Vocação superior

Entidades da advocacia representam toda a sociedade

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7 de novembro de 2010, 6h16

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Direito e Justiça são coisas sérias e, por isso, entidades representativas de advogados não podem se limitar a defender seus associados. Elas devem falar pela sociedade, mesmo que isso signifique contrariar os próprios interesses. É com essa mentalidade que um brasileiro de 40 anos sobe à cadeira de presidente da mais renomada associação de advogados das Américas, a Inter-American Bar Association, conhecida por aqui como Federação Interamericana de Advogados (FIA).

A partir de 1º de janeiro, André de Almeida, sócio do Almeida Advogados e especialista em Direito Internacional, Financeiro e em Mercado de Capitais, será o quarto brasileiro em 70 anos a ocupar o cargo, para um mandato bienal. Apoiado declaradamente na disputa pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcante Junior, Almeida defende posições da OAB polêmicas dentro da própria advocacia, como a aceitação da vigência da Lei da Ficha Limpa já para as eleições deste ano e a insistência na prisão preventiva do governador cassado do Distrito Federal, José Roberto Arruda. "Todos nós advogados pagamos algo para a Ordem, mas falar que ela protege o advogado é menosprezar a grandeza da entidade. Ela protege a sociedade brasileira", crava.

André de Almeida já fala em nome de uma entidade que desde 1940 acompanha de perto o processo político e a defesa da democracia nas Américas. Com cerca de 100 ordens de advogados associadas e 12 mil membros individuais, a FIA não só tem assento como é ouvida na Organização dos Estados Americanos, e marcou presença em acontecimentos recentes importantes, como nas eleições que tiraram do poder o antigo presidente de Honduras, Manuel Zelaya, depois de um golpe de Estado, assim como nas últimas eleições parlamentares na Venezuela. Em ambos os casos, a entidade fiscalizou e referendou os pleitos. Além da responsabilidade política, a Federação ainda faz o papel de Ordem dos Advogados em países onde não há sequer uma organização central da classe. Ou seja, fica sob sua tutela a defesa das prerrogativas dos profissionais.

Junto com a função de comandar esse transatlântico, o advogado ganhou de presente a condução de uma solução para o imbróglio internacional da liberalização das fronteiras para serviços jurídicos. Países que exportam empresas querem derrubar o impedimento de que escritórios estrangeiros prestem serviços onde estão as filiais. A regra internacional é que um escritório estrangeiro até pode se instalar em outro país, mas só pode se envolver em questões ligadas à sua nação de origem. Nos Estados Unidos, por exemplo, há quem lute para derrubar as barreiras, para que as empresas possam levar para além das fronteiras suas bancas de confiança.

No Brasil, a OAB já firmou posição contra a novidade. O Tribunal de Ética da OAB-SP definiu, neste ano, que mesmo contratando mão-de-obra brasileira, uma banca estrangeira não pode demandar em causas que envolvam a nossa legislação. Se para alguns isso significa reserva de mercado, para outros quer dizer proteção ao cliente nacional, já que a OAB não poderia fiscalizar escritório com sede fora do Brasil. "Tenho clientes indo ao mercado europeu não para vender serviços, mas para comprar sociedades. Talvez esteja aí a resposta de como a OAB deva se pronunciar com relação à abertura de mercado, porque daqui a pouco seremos nós que teremos interesse em advogar fora", pondera Almeida, que garante ainda não ter opinião formada sobre o assunto.

A questão esteve em pauta no congresso organizado pela FIA, que ocorreu em junho no Brasil. Em agosto, o tema voltou a ser discutido em uma reunião fechada entre membros da entidade e o presidente da OAB, Ophir Cavalcante. Na União Europeia, não existem barreiras para membros do bloco. No resto do mundo, ainda não se chegou a um consenso.

Leia a entrevista:

ConJur — O que é a Inter-American Bar Association e quem faz parte dela?
André de Almeida —
Em português, seria Federação Interamericana de Advogados. Ela foi fundada em 1940, em Washington D.C., por uma série de instituições que, naquela época, representavam os advogados da América. A American Bar Association já tinha um comitê interamericano que congregava advogados de todas as áreas do Direito para discussões importantes. Esse comitê cresceu muito e se segregou e, a partir do próprio convite da American Bar Association, virou uma associação à parte. Diversas ordens e colégios de advogados de vários países assinaram a ata de fundação. Hoje, quem faz parte são os membros de todas as associações de advogados de todos os países da América, que são aproximadamente 100 entidades, assim como milhares de advogados que são membros individuais. É algo bonito, de importância histórica.

ConJur — Por quê?
André de Almeida — Em 1940, o mundo era muito complicado, estávamos em um período pré-Segunda Guerra mundial, em que o fascismo fincava o pé nas Américas. Alguns dizem que chegou a ficar por aqui durante algum tempo, com Getúlio Vargas, por exemplo. Havia influências comunistas, fascistas, e toda a americana. A Inter-American Bar Association surge nesse momento cultural com o objetivo central de proteger o Estado de Direito.

ConJur — E hoje, quais são os objetivos da entidade?
André de Almeida — Promover o mundo jurídico das Américas, o intercâmbio cultural, a troca de informações e jurisprudências, como qualquer outra instituição de advogados. Ao longo do tempo, ela passou também a ter objetivos de geração de negócios, de networking, de divulgação de trabalhos acadêmicos, além da proteção ao Estado de Direito.

ConJur — Por que a Espanha também faz parte da Inter-American Bar Association?
André de Almeida — A entidade tomou uma decisão nos anos 1990 de aceitar a filiação de quem quisesse no mundo inteiro, tanto de membros individuais quanto de associações. Chegou-se à conclusão de que o objetivo era discutir o Direito nas Américas, o que todos os polos, inclusive os de fora das Américas, podem fazer. Espanha, Portugal e França têm diversos interesses jurídicos e econômicos nas Américas. Por isso, o colégio de advogados de Paris e a Ordem dos Advogados de Madri fazem parte da FIA e participam de congressos, com direitos iguais, inclusive para votar. São 12 mil membros individuais, mais todas as associações de advogados de todos os países da América, inclusive Cuba. Nós temos mais membros que a OEA [Organização dos Estados Americanos], que não tem Cuba como membro.

ConJur — O Brasil participou da fundação da FIA?
André de Almeida — Em 1940, sequer existia a Ordem dos Advogados do Brasil. Por isso, a OAB não estava presente na constituição, mas sim o Instituto dos Advogados do Brasil, o IAB. A OAB logo depois se filiou à FIA.

ConJur — A função da FIA não se acumula com a da OAB, por exemplo?
André de Almeida — Nem todo país tem uma instituição jurídica organizada como a brasileira, onde há um colégio de advogados central, que é a OAB, que representa a classe. Cada país tem uma regulamentação. Em alguns lugares existe filiação obrigatória ao colégio de advogados, como no Brasil, com o Exame de Ordem. Em outros lugares, não. No Brasil, são membros da FIA duas instituições de advogados: a OAB e o IAB. Na Argentina, por exemplo, não existe uma unidade central, mas o colégio de advogados de Buenos Aires, o colégio de advogados de Cordoba, e por aí vai.

ConJur — O senhor assumirá no ano que vem a posição de presidente da Inter-American Bar Association. Qual o significado que essa eleição tem para o advogado brasileiro?
André de Almeida — Em primeiro lugar, a instituição tem uma reputação internacional importantíssima, e a Ordem dos Advogados do Brasil é muito forte no país, mas deixou de se representar no exterior. Ela não tem oportunidade de se manifestar em grandes questões internacionais. E ter um brasileiro como porta-voz da Ordem dos Advogados do Brasil, advogando e representando os advogados brasileiros juntamente com a OAB, é algo muito bom para a Ordem.

ConJur — A escolha do seu nome é um reconhecimento do momento econômico pelo qual passa o país?
André de Almeida — Sim. O Brasil vive um período muito bom aos os olhos do mundo inteiro, pelo menos de um ponto de vista superficial. O país é bem visto no aspecto econômico, institucional, jurídico, tecnológico, agrícola. É um país que demonstra suas virtudes. Isso tem um significado ainda maior porque é muito difícil ser eleito presidente da FIA. Normalmente, os presidentes dos organismos internacionais vêm de países satélites, menores. É comum o presidente ser da Nicarágua, de El Salvador, de Porto Rico, do Paraguai, porque são representantes que vêm sem o respaldo das suas associações de advogados, e estão lá para trabalhar para todos. Por isso, é raro haver um presidente brasileiro, americano, canadense, mexicano.

ConJur — Houve outros presidentes brasileiros?
André de Almeida — Antes de mim, nos 70 anos da FIA, de 1940 a 2010, apenas quatro brasileiros presidiram. Os mandatos ocorreram nos anos 1940, 1960 e 1990. O último foi o Dr. Paulo Lins e Silva, advogado de renome na área de Direito de Família no Brasil, que ainda é membro atuante da entidade. Eu assumo no dia 1º de janeiro do ano que vem, e fico no mandato durante dois anos, até 2012.

ConJur — Como funciona a eleição?
André de Almeida — O processo eleitoral, na verdade, é para o cargo de vice-presidente. Você fica como vice-presidente por um tempo, e depois vira presidente automaticamente. A FIA tem dois órgãos diretivos: um conselho de membros individuais, com 102 membros, e a assembleia geral, onde todas as representações de advogados, as Ordens de advogados, têm assento. Esses dois órgãos centrais se juntam em paralelo e escolhem um vice-presidente, por voto direto. Há muita tensão, muita disputa nas eleições. Conta também o fato de que, em alguns países, existe muito conhecimento do que faz a Inter-American Bar Association, mas no Brasil nem tanto.

ConJur — E a que o senhor atribui a sua nomeação?
André de Almeida — Coincidiram o local certo, a hora certa, e a pessoa certa no comando da OAB, que é o Dr. Ophir Cavalcante, que tem uma visão correta. Sou jovem, o que é ótimo para FIA, que queria uma figura com essa característica. Ao mesmo tempo, sou membro da FIA há 23 anos, e membro do conselho há 16. Trabalho no comitê executivo há oito anos. Tenho uma história na associação.

ConJur — Quando ingressou?
André de Almeida — Ainda como estudante de Direito. Eu morava em Washington, trabalhei durante muito tempo lá. Estudei Direito durante grande parte da minha vida nos Estados Unidos, e me formei na Georgetown University. Trabalhava na OEA e meu chefe era o secretário geral da Inter-American Bar Association. Foi ele quem me apresentou a associação. Ou seja, apesar de ser jovem, tenho uma história na FIA muito mais longa do que muitas pessoas que estão lá.

ConJur — Por que o trabalho da FIA é pouco conhecido no Brasil?
André de Almeida — Primeiro, por conta da força da OAB. A Ordem é um grande ombudsman nacional, e tem uma força inigualável como representante da classe dos advogados. Isso faz com que ela seja a voz maior da representação da advocacia no país. Em outros países, como Colômbia, Venezuela, México, Panamá e Argentina, não existe uma central dos advogados, uma Ordem dos Advogados atuante como a brasileira, o que faz com que haja uma série de pequenos colégios de advogados, pequenas associações, que unidas formariam uma Ordem nacional. Mas elas não fazem isso. Então, a Inter-American Bar Association, nesses locais, tem uma postura muito atuante, devido ao vácuo de representação local e carência de liderança.

ConJur — Qual a relação da FIA com a OAB?
André de Almeida — A OAB é membro atuante da FIA, uma das maiores vozes de expressão da entidade. O presidente atual da OAB, Ophir Cavalcante Junior, esteve presente no congresso que promovemos no Rio de Janeiro este ano, e fez política para minha eleição. Sou eternamente grato a ele pela posição. Dizem até que minha eleição não foi a do André, mas da OAB.

ConJur — Quais os focos de atuação da entidade?
André de Almeida — O primeiro é o acadêmico. Seminários, conferências, palestras, congressos e resoluções, sobre toda a produção intelectual relacionada a diversos temas do Direito, tanto tradicionais quanto novos, como energia nuclear, genética e aquecimento global. Também existe uma veia política muito forte. A Federação Interamericana de Advogados, criada em 1940, tem assento e voz na OEA, na Corte Interamericana de Direitos Humanos e em sete parlamentos de congressos latino-americanos. Em diversas ocasiões, nos manifestamos em defesa do Estado de Direito, contra a ditadura, contra a violação de prerrogativas dos advogados, sempre na tentativa de manutenção do Estado mais ou menos regulado pelo Direito, para que haja harmonia dos três poderes. A FIA atua como um vigia permanente.

ConJur — Quais os trabalhos mais recentes?
André de Almeida — Nas eleições deste ano na Venezuela, a FIA mandou 20 emissários, que são observadores internacionais que se sentam junto às autoridades da eleição. O mesmo aconteceu em Honduras, no ano passado. A FIA enviou 20 emissários, e emitiu um parecer validando o processo daquela eleição. Outra frente de atuação é o networking, o conhecimento de advogados. Cada vez mais escritórios de negócios, firmas de advogados, são membros da FIA para trocar informações, opiniões jurídicas e fazer relacionamentos, buscar contatos e parcerias internacionais. A FIA pode vir a ser um grande gerador de clientes e contatos para qualquer pessoa.

ConJur — Em junho, a entidade organizou seu quarto congresso no Brasil. Quais foram as grandes discussões?
André de Almeida — Hugo Chaves tem sido um grande e costumeiro assunto, assim como a situação em Honduras e a questão americana da liberação dos serviços jurídicos estrangeiros. Esse assunto também está em pauta na Europa. A queda de barreiras internacionais faz com que caiam também as limitações tarifárias e de trabalho. Existe uma tendência de liberação dos serviços de modo geral, inclusive serviços jurídicos. O que se questiona é se uma firma norteamericana poderia prestar serviços no Brasil, com advogados brasileiros, o que hoje a lei não permite.

ConJur — Os EUA já chegaram a algum termo?
André de Almeida — Lá existe a intenção de se promover o convencimento para a abertura do mercado. A Inter-American Bar Association tem a intenção, e isso é formal, de fazer com que o advogado americano e o escritório americano possam se instalar em outros países e exercer a advocacia neles, contando com a mão-de-obra local. Essa é a tendência ideológica. Mas existe restrição em setores de vários países, inclusive no Brasil, contra tal postura.

ConJur — Houve uma decisão recente da Turma Deontológica do Tribunal de Ética da OAB-SP contra a abertura. Qual o interesse de um escritório estrangeiro em atuar dentro de um país cuja legislação seus advogados não dominam?
André de Almeida — Não tenho ainda solidificado o que imagino que seja melhor, mas vou dizer o que as pessoas dizem. Aqueles que defendem a liberdade de exercício na advocacia internacional, justificam que um cliente internacional ficaria mais bem assistido com advogados que ele já conheça e que conheçam bem o negócio dele. Assim, se uma empresa norteamericana quer desenvolver uma atividade econômica aqui, recorre à assistência jurídica do seu próprio escritório também aqui. E esse escritório se valeria de mão-de-obra local para prestar seu serviço jurídico. No Brasil, isso não é permitido pela OAB, que interpretou um provimento que estabelece que o escritório de advocacia estrangeiro pode se estabelecer no Brasil, mas não pode prestar serviço jurídico no Brasil, mesmo que tenha sócios brasileiros.

ConJur — A não ser que trabalhe apenas com questões internacionais.
André de Almeida — Exatamente. O escritório de advocacia estrangeiro está apto a se instalar no Brasil apenas para prestar serviços jurídicos a seus clientes de acordo com a lei de seu país de origem. Mas o que acontece na prática é que os escritórios estrangeiros aqui se instalam e se habilitam para prestar serviços segundo as regras, e depois se associam a um escritório brasileiro, dividindo com ele espaço físico, mão-de-obra, telefone, endereço, confundindo as relações e, de uma forma ou de outra, prestando serviço jurídico no Brasil para brasileiros.

ConJur — Como está a discussão em outros países?
André de Almeida — Nos Estados Unidos e na Inglaterra, principalmente, existe uma tendência claríssima de fazer com que haja flexibilização da regulamentação, para que a abertura possa existir. Mas há países muito mais restritivos. Na Europa, de modo geral, está liberado. Os maiores escritórios franceses, italianos, espanhóis são originalmente britânicos, que se instalaram lá legalmente.

ConJur — Hoje, um escritório paulista abre uma filial no Nordeste porque um de seus clientes demandou. Não funciona da mesma forma?
André de Almeida — Existem argumentos muito consistentes dos que defendem a restrição. Impedir que um advogado estrangeiro preste serviço aqui não é uma reserva de mercado ao advogado brasileiro, mas uma proteção ao cliente brasileiro. Só pode prestar serviço jurídico no Brasil aquele que tem registro na OAB, que prestou o exame da nossa associação e está apto a advogar em todo o território nacional. Permitir que escritórios estrangeiros, de sócios estrangeiros, e que portanto não têm permissão para advogar no Brasil, abram subsidiárias no Brasil e contratem mão-de-obra brasileira, tira um pouco a carga de responsabilidade que está embutida no serviço jurídico. Se você tira a responsabilidade do escritório, fica apenas a do advogado. O escritório estrangeiro vem e contrata mão-de-obra local, mas ele próprio não tem responsabilidade, porque não é aqui instalado.

ConJur — Nos últimos anos, o Brasil tem ensaiado um protagonismo como porta-voz internacional de alguns países, mas se calou diante de violações claras de direitos humanos em nações irmãs. Como presidente brasileiro de uma organização como a FIA, qual a sua opinião sobre o comportamento do Itamaraty?
André de Almeida — O papel do Brasil no caso de Honduras foi vexaminoso. Um país com uma história diplomática como a do Brasil tomar a postura que tomou, de não apoiar uma eleição democrática, foi um desserviço à tradição do país em relações exteriores. A FIA participou como observadora e aprovou o pleito. O Ministério de Relações Exteriores tem deixado muito a desejar. A FIA tem diversos pronunciamentos contrários à ditadura que existe em Cuba, por exemplo. Reprova a ditadura de Chaves na Venezuela, o que o governo brasileiro não reprova. Reprova o terrorismo das Farc [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia], o que o Brasil não reprova. Na Venezuela, diversas vezes a FIA se manifestou contra reeleições sem fim e contra a criação de vagas na Suprema Corte para diluir votos contrários.

ConJur — Do ponto de vista jurídico, uma eleição não é prova da presença da democracia?
André de Almeida — O espírito republicano tem tudo a ver com a alternância de poderes. Não existe república sem alternância de poderes. Por mais que haja eleições na Venezuela ou em Cuba, ter um resultado não quer dizer que exista democracia. Isso acontece porque, muitas vezes, as instituições são frágeis, os congressos são frágeis, as supremas cortes são frágeis, as instituições de representação de advogados são frágeis. O problema institucional é muito sério.

ConJur — No Brasil, a FIA também discordou do governo brasileiro em relação ao sequestro do menino americano Sean Goldman pela mãe brasileira, que o trouxe ao Brasil sem o conhecimento do pai, David Goldman.
André de Almeida — Exatamente. A criança é filha de uma brasileira, que faleceu, e de um americano. A Justiça brasileira autorizou a estadia do menino no país até a solução final do litígio pela guarda. Naquele momento, houve uma pressão violentíssima internacional, acusando o Judiciário brasileiro. A FIA logo se pronunciou dizendo que o Judiciário agiu corretamente, respeitando a lei local, que dá direito a uma das partes de pedir uma liminar e conseguir. No fim, a criança acabou mudando para os EUA, mas a FIA se pronunciou em defesa da família brasileira, da criança brasileira e do Judiciário brasileiro, de forma a preservá-lo de pressões políticas externas.

ConJur — A FIA não seria suspeita para opinar nesse caso, uma vez que seu ex-presidente, que hoje é próximo dos quadros diretivos da entidade, o advogado Paulo Lins e Silva, é padrasto do menino e brigava na Justiça brasileira pela guarda?
André de Almeida — De maneira alguma. Foi uma opinião técnica, jurídica, embasada. A FIA não opinou sobre o mérito, se a criança deveria ficar aqui ou lá. Havia uma decisão liminar da Justiça do Rio de Janeiro dizendo que enquanto não houvesse uma decisão final, o filho ficaria no Brasil. Isso é muito normal. Imagine transportar uma criança de jurisdição para depois julgar o processo. Depois que se julga, como se poderá retroceder? É difícil. Qualquer juiz teria dado a mesma liminar. Naquele momento, o juiz da causa sofreu uma pressão política violentíssima do consulado americano, da embaixada americana, da imprensa americana. O que a FIA fez foi acalmar a situação, dizendo que o processo estava sendo seguido corretamente. O fato de a liminar ter sido dada não quer dizer que, no fim, o processo seria julgado a favor dessa ou daquela pessoa. Tanto que foi julgado contra a família brasileira, e a criança foi embora. O papel da FIA foi de pedir respeito ao Judiciário. Fizemos uma resolução, e fomos duramente atacados. A entidade é um colégio muito grande, não é dominada por grupo algum. Diversas forças diferentes assinaram a resolução. No fim das contas, o Judiciário foi respeitado, a justiça foi feita e a criança foi devolvida como a lei mandava.

ConJur — Entidades de advogados como a FIA ou a OAB devem representar advogados ou a sociedade como um todo? Sob a justificativa de fazer frente à impunidade, a Ordem defendeu a prisão preventiva do governador cassado do Distrito Federal, José Roberto Arruda, por exemplo, o que teoricamente vai de encontro ao direito ir e vir e ao da presunção de inocência. Isso não é contraditório?
André de Almeida — Assim como a OAB, a FIA é uma associação de advogados, mas que presta serviço à sociedade. É muito pouco dizer que a OAB representa somente os advogados. Durante a ditadura militar, a OAB não representou só advogados, mas a sociedade brasileira. Essa é uma característica de associações jurídicas sérias. Elas representam seus membros, mas protegem a todos. E o Direito é uma coisa muito séria, a Justiça é um assunto sério. Obviamente, a FIA não se manifesta sobre temas políticos locais. Ela não vai se manifestar sobre a prisão de um governador do Distrito Federal brasileiro, e nem de um governador peruano. A FIA se manifesta com relação a temas internacionais das Américas. É, por meio de advogados, representar a todos nós.

ConJur — É o mesmo caso da Lei da Ficha Limpa, que a OAB defendeu, mas que para muitos especialistas em Direito Eleitoral não poderia vigorar a partir das eleições deste ano, por mudar as regras no meio do jogo?
André de Almeida — A Ordem dos Advogados do Brasil tem autonomia para representar um advogado. É uma associação que congrega mais de 500 mil. É natural que haja advogados que discordem de uma ou de outra posição da Ordem, seria impossível que não houvesse. O fato é que a Ordem é um animal político, e tem uma relevância política no plano nacional. E ela só tem essa respeitabilidade porque se manifestou ao longo da história. Eu tenho muito orgulho de ser membro da Ordem dos Advogados do Brasil, ainda que discorde de alguns de seus papeis. Mas, no geral, suas decisões se mostram muito mais acertadas que erradas. Todos nós advogados pagamos algo para a Ordem, mas falar que ela protege o advogado é menosprezar a grandeza da entidade. Ela protege a sociedade brasileira, é um serviço que a advocacia faz para toda a coletividade.

ConJur — O número de advogados no Brasil é um dos maiores do mundo. O Japão, que tem uma economia muito maior do que a nossa, tem um décimo da quantidade que temos de advogados. Isso reflete nossa cultura litigante?
André de Almeida — O Direito caminha muito próximo da organização da sociedade de um país. Eu não vejo tanta litigiosidade no Brasil. O que eu vejo é uma grande beligerância. O litígio demanda muito mais tempo de trabalho do que deveria demandar. Isso porque, muitas vezes, o Judiciário deixa de fazer o que deveria fazer, que é decidir. O advogado tem prazos, 15 dias para contestar, dez dias para um recurso, cinco para outro. O juiz não tem prazo para decidir. Se existe um prazo simbólico no Código de Processo Civil, é desrespeitado. É frustrante um contencioso que não se resolve porque o Judiciário não decide. Outra razão para a demora do Judiciário é o fato de o Estado, maior demandante, recorrer mesmo sabendo que vai perder o processo. E depois que perde, não paga, o que é uma ilegalidade contra a qual a OAB se posiciona.

ConJur — Mas a quantidade de advogados não impressiona?
André de Almeida — Nem todos os filiados à OAB estão advogando. É uma tendência no Brasil se fazer o curso de Direito para concorrer a uma função pública. Nós temos um sem número de advogados que não advogam. Além disso, uma condição interessante no Brasil e em outros países das Américas é que um bom número de advogados atua longe dos grandes centros. Isso é extremamente positivo. Não interessa onde você mora, não precisa sair da cidade para ter um advogado. É assim que tem que ser. Já vi muitas pessoas terem que sair da cidade para conseguir tratamento dentário, fazer uma cirurgia, enfaixar uma perna, mas para litigar não. As pessoas não precisam sair para ter acesso à Justiça.

ConJur — Com uma maior integração no Mercosul, que portas se abrem para escritórios brasileiros?
André de Almeida — A expectativa é excepcional. Se a economia se abre, o mundo jurídico segue a mesma tendência. Eu, por exemplo, trabalho com clientes internacionais há 20 anos, em fusões e aquisições e em transações internacionais. Sempre presenciei capital estrangeiro vindo ao Brasil. Advoguei representando tanto capital estrangeiro no Brasil quanto capital brasileiro se relacionando com o estrangeiro. No entanto, de cinco anos para cá, isso mudou completamente. Comecei a representar o cliente brasileiro fora do Brasil. Tenho clientes pessoas jurídicas comprando empresas no México, nos Estados Unidos, na Rússia, no Oriente Médio. Tenho clientes indo ao mercado europeu não para vender serviços, mas para comprar sociedades. Começo a contratar escritórios franceses, americanos, russos, argentinos para trabalhar para clientes brasileiros. Essa mudança de realidade vem a reboque da economia. Por isso a expectativa no Mercosul é maravilhosa.

ConJur — O Brasil exportará advogados ou subcontratará no exterior?
André de Almeida — Talvez esteja aí a resposta de como a OAB deva se pronunciar com relação à abertura de mercado, porque daqui a pouco seremos nós que teremos interesse em advogar fora. Neste escritório, temos cliente que faz obras de engenharia na Costa Rica, outro que comprou uma indústria de calçados na Argentina, outro que está comprando uma fábrica de processamento de frangos na França, outro que se instalou em Dubai no ano passado e está comprando pequenos empreendimentos no setor financeiro. Nesses casos, o que acontece com o advogado brasileiro? Nós vamos, representando nosso cliente, contratamos o advogado local e demandamos dele o serviço para nos assessorar. Eu trabalho em dez países e a tendência é que isso vigore cada vez mais. O que é maravilhoso para escritórios que estiverem preparados intelectualmente.

ConJur — O que os escritórios precisam fazer para se preparar?
André de Almeida — Primeiro, ter advogados que falem diversos idiomas. Para assessorar, é preciso falar o idioma. Outro requisito é conseguir pensar com relação às estruturas. Você não pode achar que vai demandar lá fora da mesma forma que faz aqui. É uma fase nova no Brasil. O empresário brasileiro está aprendendo e o advogado também.

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