Briga de poder

Controle da Polícia causa atrito entre instituições

Autor

12 de abril de 2010, 8h15

A velha rivalidade entre policiais federais e procuradores da República por conta da fiscalização externa que o Ministério Público Federal entende ser sua obrigação virou uma batalha de documentos. E ainda: provocou uma dura nota do subprocurador da República Wagner Gonçalves, coordenador da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão e Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público Federal e a recomendação do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, para que seus pares não se intimidem. Gurgel defendeu que integrantes do MP cumpram o que a Constituição determina — fiscalização da atividade da Polícia Federal.

Na nota divulgada no dia 9 de abril, Gonçalves afirma que “num momento em que todos os órgãos e instituições estão sujeitos a controles externos (exemplos recentes CNMP e CNJ), o DPF, por sua Direção Superior, reafirma uma postura autoritária, que não contribui para a democracia, os direitos humanos e o próprio funcionamento do sistema penal”. Para ele,“a Direção da Polícia Federal, num ato de força, procura, na prática, cercear a atuação dos Procuradores da República no que se refere ao controle constitucional de sua própria atividade de polícia”.

A nota surgiu em resposta a uma reportagem publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo. A informação foi a de que a PGR e o DPF criaram uma comissão para ajustar o controle externo das atividades policiais pelos procuradores. A notícia, que procuradores dizem ter sido plantada no jornal por policiais federais, foi o último lance de uma disputa antiga que voltou a tona no início deste mês com a publicação da Resolução 1/2006 do Conselho Superior do DPF, no dia 26 de março.

Nas justificativas, a resolução fala da “importância de se preservar e fortalecer a harmonia e a boa relação institucional entre a Polícia Federal e o Ministério Público” e da necessidade de “se evitar abusos ou excessos no exercício das atividades funcionais entre autoridades policiais e membros do Ministério Público”. Em seguida, especifica quais documentos podem ou não ser requisitados pelo MPF em nome do exercício da fiscalização externa.

Para a Procuradoria da República, a resoluçao determina como se dará a fiscalização dos procuradores da República sobre suas atividades. Segundo o subprocurador Gonçalves, a resolução é um “ato ilegal, antijurídico e inconstitucional, usurpando funções do próprio Poder Legislativo”. Em outras palavras, "um absurdo jurídico", como definiu a assessores o procurador-geral da República, Roberto Gurgel. Na quarta-feira, por meio de Nota Técnica do Conselho Nacional do Ministério Público, ele criticou a iniciativa da Polícia Federal e reafirmou o poder fiscalizatório do órgão. Ele alfinetou, ainda, os policiais federais ao lembrar que “não cabe aos órgãos policiais controlados estabelecer restrições ao exercício do controle externo de suas atividades”.

Diálogos suspensos
A resolução, segundo Gurgel, suspende, pelo menos temporariamente, toda a conversação que a PGR e o DPF vinham tendo no sentido da criação da comissão paritária – com três membros de cada lado – para definir, não a fiscalização da atividade policial que já é determinada em lei, mas formas de fazê-la sem criar atritos entre as instituições. A proposta desta comissão, segundo a nota de Gonçalves, foi maculada com a edição da resolução.

Na resolução, o Conselho Superior do DPF estipulou, entre outras coisas, o tipo de documentos que os procuradores podem ter acesso. Rejeitou, por exemplo, enviar ao MP federal acesso às “medidas de competência do Tribunal de Contas da União e da Controladoria-Geral da União”. Também deixou claro que não seriam atendidos pedidos de documentos considerados administrativos como, por exemplo, as conhecidas “Ordens de Missão – OM”, documento necessário para qualquer diligência policial.

É por meio das Ordens de Missão que os agentes policiais justificam as saídas para investigações. Elas devem estar atreladas a procedimentos investigatórios oficiais, como os inquéritos policiais. Não raro, porém, há caso de OMs feitas sem nenhuma relação com o inquérito, que servem exclusivamente para “forjar investigação” e viram instrumento de barganha ou mesmo extorsão junto às possíveis vítimas.

Esta prática foi adotada, segundo denúncia feita na 6ª Vara Federal Criminal, pelo delegado federal Hélio Kristian Cunha de Almeida, acusado do crime de concussão no processo 2006.51.01.513766-1. Segundo a denúncia assinada pelos procuradores Fábio Seghese, Marcelo Freire e Orlando Monteiro da Cunha, o delegado exigiu “vantagens indevidas em troca de benefícios ou da não-causação de danos em inquéritos já instaurados e sob a sua presidência, bem como promove investigações atípicas, via de regra através de OM (ordem de missão), para, posteriormente, “negociar” com os investigados, em sua grande maioria grandes empresários locais, a instauração formal de IPL”.

Mesmo sendo conhecidos estes casos de utilização de Ordens de Missão para forjar investigações que servem para interesses escuso dos agentes policiais, o Conselho Superior do DPF incluiu as OMs entre os documentos que não podem ser enviados aos procuradores.

Outra limitação determinada diz respeito aos Procedimentos Administrativos Disciplinares (PAD), instaurados pela corregedoria interna do DPF para apurar ilícitos ou falhas administrativas de seus servidores.

De acordo com a resolução, não está previsto no controle externo da PF “atos de gestão e atividades de natureza administrativa, fiscalização contábil, financeira, orçamentária e patrimonial; sindicâncias investigativas e procedimentos administrativos disciplinares; acesso a informações e documentos administrativos, como passaportes, registro de armas, documentos de inteligência, banco de dados, recursos humanos e materiais; memorandos, ofícios, mensagens, e-mails, ordens e relatórios de missão”.

A Resolução, ao que parece, foi uma iniciativa da cúpula do DPF – o documento foi assinado pelos diretores e por todos os superintendentes – às ameaças de alguns membros do Ministério Público de recorrerem à Justiça, até com o pedido de prisão dos responsáveis, diante das negativas de delegados em atender às solicitações feitas pelos grupos de controle externo.

Em 2009, por exemplo, o procurador Marcelo Freire, membro do Grupo de Controle Externo das Atividades Policiais da Procuradoria da República do Rio, entrou com um Mandado de Segurança na 19ª Vara Federal Cível – Processo nº. 2009.51.01.803230-9 – contra o superintendente do DPF no Rio, Ângelo Fernandes Gioia, que seguindo as recomendações do corregedor da instituição, delegado Valdinho Jacinto Caetano, recusou-se a remeter cópias dos Procedimentos Administrativos instaurados contra policiais, como requisitou o procurador.

No seu pedido, o procurador Freire argumentou em juízo:

“(…) Não pretende o MPF com o encaminhamento do ofício já referido imiscuir-se em assuntos de cunho administrativo da Polícia Federal, mas, tão somente tomar conhecimento dos fatos em apuração no âmbito dos procedimentos disciplinares para verificação de duas questões afetas diretamente às suas atribuições:
1ª – Se há fato tipificado como improbidade administrativa apurado em processo disciplinar, sem que tenha sido feita a devida comunicação ao MPF;
2ª – Se foi feita a instauração do correspondente inquérito policial para os casos de procedimentos disciplinares que apurem fatos também tipificados como ilícito penal. (….)

Ora, não é razoável permitir a existência de verdadeiras ‘caixas-pretas’ dentro do aparato policial, onde informações relevantes para os demais agentes da atividade de persecução criminal, o próprio Poder Judiciário e o Ministério Público, sejam mantidas em segredo, o que não condiz com o Estado Democrático de Direito”.

No processo que a juíza substituta Cleyde Muniz da Silva Carvalho colocou em segredo de Justiça, a decisão foi favorável ao Ministério Público. Na sentença de 12 de junho de 2009, ela entendeu que “a atuação do MPF em busca de subsídios para exercer suas funções é legitimada pela Constituição Federal e LC nº 75/93. Assim, pretender excluir o MPF do exame de procedimentos administrativos disciplinares e sindicâncias realizadas na Corregedoria da Polícia Federal constitui ilegalidade, uma vez que cria óbice ao exercício de suas funções institucionais”.

Em seguida, determinou o fornecimento da “listagem atualizada dos procedimentos administrativos disciplinares em curso na Corregedoria da SR/DPF/RJ e relação das sindicâncias patrimoniais instauradas a partir do ano de 2003 até janeiro de 2009, com discriminação dos nomes dos investigados e do tipo de falta funcional apurada, bem como, após a análise de tais documentos, cópia dos procedimentos administrativos disciplinares, sindicâncias e sindicâncias patrimoniais indicadas”.

Por meio da Advocacia-Geral da União, o DPF recorreu da decisão junto ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Não conseguiu suspender a ordem de atender ao pedido. Em conseqüência, vem entregando os documentos pedidos. Agora, porém, na Resolução recém editada, o Conselho Superior de Polícia volta a falar no impedimento de remessa dos mesmos processos administrativos.

Contra-ataque
A maneira encontrada pelo procurador-geral da República Roberto Gurgel – que também é presidente do Conselho Nacional do Ministério Público – para responder à Resolução do DPF foi a Nota Técnica do CNMP. Ela rebate, por exemplo, a tese defendida pelo Conselho Superior de Polícia de que documentos administrativos não são do interesse dos procuradores, uma vez que a fiscalização dos procuradores se resumiria às questões criminais.

A nota não faz referência à tese em si, mas lembra que o controle externo é mais amplo do que a mera fiscalização das questões criminais, devendo abranger a atividade policial como um todo. Nestas atribuições, a nota ressalta que a fiscalização tem por “objetivos, dentre outros, o respeito aos direitos humanos, a prevenção ou correção de ilegalidades e abuso de poder relativos à atividade de investigação criminal e a probidade administrativa no exercício da atividade policial” Ou seja, para investigar a improbidade administrativa são necessários documentos que a polícia diz serem apenas administrativos.

Em outro trecho da Nota Técnica assinada por Gurgel ele alfineta o DPF dizendo que a polícia não tem como definir a forma de ser fiscalizada. Segundo ele, “não cabe aos órgãos policiais controlados estabelecer restrições ao exercício do controle externo de suas atividades, levado a efeito pelo Ministério Público, nem opor embaraços de qualquer natureza ao cumprimento de requisições que lhes sejam dirigidas”.

Não satisfeito com a nota, Gurgel ainda editou a Recomendação 15/2010, na qual sugere aos membros do Ministério Público da União e dos Estados que continuem fazendo o controle externo da atividade policial.

Ele aconselha, ainda, “a responsabilização de servidores públicos que agirem no sentido de impedir, frustrar ou dificultar a prática de atos relacionados ao exercício do controle externo da atividade policial ou que desatenderem as requisições de diligências formuladas nos termos da legislação pertinente, dotando-se as medidas cabíveis no plano criminal, sem prejuízo das providências que se mostrarem pertinentes à luz da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/91).” Ou seja, mandou sua tropa não arrefecer nesta batalha. Agora é aguardado o próximo lance da Polícia Federal nesta guerra que ainda não teve fim.

Leia a Nota do subprocurador Wagner Gonçalves:

A propósito da notícia publicada no jornal o Estado de São Paulo sob o título "PF e procuradores buscam acordo", como Coordenador da 2ª. Câmara de Coordenação e Revisão e Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público Federal venho esclarecer o seguinte:

Houve, realmente, uma reunião entre o Procurador-Geral da República e o Diretor-Geral da Polícia Federal, na Procuradoria Geral da República, quando, após diversos assuntos, discutiu-se a possibilidade da criação de uma comissão de Procuradores e Delegados da Polícia Federal, não para estabelecer regramentos ao controle externo da atividade policial, que já está constitucionalmente regulamentado, inclusive mediante lei complementar, mas para aprimorar o relacionamento institucional; Tal grupo, até a data de hoje, ainda não foi designado;

Causa espécie a este Coordenador e a todos os membros do MPF que a Polícia Federal, mediante ato ilegal, antijurídico e inconstitucional, usurpando funções do próprio Poder Legislativo, além de se utilizar de artigos da Constituição afetos à Presidência da República e a Ministros de Estado, venha a editar a Resolução nº 1/2006, em 26 de março último, por seu Diretor-Geral e Superintendentes Regionais, estabelecendo "como, em que extensão e quais os limites para o Ministério Público Federal exercer o controle externo da atividade policial";

Tal ato, longe de contribuir para o entendimento entre as duas Instituições, macula a proposta da criação da comissão antes mencionada, demonstrando que a Direção da Polícia Federal, num ato de força, procura, na prática, cercear a atuação dos Procuradores da República no que se refere ao controle constitucional de sua própria atividade de polícia. Num momento em que todos os órgãos e instituições estão sujeitos a controles (exemplos recentes CNMP e CNJ), a Polícia Federal, por sua Direção Superior, reafirma uma postura autoritária, que não contribui para a democracia, os direitos humanos e o próprio funcionamento do sistema penal;

Ademais, procura evitar, dentre outros, que o Ministério Público tenha acesso aos procedimentos disciplinares, exatamente aqueles onde há abuso de poder e/ou atos ilegais praticados por policiais. De mais a mais, prende-se a Resolução, absurda e ilegal, em um trecho da lei orgânica do MPF (LC 75/93), olvidando todos os demais artigos da referida lei que instrumenta o MPF para o exercício do controle externo da atividade policial, ferindo de morte o texto constitucional e seus respectivos princípios. É princípio inerente à Carta Magna que à instituição pública a qual é imposta uma obrigação/dever (o controle externo da atividade policial) é-lhe assegurada, por conseqüência, os meios para exercê-lo. Há, assim, além dos poderes explícitos, os poderes implícitos inerentes à atividade de controle deferida ao Ministério Público. Contra esses, a Resolução nº 01/2006 é nonada, data venia;

Esperamos que referida Resolução não reflita a posição da maioria dos agentes e Delegados da Polícia Federal que, por esse Brasil afora, trabalham em harmonia com o Ministério Público para o combate à criminalidade.

Wagner Gonçalves
Subprocurador-Geral da República
Coordenador da 2ª Câmara de Controle Externo da Atividade Policial do MPF.

Leia a nota técnica do CNMP:
MINISTÉRIO PÚBLICO E CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL

O Conselho Nacional do Ministério Público, a propósito do controle externo da atividade policial por parte do Ministério Público, esclarece que:

1. A atuação dos membros do Ministério Público, no exercício da função institucional de controle externo da atividade policial, deve obediência aos termos do art. 129, caput, incs. I, II e VII, da Constituição Federal, art. 9 da Lei Complementar n. 75/93 e art. 80 da Lei n. 8.625/93, bem como à Resolução CNMP n. 20, de 28 de maio de 2007, editada com fundamento no art. 130-A, § 2º, da Constituição Federal, em consonância com os dispositivos constitucionais e legais citados.

2. O controle externo da atividade policial pelo Ministério Público tem como objetivos, dentre outros, o respeito aos direitos humanos, a prevenção ou correção de ilegalidades e abuso de poder relativos à atividade de investigação criminal e a probidade administrativa no exercício da atividade policial.

3. Não cabe aos órgãos policiais controlados estabelecer restrições ao exercício do controle externo de suas atividades, levado a efeito pelo Ministério Público, nem opor embaraços de qualquer natureza ao cumprimento de requisições que lhes sejam dirigidas por parte do Ministério Público, no exercício de suas atribuições institucionais, inclusive nos termos do disposto na Resolução CNMP n. 13, de 02 de outubro de 2006.

4. Os membros do Ministério Público zelarão sempre para que as requisições de diligências e de instauração de inquérito policial, indicados os respectivos fundamentos jurídicos, na forma do art. 129, inc. VIII da Constituição Federal e arts. 7 e 8, incs. I e IX da Lei Complementar n. 75/93 e art. 26, inc. I da Lei 8625/93, sejam cumpridas pela autoridade policial, à qual não cabe substituir-se ao Ministério Público na formação da opinio delicti, nem recusar-se ao cumprimento das requisições do órgão ministerial, sob pena de responsabilização.

ROBERTO MONTEIRO GURGEL SANTOS
Presidente do Conselho Nacional do Ministério Público

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!