Direito & Mídia

A política e a imprensa no império do grotesco

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27 de junho de 2012, 12h25

Spacca
Dois momentosos assuntos agitaram as conversas dessas últimas semanas e fizeram até lembrar o escritor José Saramago. Num momento feliz do documentário Janela da Alma, dirigido pelos cineastas João Jardim e Walter Carvalho em 2001, o escritor discorria sobre a necessidade de dar a volta às coisas, olhar todos os lados para obter a visão correta.

Saramago conta, nesse poético filme sobre o órgão da visão, uma experiência que o marcou quando ia ao Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa. Seguramente uma história do tempo em que fazia parte, como serralheiro, da equipe de manutenção do Hospital de São José, ao lado do depois célebre guitarrista português Carlos Paredes, Saramago diz que, como então só tinha dinheiro para comprar ingresso para o “galinheiro” ou poleiro, instalava-se nesse local quase no teto do teatro, acima dos camarotes.

Mas dali, diz ele, era possível ver que a bela coroa dourada da Tribuna Real, o camarote em que se acomodavam os soberanos, não era tão imponente como parecia. Olhada da plateia, ela é uma das impactantes atrações do teatro. Mas do alto do galinheiro, vista de trás, a reluzente coroa que engalana o espaço do rei não passa de uma peça de latão enferrujada, cheia de teias de aranha e de poeira.

Além desse deslocamento, para conseguir a visão de todos os lados de um objeto ou fato, é preciso tempo e espera. Pois o tempo também muda a percepção. No curto espaço de três dias, acompanhando o desenrolar da candidatura do ungido por Luiz Inácio Lula da Silva, assistiu-se a uma sucessão de surpresas. Primeiro foi o anúncio da participação da venerável Luiza Erundina (PSB-SP) como vice na chapa do candidato Fernando Haddad (PT-SP) para as eleições municipais de São Paulo. Erundina representou um sopro nesse embolado início — e ela marcou presença de entrada, ao relativizar o “discurso do novo”.

No segundo momento, o fato novo já era o acordo do PT com o PP de Paulo Maluf (sim, as “primícias do novo”), em troca de um minuto e meio a mais no horário eleitoral. O toma lá dá cá se traduziu pela entrega do Ministério das Cidades para o partido do sempre execrado Paulo Maluf (falaremos sobre isso numa próxima quarta-feira). Não teria sido nenhuma tragédia, garantia o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho (e as eleições municipais de São Paulo são também de elevada preocupação da presidência, como se vê).

O passo seguinte foi o desmentido (logo confirmado) sobre o afastamento de Erundina da chapa PT-PSB para as eleições de prefeito de São Paulo. A senhora afirmou que não era de recuar, e não fugiria da raia. Mas na sequência, a divulgação da foto de Lula, Haddad e o sempre sorridente Maluf levou ao dito pelo não dito, consumando o fim da participação da ex-prefeita. Haddad continua sem par: falou-se em Netinho de Paula, candidato à Prefeitura pelo PCdoB.

Circulou na internet uma versão da foto do trio Lula, Haddad e Maluf em que este era trocado pela figura do Darth Vader. Outra charge mostrava Lula estendendo o convite de vice ao presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad. Também o advogado Luiz Flávio Borges D’Urso foi convidado e ficou de dar resposta.

E com isso passamos ao segundo dos dois assuntos que deram o que falar nestas últimas semanas. Um deles também com a participação de Borges D’Urso, doutor em Direito Criminal pela USP (não há registro dos componentes de sua banca nem currículo na Plataforma Lattes do CNPq). Trata-se do assassinato seguido de esquartejamento do executivo Marcos Kitano Matsunaga, de 42 anos, por sua mulher, Elize Matsunaga, de 30 anos, ocorrido no dia 19 de maio. E, de quebra, houve ainda a morte de Angelina Filgueiras dos Santos, também de 42 anos, ocorrida na noite de sexta-feira, dia 15 de junho, durante uma briga entre seu ex-marido, o capitão da Marinha Márcio Luiz Fonseca (de 48 anos), e o namorado da vítima, o engenheiro Jolmar Wagner Milato (40 anos). Angelina teria dado um tiro no peito e o ex-marido baleado pelo namorado.

O que fez essas tragédias familiares ganharem expressivo espaço na mídia?

No segundo caso foi o fato de a irmã de Angelina dos Santos, a atriz Ângela Bismarchi, estar confinada no reality show A Fazenda 5, da TV Record. E se discutia se a notícia da tragédia deveria ser dada ou não à participante. Finalmente decidiu-se que a notícia seria transmitida pela psicóloga do programa no final do sábado, 16 de junho. Após saber que a irmã havia falecido, Ângela decidiu continuar no reality: “Eu resolvi ficar porque eu sou forte. Se eu sair é derrota”, afirmou, segundo o site do programa.

Em seu blog, Ângela adverte: “Ao contrário do que dizem não é recordista em cirurgias plásticas, possuindo ao todo 13”. Dessas 13 intervenções, 10 foram executadas pelo primeiro marido; três pelo atual, ambos cirurgiões plásticos. Mas uma minuciosa reportagem investigativa da revista IstoÉ soma 41 cirurgias, cinco de aumento das mamas, uma para levantamento das sobrancelhas, outra para aumento dos lábios, nove microlipoesculturas, duas de dimple mentoniano (furo no queixo), 10 subincisões para celulite, quatro hidrolipoaspirações, duas correções das pálpebras; uma de orientalização do olhos, duas na vulva, duas de aumento dos lábios e duas rinoplastias. É quase irresistível não tascar umas quatro exclamações ao final de tão rica enumeração.

Ângela, informa a Wikipédia, pretende se submeter a uma cirurgia de reconstrução do hímen, para agradar o atual marido, Wagner Moraes. Cabe lembrar que Ângela estudou enfermagem e tem curso técnico de instrumentadora cirúrgica, realizado antes do curso da Faculdade de Design de Moda.

Já no caso de Marcos e de Elize Matsunaga, o interesse ocorreu pelos requintes de crueldade do esquartejamento realizado por Elize, nascida Araújo. Ao sair de sua Chopinzinho natal, no Paraná, Elize também cursou enfermagem e chegou a trabalhar num centro cirúrgico em Curitiba, antes de se mudar para São Paulo e aqui adotar o nome de Kelly e fisgar num site de acompanhantes o milionário executivo Marcos Kitano Matsunaga, então casado.

Os conhecimentos adquiridos de anatomia humana e manejo de bisturis no caso de Elize foram fundamentais para a execução do “desmonte” do marido infiel, minuciosamente descrito, com um infográfico da revista Veja mostrando didaticamente “como foi o esquartejamento”. O escritor e pensador Muniz Sodré poderia incluir essa peça em seu lapidar estudo O império do grotesco.

Mas o assassinato, conhecido como Caso Yoki, para desgosto da empresa de que o executivo era herdeiro, justamente num processo de venda para a multinacional americana General Mills, também teve desdobramentos. Dado como certo de início que a antiga enfermeira havia esperado uma noite para o corpo enrijecer e o sangue coagular, soube-se depois, pela autópsia, das evidências de que a decapitação fora executada ainda com a vítima nos estertores, viva, portanto. Mais crueldade. Mais interesse da mídia. Mais top dos mais lidos do dia.

Advogado da família do empresário Marcos Matsunaga, o presidente licenciado da OAB-SP Luiz Flávio D’Urso afirmou no programa Cidade Alerta, na quinta-feira (14 de junho), que Elize mentiu no depoimento à polícia. Segundo ele, o laudo necroscópico revela dados que confrontam com a versão dada por ela: a vítima morreu asfixiada com sangue decorrente de decapitação. Além disso, ainda segundo D’Urso no programa Cidade Alerta, a bala teria feito um trajeto de cima para baixo. E o advogado afirmou que Elize era mais baixa que Matsunaga. O que desmentiria a versão, dada por ela, de que os dois estariam em pé e discutindo quando ela disparou, com a pistola que ganhara do marido como presente de natal.

O que concluir? Atualizo os dados. No ranking das reportagens mais lidas do site UOL nesta manhã de quarta-feira, temos: 1) programa de Fátima Bernardes gera ciúme na Rede Globo; 2) Jorginho vai desmascarar Max na novela Avenida Brasil; 3) Brasileiro apela para a Dilma para evitar fuzilamento; 4) Tevez fala mal do Corinthians em festa de Riquelme; 5) Fazenda 5: Viviane Araújo encara banho gelado.

E ainda há quem se preocupe com o julgamento do Mensalão, com a CPMI do Cachoeira ou com o Golpe no Paraguai.

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