Lei de Médici

Políticos também são inocentes até prova em contrário

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5 de julho de 2008, 1h00

Para milhares de candidatos às eleições municipais, o dia 6 de agosto se tornou tão importante no calendário eleitoral deste ano quanto o dia 5 de outubro, quando os brasileiros irão às urnas escolher os dirigentes de suas cidades. Antes de contar com os votos de eleitores, muitos candidatos a prefeito e a vereador têm de contar com os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

O ministro Celso de Mello colocará em julgamento, em agosto, a ação na qual a Associação dos Magistrados Brasileiros pede que o Supremo dê o sinal verde para que a Justiça Eleitoral barre candidaturas de políticos que respondem a processos criminais ou que já tenham sido condenados, ainda que as condenações não sejam definitivas.

A batalha em torno da permissão ou proibição de candidaturas de políticos que respondem a processos tem reflexos diretos em um dos princípios constitucionais mais caros à sociedade: o da presunção de inocência. E, na visão de muitos especialistas, há pouca margem para a interpretação desse princípio. “Ninguém pode ser privado de direitos, exceto em hipóteses excepcionalíssimas, sem condenação transitada em julgado”, lembra um ministro do Supremo.

O Brasil já proibiu, em outras ocasiões, que pessoas concorressem a cargos eletivos pelo simples fato de ter contra si denúncia recebida pela Justiça. A proibição era prevista na Lei Complementar 5, de 1970, aprovada no governo do general Emílio Garrastazu Médici, considerado o mais duro do último ciclo de ditadura militar no país.

O artigo 1º, inciso I, alínea n, da lei estabelecia que eram inelegíveis “os que tenham sido condenados ou respondam a processo judicial, instaurado por denúncia do Ministério Público recebida pela autoridade judiciária competente, por crime contra a segurança nacional e a ordem política e social, a economia popular, a fé pública e a administração pública, o patrimônio ou pelo direito previsto no art. 22 desta Lei Complementar, enquanto não absolvidos ou penalmente reabilitados”.

À época, o TSE considerou a regra inconstitucional, mas o Supremo a confirmou. De qualquer forma, os ministros eleitorais entenderam que impedir o registro de candidatura sem condenação feria a Constituição de 1969 — que foi baixada e posta a serviço da ditadura militar.

Mesmo nos anos de chumbo, a fórmula foi considerada autoritária porque suprimia a elegibilidade de qualquer cidadão pelo simples fato de haver contra ele denúncia recebida por determinados crimes. Coube ao governo nada democrático do general João Figueiredo, o último da série de generais-presidentes, sancionar a Lei Complementar 42/82 e revogar a regra. A partir de então, apenas candidatos condenados eram inelegíveis.

Democracia saudosa

Hoje ganha força a campanha para ressuscitar a Lei de Médici e proibir quem responde a processo criminal de participar de eleições. A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, por exemplo, está em plena campanha pela mudança da Lei das Inelegibilidades atual (Lei Complementar 64/90). Os bispos colhem assinaturas para apresentar um projeto de iniciativa popular que muda as atuais regras.

O texto da CNBB, que não difere muito da lei sancionada pelo general Médici, prevê que serão considerados inelegíveis “os que forem condenados em primeira ou única instância ou tiverem contra si denúncia recebida por órgão judicial colegiado pela prática de crime descrito nos incisos XLII ou XLIII do art. 5º. da Constituição Federal ou por crimes contra a economia popular, a fé pública, os costumes, a administração pública, o patrimônio público, o meio ambiente, a saúde pública, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e drogas afins, por crimes dolosos contra a vida, crimes de abuso de autoridade, por crimes eleitorais, por crime de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, pela exploração sexual de crianças e adolescentes e utilização de mão-de-obra em condições análogas à de escravo, por crime a que a lei comine pena não inferior a 10 (dez) anos, ou por houverem sido condenados em qualquer instância por ato de improbidade administrativa, desde a condenação ou o recebimento da denúncia, conforme o caso, até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena”.

Para o advogado eleitoral Ricardo Penteado, em um país onde se respeita o Estado Democrático de Direito e se valoriza o direito à ampla defesa, uma pessoa processada não perde direitos. Ao contrário, tem diversos direitos garantidos para se defender adequadamente. “A presunção de inocência é uma marca da civilização.”

O advogado defende que melhor juízo é o do eleitor. “O Judiciário não pode tirar do cidadão o direito de fazer um julgamento político em seu foro próprio, com o voto; não pode dizer ao eleitor quais são os candidatos que merecem ou não sua confiança, senão naqueles casos expressamente previstos em lei”, sustenta.

Outro especialista em Direito Eleitoral, o advogado Renato Ventura, é menos radical. Para ele, o princípio da presunção de inocência não é absoluto e, em determinados casos, mesmo sem condenação transitada em julgado, a Justiça Eleitoral deve ter o poder de barrar candidaturas. “Mas nunca apenas com base em processos, porque aí se criaria uma indústria de processos temerários apenas para prejudicar adversários políticos”.

De acordo com o advogado, contudo, isso não seria necessário se o Judiciário cumprisse o princípio constitucional da razoável duração do processo. Ou seja, se os candidatos já estivessem condenados ou absolvidos, não haveria o que discutir. Mas nem mesmo a morosidade do Judiciário é motivo aceitável para que a Justiça Eleitoral antecipe ou substitua o julgamento da Justiça comum.

Eleitores privilegiados

Autora da ação que pode mudar as listas de candidatos, a AMB admite parte da culpa pela lentidão judicial, mas aponta que a Justiça não responde a contento à demanda por diversos fatores. Entre eles, a legislação aprovada por maus políticos que permite uma infinidade de recursos judiciais que impedem o trânsito em julgado das condenações. Um erro não justifica outro erro.

De acordo com o juiz Paulo Henrique Machado, secretário-geral da AMB e coordenador da campanha Eleições Limpas que a entidade promove, diante da realidade de que “é difícil haver o trânsito em julgado das decisões”, é preciso atuar para impedir que maus políticos ocupem cargos públicos.

“O princípio da presunção da inocência, quando se trata do processo eleitoral, deve ser mitigado, confrontado com outros princípios constitucionais como os da moralidade e da transparência”, afirma Machado.

Na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental ajuizada no STF, a AMB argumenta que a Lei das Inelegibilidades não foi recepcionada depois das mudanças constitucionais com a promulgação da Emenda Constitucional de Revisão 4, de 1994. A Emenda modificou o parágrafo 9º, do artigo 14, da Constituição, que passou a ter a seguinte redação: “Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.

A intenção dos juízes é fazer com que a Justiça Eleitoral analise caso por caso em vez de fixar jurisprudência no sentido de que candidato com processo ainda em andamento pode se candidatar. A AMB pede liminar para que o Supremo “fixe como condição e como modo de interpretação dos preceitos fundamentais, que caberá à Justiça Eleitoral sopesar a gravidade das condutas apontadas na lei complementar, mesmo sem trânsito em julgado, para deliberar pela rejeição ou não do registro do candidato”.

De acordo com a entidade, ao determinar que a lei complementar leve em consideração a vida pregressa dos candidatos para determinar as hipóteses de inelegibilidade, a emenda permite que se analisem processos mesmo sem condenação definitiva.

Na visão do advogado Ricardo Penteado, contudo, a expressão “vida pregressa do candidato” da emenda de revisão não significa a existência de processos e sim de condenações definitivas. “Essa emenda não poderia jamais alterar uma cláusula pétrea da Constituição, segundo a qual ninguém pode ser considerado culpado, senão por sentença transitada em julgado”, afirma.

Direitos na balança

O julgamento da ação da AMB no Supremo colocará em rota de colisão o princípio da presunção da inocência com o da moralidade pública. Nas últimas eleições presidenciais, os dois princípios se enfrentaram no julgamento do TSE sobre o caso de Eurico Miranda, que respondia a oito ações criminais, mas não tinha nenhuma condenação definitiva.

Na ocasião, dois ministros do STF — Marco Aurélio e Cezar Peluso — votaram em favor da presunção da inocência. Carlos Britto votou contra a candidatura do ex-deputado federal, privilegiando o princípio da moralidade pública.

Para Britto, os direitos políticos não são pessoais. São da coletividade. Logo, é necessário levar em conta a idoneidade moral daquele que pretende representar a população, como no caso de qualquer outro servidor público. Britto ressaltou que a Constituição jamais pretendeu “imunizar ou blindar candidatos sob contínua e numerosa persecutio criminis”.

Paulo Henrique Machado, o secretário-geral da AMB, defende a tese: “Se um juiz que tem uma inscrição indevida em cadastros de restrição ao crédito não pode ser nomeado, mesmo depois de se submeter a um exigente concurso público, por que um político pode se candidatar com diversas ações e até condenações criminais não definitivas?”, questiona.

Mas a posição de Britto é vencida. A tese de que só é possível restringir direitos políticos com condenação transitada em julgado, encabeçada pelo ministro Marco Aurélio, prevaleceu em 2006. Este ano, o TSE voltou a analisar o caso. Carlos Britto defendeu de novo o princípio da moralidade pública, foi acompanhado pelo ministro Joaquim Barbosa, mas foi vencido pela maioria.

A tendência no Supremo é a de privilegiar a presunção de inocência, sobretudo em casos criminais. Diversos precedentes da Corte caminham nesse sentido. O próprio ministro Celso de Mello, relator da ADPF ajuizada pela associação de juízes, já decidiu em outras ocasiões que a presunção de inocência aplica-se não só no processo penal, mas também em processos administrativos.

Recentemente, no julgamento do Recurso Extraordinário 482.006, os ministros consideraram inconstitucional lei de Minas Gerais que previa a redução de vencimentos de servidores públicos estaduais processados criminalmente. Na ocasião, Celso de Mello observou que a decisão mostrava que “o princípio da não-culpabilidade projeta-se para além de uma dimensão estritamente penal, alcançando quaisquer medidas restritivas de direitos, independentemente de seu conteúdo”.

É um indício da posição do relator da causa da AMB. Há o argumento de que nenhum direito é absoluto, o que é fato. Mas o STF já decidiu em outras ocasiões que princípio da presunção da inocência não se esvazia progressivamente. Ou seja, condenação em primeira instância não vale. Ou a condenação é definitiva ou os direitos políticos não podem ser restringidos.

A Corte também já decidiu em outras oportunidades que não se pode extrair de um processo em andamento uma conseqüência negativa ao réu. O entendimento é o de que o fato de existirem inquéritos, ações e até condenações em primeira instância contra determinada pessoa, não significa necessariamente que ela é portadora de maus antecedentes.

Até porque o Supremo, diversas vezes, absolveu réus cujas condenações haviam sido mantidas por todas as instâncias que antecederam seu julgamento.

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