia Federal para investigar se foi praticado crime (…) relacionado ao suposto esquema de corrupção envolvendo a FIFA”[3]. Ademais, o Senador Romário (PSB-RJ) recolheu 52 assinaturas e, assim, alcançou apoio suficiente para que fosse protocolado “requerimento solicitando a criação de comissão parlamentar de inquérito (CPI) no Senado para investigar a Confederação Brasileira de Futebol (CBF)”[4].

É preciso que se entenda, entretanto, que os fatos centrais sobre os quais recai o trabalho dos investigadores dos Estados Unidos e da Suíça, quais sejam, os pagamentos de propinas a dirigentes das instituições privadas que regulamentam o futebol, não são tipificados na legislação penal brasileira. Com efeito, a partir da análise de comunicados oficiais emitidos pelas autoridades estrangeiras, verifica-se que o cerne das investigações lá encetadas está relacionado à celebração de acordos entre os executivos da Fifa e proprietários de empresas de marketing esportivo: em suma, quem pretendesse contratar com a Fifa deveria, supostamente, efetuar pagamentos de propinas aos dirigentes da entidade, que as sonegariam e lavariam por meio de intrincadas operações financeiras[5].

Em nosso país, a celebração de pactos corruptos é defesa apenas aos funcionários públicos, que, nos moldes dispostos no artigo 327 do Código Penal, são os indivíduos que, “embora transitoriamente ou sem remuneração”, exercem “cargo, emprego ou função pública”, além de pessoa que exerce “cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e que trabalha em empresa prestadora de serviços contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública”.

Importante mencionar que a Lei Federal 9.615/93 (Lei Pelé), de forma expressa, estabelece que “os dirigentes, unidades ou órgãos de entidades de administração do desporto, inscritas ou não no registro de comércio, não exercem função delegada pelo Poder Público, nem são consideradas autoridades públicas para os efeitos desta Lei”. Assim, em que pese inconteste a relevância do fomento de práticas esportivas (artigo 217 da Constituição Federal), tal circunstância, per se, não é suficiente para que os indivíduos que atuam nesse contexto sejam considerados, para fins de aplicação da lei penal, funcionários públicos.

Outrossim, malgrado a Lei Federal 10.671/2003 (Estatuto do Torcedor) preveja pena de reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos para atos de corrupção, passiva e ativa, que mirem “alterar ou falsear o resultado de competição esportiva”, não há qualquer modelo incriminador vigente que puna a atuação de agentes privados que prometem ou oferecem vantagens indevidas para, por exemplo, obter o direito à transmissão de jogos; tampouco é vedada a conduta de dirigente de entidade privada, como é o caso da CBF, que opta por admitir como patrocinadora a empresa que, dentre as interessadas em sê-lo, lhe proporciona mais elevadas vantagens econômicas ocultas.

A Lei de Concorrência desleal, por sua vez, em seu artigo 195, tipifica o comportamento de funcionários de entidades privadas que celebram pactos ilícitos mediante a concessão de vantagem indevida a representante de empresas concorrentes, “para que o empregado, faltando ao dever do emprego, lhe proporcione vantagem”. Tal não é, todavia, a hipótese em investigação nos Estados Unidos, na medida em que as supostas propinas lá apuradas não seriam pagas a funcionários de concorrentes, mas aos representantes da entidade – Fifa – com a qual se pretendia contratar.

Destarte, as condutas investigadas nos Estados Unidos, especialmente os pactos sceleris entre particulares, por não receberem do legislador penal[6] brasileiro qualquer atenção, jamais poderão ser punidas em nosso território. Por conseguinte, também são irrelevantes penais as operações financeiras feitas com o fim de ocultar ou dissimular a origem dos recursos angariados por meio de atos de corrupção no setor privado. Afinal, é fundamental para o branqueamento de capitais que a conduta do agente recaia sobre “bens direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal[7].

Foi por esse motivo que, ao comunicar a adoção de providências para investigar suposta corrupção no futebol, a Polícia Federal informou que os seus esforços objetivariam desvelar a possível prática do crime de evasão de divisas, esse sim, tipificado no artigo 22 da Lei Federal  7.492/86[8]; não a ocorrência dos pactos sceleris que deram origem às ditas divisas, prima facie, auferidas por meio de condutas irrelevantes para o nosso Direito Penal.

A situação abordada no presente artigo revela, em nosso entendimento, grave fragilidade da ordem jurídica brasileira, que dispensa grande esforço ao combate à corrupção no setor público, ao mesmo tempo em que subestima as danosas consequências que podem advir dos pactos sceleris celebrados apenas entre particulares. Vale mencionar, nesse diapasão, que o diretor da Transparência Internacional na Suíça, ao tratar do caso Fifa, foi enfático ao aduzir que a corrupção entre particulares gera efeitos tão graves quanto aquela operada na esfera estatal e, portanto, deveria receber análogo tratamento jurídico[9].

Desse modo, somando-se a inúmeros outros escândalos de corrupção privada já noticiados no cenário internacional, recorrentes também em nossa nação, o caso Fifa vem reforçar a ideia de que é salutar a criação de modelos incriminadores que sancionem os pactos ilícitos firmados entre particulares, os quais produzem impactos econômicos severos. Ademais, afigura-se-nos inconcebível que se exija jogo limpo dos agentes do setor público, sem que aos players da iniciativa privada sejam impostas proibições de recebimento oculto de propinas, também de índole jurídico-penal[10].

 


[1] http://www.justice.gov/opa/pr/nine-fifa-officials-and-five-corporate-executives-indicted-racketeering-conspiracy-and

[2] O faturamento da FIFA com a concessão de direitos de transmissão dos eventos esportivos e com marketing, de 2011 a 2014, alcançou cifra próxima de US$4.000.000.000,00 (quatro bilhões de dólares).

[3] http://esportes.estadao.com.br/noticias/futebol,pf-abre-inquerito-para-investigar-crimes-ligados-ao-escandalo-da-fifa,1696144

[4] http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2015-05-27/romario-protocola-cpi-da-cbf-no-senado.html

[5] De se destacar que na ordem jurídica americana não há específica previsão do crime de corrupção no setor privado lato sensu. Há, na verdade, dispositivos no U.S. Code que consideram típicas determinadas modalidades de fraude, as quais, em tese, guardam correspondência com os comportamentos atribuídos aos gestores da FIFA. Fala-se, então, que estão sendo investigados os crimes de rackteering, wire fraud e money laudering, insculpidos, respectivamente, nas seções 1952, 1343 e 1956 do U.S. Code. Na Suíça, por sua vez, há vários anos está previsto o crime de corrupção no setor privado, erigido com o propósito de promover a salvaguarda da regularidade dos mercados baseados na livre concorrência.

[6] A celebração de pactos corruptos na esfera privada, não obstante irrelevante para o Direito Penal, é passível de reprimenda na esfera civil. Afinal, diversos dispositivos da ordem jurídica brasileira estabelecem que o administrador de pessoa jurídica de direito privado deverá “ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios”, sendo-lhe vedado praticar qualquer ato que contrarie os interesses da entidade (artigo 1.011 do Código Civil).

[7] Artigo 1º, caput, da Lei Federal 9.613/98.

[8] Nessa hipótese, abre-se a possibilidade de investigação dos crimes de sonegação fiscal e de lavagem de dinheiro, por exemplo. Entretanto, o delito antecedente não poderá ser a corrupção privada, mas a manutenção de recursos no exterior, eventualmente não declarados ao Banco Central do Brasil (BACEN).

[9]http://www.slate.com/blogs/the_slatest/2015/05/27/fifa_arrests_switzerland_enabled_fifa_s_corruption_for_years_why_it_stopped.html

[10] Em dissertação de Mestrado intitulada A tipicidade do crime de corrupção no setor privada, defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), tratamos com maior profundidade diversos aspectos abordados no presente artigo.

Autores

  • é sócio do escritório Corrêa Gontijo Advogados, Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), pós-graduado em Direito Penal Econômico pelas Universidad Castilla-la-Mancha (Espanha) e Fundação Getúlio Vargas (FGV), e membro da Comissão de Direito Penal da OAB/SP

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