Observatório Constitucional

Novo presidente do Supremo deverá enfrentar grandes desafios em sua gestão

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2 de agosto de 2014, 8h01

O Supremo Tribunal Federal elegerá nos próximos dias seu novo presidente[1], o que se espera que ocorra dentro do já costumeiro clima de estabilidade institucional que tem marcado as sucessões presidenciais na Corte.

A eleição do presidente do STF por seus próprios pares tem representado, ao longo de toda a história do Tribunal, uma garantia de independência e, portanto, uma espécie de escudo institucional contra as ingerências políticas dos demais poderes, especialmente do Poder Executivo.

Nunca é demais relembrar alguns conhecidos episódios históricos em que o Tribunal se viu institucionalmente vulnerável em face do Poder Executivo, como o ocorrido no governo Floriano Peixoto, quando o presidente e o vice-presidente da Corte eram obrigados a prestar juramento perante o chefe do executivo[2], que demorava para marcar a data da cerimônia e assim deixava o Tribunal e seu regular funcionamento submetidos às vontades do Executivo; assim como o período em que o governo de Getúlio Vargas determinou, por meio do Decreto-Lei 2.770 (de 11 de novembro de 1940)[3], que o presidente e o vice-presidente do STF deveriam ser nomeados, por tempo indeterminado, diretamente pelo presidente da República.

Ambos os episódios (encerrados em 1894 e 1946, respectivamente) geraram para a Corte lições históricas importantes no sentido da necessidade de se consolidar e de se assegurar a permanência dessa regra de eleições presidenciais pelos próprios integrantes do colegiado como uma garantia de sua independência e de seu regular funcionamento e desenvolvimento institucionais[4].

O tradicional sistema de eleições presidenciais no STF também tem contribuído para que o presidente seja considerado no interior do colegiado como um primus inter pares. A própria configuração institucional do cargo assim o sugere, ao prever mandatos presidenciais relativamente curtos, de apenas dois anos, vedada a reeleição. Assim, a cada dois anos os ministros elegem seu novo presidente, que deve ser escolhido entre os integrantes do próprio colegiado. Na prática, adota-se a já tradicional regra costumeira de se respeitar a ordem decrescente de antiguidade entre os magistrados, de modo que sempre é eleito o ministro mais moderno em relação ao presidente que termina seu mandato[5].

A observância rigorosa dessas normas e práticas no processo de eleição presidencial tem proporcionado a manutenção de uma ordem institucional no seio do colegiado e assegurado uma legitimidade muito forte do presidente entre os colegas. Todos são bastante conscientes do fato da rotatividade periódica e da ordem pré-estabelecida de sucessão no cargo, o que na prática elimina completamente eventuais jogos políticos com objetivo de conquista do cargo. O clima institucional é de pleno respeito ao exercício presidencial de cada ministro que esteja ocupando o cargo, o qual é reconhecido como o coordenador momentâneo das atividades administrativas e jurisdicionais do Tribunal, mas que por isso não deixa de ser considerado entre seus pares como mais um membro do órgão colegiado[6].

O fato é que o Supremo Tribunal Federal pratica hoje um regime de autogoverno que é mais colegiado do que presidencialista. Não se cultiva uma figura presidencial forte como a que existe na Suprema Corte dos Estados Unidos — cujo chief justice é nomeado pelo presidente da República por tempo indeterminado — e também não há espaços para se falar, como na realidade norte-americana, de uma “Corte Warren”, por exemplo. Apesar de algumas destacadas atuações presidenciais no STF, como as dos ministros Moreira Alves, Sepúlveda Pertence e Carlos Velloso e, mais recentemente, dos ministros Nelson Jobim e Gilmar Mendes, as características institucionais do cargo não deixam muita margem para se atribuir a uma única figura presidencial o predomínio doutrinário e a liderança institucional que podem marcar toda uma época na histórica da Corte.

Nesse contexto, a cada dois anos um novo presidente do STF assume a direção do Tribunal dotado de considerável legitimidade perante seus colegas para, sobretudo, dar continuidade ao trabalho das gestões anteriores, enfrentando os desafios que se impõem momentaneamente no biênio de seu mandato.

O novo presidente do STF, o ministro Ricardo Lewandowski, enfrentará desafios atuais importantes. Alguns deles exigirão do presidente um perfil mais político para atuar perante os demais Poderes e os órgãos do Poder Judiciário. A demanda remuneratória dos servidores do Poder Judiciário, que também se relaciona com o pleito de reformas na carreira dos servidores do próprio STF, são alguns dos temas administrativos que pressionarão a nova gestão da Corte e provavelmente a inserirá no embate político com o Poder Executivo pela aprovação orçamentária, como já ocorrido em outras ocasiões. Perante o Poder Legislativo, o presidente terá que atuar politicamente pela aprovação dos projetos de lei de interesse do Poder Judiciário, entre os quais, por exemplo, o Projeto de Lei de Regulamentação do Mandado de Injunção, que permanece como a única ação constitucional despida da regulamentação exigida pela Constituição. No âmbito do Conselho Nacional de Justiça, deve ser cobrada a continuidade e o aperfeiçoamento de políticas importantes, algumas delas criadas em gestões anteriores como as da ministra Ellen Gracie e do ministro Gilmar Mendes, seja no âmbito do sistema prisional, no aperfeiçoamento da gestão e da informatização dos tribunais e nos programas especiais voltados para a efetivação do direito à saúde, democratização e acesso à justiça, conciliação, mediação e arbitragem.

É no plano interno, no entanto, especialmente no tema da gestão dos processos do Tribunal, que se encontram alguns dos principais desafios atuais do novo presidente do STF. Em especial, existe uma premente necessidade de encontrar soluções procedimentais inovadoras para o pleno funcionamento do sistema de normas e procedimentos da repercussão geral, que inicialmente tiveram imenso desenvolvimento nas gestões da ministra Ellen Gracie e do ministro Gilmar Mendes, mas que há algum tempo sofrem do problema da elevada quantidade de temas com repercussão geral aprovada à espera de efetivo julgamento de mérito. A constante aprovação de novos temas no plenário virtual e a dificuldade de julgamento daqueles já aprovados têm criado uma fila de julgamentos praticamente infindável em curto prazo e implicado o sobrestamento nos tribunais inferiores de uma quantidade muito grande de recursos, com graves impactos na gestão dos processos no âmbito do Poder Judiciário e repercussões desastrosas para a prestação jurisdicional. O problema, no fundo, diz respeito às práticas de deliberação do Tribunal, que não criam condições para julgamentos mais céleres e eficazes que poderiam dar maior vazão à imensa lista de processos da atual pauta do Plenário.

O pleno desenvolvimento do sistema de repercussão geral está a depender de uma verdadeira revolução nas práticas deliberativas do Supremo Tribunal Federal, cujo modelo vem demonstrando sinais claros de esgotamento, como já afirmado nesta coluna em 1º de fevereiro de 2014 — clique aqui para ler. O novo presidente terá que se atentar para esse fato. É preciso criar regras (regimentais), reconstruir e renovar práticas antigas e arraigadas, muitas que remontam aos primórdios do Tribunal e que não mais respondem ao perfil institucional da Corte e às demandas do atual sistema complexo de tramitação e julgamento tanto dos recursos como dos processos originários na Corte. Em termos genéricos, algumas ideias podem servir de referência, tais como, por exemplo: o planejamento estratégico da agenda de julgamentos e a definição das pautas temáticas com maior antecedência (mensal ou semestral, a depender do tipo de processo); a construção de práticas de deliberação prévia que favoreçam maior diálogo interno entre os ministros e possam criar condições para a construção mais colegiada dos posicionamentos; o desenvolvimento de costumes de votação mais célere, como a limitação prática do tempo de voto individual; realização de sessões extraordinárias exclusivas para relatórios e sustentações orais; a ampliação do uso dos sistemas informatizados e do plenário virtual para contatos e trocas argumentativas e textuais internas, não só entre ministros, mas também entre as equipes dos diversos gabinetes; construção de padrões de formatação, mais estruturados, sintéticos, claros e facilitadores da publicação mais célere, para os acórdãos e especialmente para as ementas, para que estas possam efetivamente representar, de forma didática e unívoca, a posição do colegiado; entre outras. Além disso, é hoje fundamental dar continuidade à ampliação da competência das turmas, o que já vem trazendo resultados positivos para a paulatina diminuição da pauta do Plenário.

Essas questões devem ser levadas a sério pelo novo presidente e postas à discussão do colegiado, com a finalidade de se dar início aos trabalhos de reformas de curto, médio e longo prazo, que gerem responsabilidade, inclusive, para as próximas gestões presidenciais.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] A provável data da eleição será o próximo dia 13 de agosto, quando ocorrerá a segunda sessão ordinária imediatamente posterior à vacância do cargo, ocorrida no último dia 31 de julho, quando publicada no Diário Oficial a aposentadoria do Ministro Joaquim Barbosa. A regra está prevista pelo artigo 12 do Regimento Interno do Tribunal: “Art. 12. (…) § 1º Proceder-se-á à eleição, por voto secreto, na segunda sessão ordinária do mês anterior ao da expiração do mandato, ou na segunda sessão ordinária imediatamente posterior à ocorrência de vaga por outro motivo”.
[2] A regra remonta ao período Imperial, em que o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça era nomeado diretamente pelo Imperador, perante o qual prestava juramento. A Lei de 18 de setembro de 1828, que criou o Supremo Tribunal do Império, assim estabelecia: “Art.2º. O Imperador elegerá o Presidente dentre os membros do Tribunal, que servirá pelo tempo de três anos. (…) Art.3º. O Presidente prestará nas mãos do Imperador, e os outros membros nas do Presidente, o seguinte juramento: Juro cumprir exatamente os deveres do meu cargo”. No Governo Provisório de 1890, o Decreto 210 determinou que (Art. 1º) “O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e os Presidentes das Relações serão desde já eleitos dentre os membros do respectivo tribunal por votação nominal e maioria absoluta de votos dos ministros ou desembargadores que nele tiverem assento”. Posteriormente, o Decreto n. 510, de 1890, estabeleceu, em seu artigo 57, que “os tribunais federais elegerão de seu seio os seus presidentes”. O Decreto 848, também de 1890, que organizou a Justiça Federal, dispunha em seu artigo 11 que “os membros do Supremo Tribunal Federal elegerão dentre si um presidente e um vice-presidente, que servirão durante três anos, podendo ser reeleitos”. O Decreto n. 1, de 26 de fevereiro de 1891, que determinou as regras de instalação do Supremo Tribunal Federal, fixou a norma de juramente do Presidente do Tribunal perante o Presidente da República: Art.2. (…) O presidente do tribunal fará, perante o Presidente da República, a solene promessa de fidelidade à Constituição e às leis, e a receberá do vice-presidente”. Essa regra foi revogada em 1894, pela Lei n. 221, de 20 de novembro, que em seu artigo 26 determinou que “o compromisso formal do ato de posse (Constituição, art. 82) terá lugar perante o tribunal reunido com qualquer número de ministros, se se tratar do presidente ou vice-presidente dele, e perante quem na ocasião presidir o tribunal, se se tratar de quaisquer outros de seus membros”.
[3] O artigo 1º do Decreto-Lei 2.770, de 11 de novembro de 1940, dispunha que: “O Presidente e o Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal serão nomeados por tempo indeterminado dentre os respectivos Ministros pelo Presidente da República e considerar-se-ão empossados mediante publicação do respectivo ato no Diário Oficial”.
[4] A regra da nomeação do Presidente e do Vice-Presidente do STF pelo Presidente da República adotada em determinado período do Governo Getúlio Vergas foi revogada em 1946, pelo Decreto-Lei n. 8.561, de 4 de janeiro de 1946, que continha um preâmbulo com teor bastante enfático: “Considerando que, no regime de separação de poderes, independentes e harmônicos entre si, é da tradição brasileira a eleição do presidente e vice-presidente dos tribunais por seus próprios membros; Considerando que nenhuma razão geral existe para conferir ao Chefe do Poder Executivo da União a faculdade de escolher o presidente do mais alto Tribunal do país, decreta: Art.1. No caso de vaga do cargo de Presidente ou Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal proceder-se-á por seus pares a eleição do Presidente e do Vice-Presidente, em sessão extraordinária para este fim convocada”.
[5] O Presidente do STF é eleito por voto secreto, pelos próprios Ministros, e o mandato tem a duração de dois anos, vedada a reeleição para o período seguinte. Apesar de não haver qualquer previsão regimental nesse sentido, criou-se a tradição de se eleger para ocupar o cargo o Ministro mais antigo da Corte que ainda não o tenha ocupado. O procedimento para eleição presidencial está previsto no Regimento Interno do Tribunal, artigo 12.
[6] O fato de o Presidente ser reconhecido como um primus inter pares não lhe retira certas prerrogativas que lhe são atribuídas em virtude do exercício do cargo e que tornam sua atuação potencialmente distinta dos demais colegas, especialmente na deliberação. O exemplo mais eloquente da necessária proeminência presidencial no contexto da deliberação está nas atribuições que são designadas ao Presidente para conduzir os trabalhos das sessões de julgamento em conformidade com as prescrições do Regimento Interno da Corte e, especialmente, na prerrogativa que lhe é conferida pelo próprio Regimento (art. 13, IX) de proferir voto de qualidade em hipóteses de empate na votação.

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