Incompatível com a República

A reeleição é preocupante e muito prejudicial ao país

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9 de setembro de 2006, 16h27

De todas as questões que se fiam pelo ideário republicano e que traduzem, no essencial, alternância no exercício do Poder Político, impessoalidade referenciada em Lei de conteúdo geral e transparência, a reeleição acaba sendo a mais problemática e, por isso, preocupante bem como prejudicial ao país.

A pergunta que não quer calar diante desse quadro republicano de fachada diz com a recorrência das pesquisas de intenção de voto altamente favoráveis aos extratos do próprio Poder e até mesmo com as vitórias, por estranha antecipação, de governantes que já configuram o establishment. Não é preciso alta indagação para constatar que esse perfil social é determinado por facilidades de ocasião, ou seja, programas de governo que se esforçam em garimpar a satisfação subjetiva do eleitorado mais do que com a proposição de políticas públicas condizentes com o desenvolvimento integral da sociedade a que servem. Agrava esse quadro o cenário de desigualdades e injustiças sociais em que, no Ocidente, gravita a periferia econômica do mundo.

Todavia, mais do que tudo, a tendência de se reconduzir os governantes às cadeiras por eles já ocupadas é corolário da continuidade de seu próprio exercício, a dizer, do prestígio da função exercitada. Com efeito, reunindo o governante não somente o seu staff político-administrativo, suas comodidades próprias da investidura, suas redes de comunicação, transporte e logística, por mais separadas que sejam de outras tantas de índole partidária, é muitíssimo difícil deixar de ocorrer confusões práticas acerca de ordens que são, em teoria, inconciliáveis, mas que se dirigem a favorecer um só e único destinatário, ainda que sob uma dupla fundamentação: de Estado e de campanha. Por isso mesmo, o processo eleitoral quando incorpora a possibilidade de reeleição de governantes, com ou sem desincompatibilização, sofre um claro desequilíbrio, pois as forças políticas em debate são igualmente desiguais, independentemente da ciclotímica questão do poder econômico.

Os riscos de um governante ser confundido com o candidato que ele também representa não são tão grandes e tão severos do que os riscos que um candidato venha a confundir-se com um governante. Em meio a uma campanha, o governante-candidato não deixa de sê-lo e bem por isso todo ato de governo por ele exercido é tido, efetivamente, como um ato de campanha até porque um governante que pretende reeleger-se tem na sua Administração, regra geral, a razão de seu próprio discurso, sobretudo de sua propaganda. Deste modo, é uma ilusão acreditar que uma simples peça publicitária de tipo institucional, ao topografar claramente o governo que a patrocina, não aproveite aos propósitos de campanha política do governante que aspira reeleger-se.

Esse tipo de exploração midiática, a par de compreensível do ponto de vista prático, conspira, na verdade, contra o ideário da República, sobretudo em sociedades tidas como periféricas em que a medida dos acontecimentos sociais não costuma ser costurada a partir do emprego de raciocínios abstratos, eminentemente políticos, tirados ao descortino cívico do corpo eleitoral que vai ser consultado, mas de suas carências e aspirações mais elementares, por vezes até primitivas, ligadas à sobrevivência pessoal, familiar e até mesmo corporativa. O quadro pode ser explicado pelos vestígios de um súbito incremento dos gastos públicos com assistencialismo, investimentos de base ou aumento dos servidores públicos, por exemplo, em um antinômico cenário de aperto fiscal que objetiva a formação de um superávit imaginário o qual visa à satisfação dos eternos “donos do poder”, no sentido de Raymundo Faoro.

Esse traço perverso das reeleições é o que marca a tragédia social que elas procuram cultivar: a perpetuação do estado de alienação e de miséria humana de onde exsurge, paradoxalmente, uma Nação.

Assim, nenhum governante precisa mais do que os já tradicionais quatro anos de mandato para realizar os seus projetos políticos. Aliás, Juscelino Kubitschek não precisou mais do que isso para realizar sua portentosa obra desenvolvimentista em um tempo de grandes atrasos. A esses projetos, quando bons, se integrarão os futuros governantes, conscientes de que também passam e a Nação é o que fica. A continuidade de um país não é a mesma coisa que a continuidade de um regime partidário ou segmento de governo. A menos que os projetos vergastados pelos agentes do Poder sejam acalentados por uma irrefreável e já não tão dissimulada inspiração autoritária a que muitos se sentem seduzidos. A propósito, é uma projeção psicológica já cristalizada pela Ciência Política que o exercício prolongado do poder produz as condições adequadas para que dele se abuse em razão da humanidade de seus operadores.

O homem em sua gregariedade jamais esquecerá em seu mais profundo recesso a possibilidade de construir impérios e dinastias, ainda que sejam modernos e democráticos os tempos nos quais se vive. Cabe à sociedade vigiar para que isso não aconteça.

No caso brasileiro, o primeiro passo é trabalhar para que se reforme a Constituição Federal no sentido de suprimir, tão imediatamente quanto possível, a regra da reeleição para cargos majoritários em face de sua intrínseca incompatibilidade com o espírito republicano que marca o perfil da Federação.

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