Serviço postal

Marco Aurélio vota contra monopólio dos Correios

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15 de junho de 2005, 20h27

Um pedido de vista do ministro Joaquim Barbosa interrompeu, nesta quarta-feira (15/6), o julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade do monopólio dos serviços postais que vem sendo exercido pela ECT — Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Já haviam votado os ministros Marco Aurélio Mello, relator da matéria, que decidiu pela quebra do monopólio, e Eros Grau, que abriu divergência entendendo que os serviços postais devem ser prestados exclusivamente pelo estado.

A Corte foi provocada por uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental impetrada pela Abraed — Associação Brasileira das Empresas de Distribuição. Segundo os advogados da entidade, a Constituição de 1988 não teria recepcionado a Lei 6.538, de 1978, que regulamentou o monopólio. Por conta dessa lei, as empresas privadas têm sido pressionadas, inclusive com força policial, uma vez que, além de definir o monopólio, o texto prevê multa e detenção para quem furar o bloqueio da União.

Marco Aurélio produziu um extenso voto no qual fez uma profunda retrospectiva histórica da participação do estado na economia. Para o ministro, a presença do estado se justificava, inclusive em outros setores, como mineração, siderurgia e telecomunicações porque “não havia empresa com capacidade operacional e técnica suficiente para prestar o serviço em todo o território nacional”. O ministro afirmou que não se podem confundir interesses corporativos com nacionalismo e ressaltou a importância da eficiência na prestação dos serviços.

Segundo Marco Aurélio, a ECT, no ano passado, apresentou um déficit operacional de aproximadamente R$ 500 milhões, que foram cobertos pelos bons resultados de suas aplicações financeiras. Apontou ainda que, ao contrário dos operadores privados internacionais, a empresa contrata 35 aeronaves para a prestação dos serviços, mas não conta com nenhum aparelho em sua frota de veículos.

A discussão localizou-se na questão da natureza dos serviços postais. Seria um serviço público e, portanto, a ser prestado exclusivamente pelo estado, ou uma atividade econômica que permitiria a livre concorrência? Para Marco Aurélio, não há dúvidas de que se trata de atividade econômica, uma vez que a ECT, no período de 1990 a 1994, celebrou perto de 2 mil contratos de franquias com a iniciativa privada. E fez isso mesmo sem autorização constitucional ou talvez porque, segundo o ministro, já percebera que não se tratava mais de serviço público.

Marco Aurélio lembrou que a tendência da quebra do monopólio já se manifestara, em 1993, na frustrada revisão constitucional, relatada pelo então deputado Nelson Jobim, hoje presidente do Supremo Tribunal Federal. Recordou ainda que, em 1999, o governo passado enviou ao Congresso Nacional, anteprojeto de lei que estabelecia o marco regulatório do setor, abrindo-o para a concorrência. O texto, na época, contou com parecer favorável do hoje ministro Eros Grau, encomendado pela presidência da empresa.

Com essa referência Marco Aurélio contava com o voto de Grau, cujo parecer nunca foi publicado. No entanto, segundo a votar, o ministro abriu a divergência. “Serviço postal é serviço público por definição constitucional”, afirmou Grau. Segundo ele, trata-se da mesma natureza dos serviços de saúde e educação, cuja prestação pela iniciativa privada é excepcionalizada na Constituição. Segundo o regimento do Tribunal, o ministro Joaquim Barbosa terá um prazo 40 dias depois do qual a matéria deve voltar à pauta de julgamentos.

Defesa oficial

A defesa do monopólio estatal dos serviços postais foi feito pelo advogado-geral da União, ministro Alvaro Augusto Ribeiro Costa. O advogado-geral argumentou que os serviços postais têm natureza pública e não econômica.

A Constituição Federal determina em seu artigo 21, inciso X, que compete à União manter o serviço postal e o correio aéreo nacional. Esses serviços têm natureza pública do tipo privativo, na medida em que podem ser prestados por particulares mediante concessão ou permissão, conforme dispõe o artigo 175, da Constituição. Portanto, os serviços postais são serviços públicos, da alçada do Poder Público Federal.

A defesa elaborada pela AGU considera ainda que o STF já afirmou e reafirmou a natureza de serviço público das atividades prestadas pela ECT, seja para reconhecer a impossibilidade de penhora de seus bens, seja para reconhecer em seu favor a existência de imunidade tributária recíproca.

Leia a íntegra do voto do ministro Marco Aurélio

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 46-7 DISTRITO FEDERAL

RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO

ARGUENTE(S): ABRAED – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS EMPRESAS DE DISTRIBUIÇÃO

ADVOGADO(A/S): DAURO LÖHNHOFF DÓREA E OUTRO(A/S)


ARGUIDO(A/S): EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS – ECT

ADVOGADO(A/S): LUCIANA FONTE GUIMARÃES E OUTROS

INTERESSADO(A/S): SINDICATO NACIONAL DAS EMPRESAS DE ENCOMENDAS EXPRESSAS

ADVOGADO(A/S): EMILIA SOARES DE SOUZA

INTERESSADO(A/S): ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE TRANSPORTE INTERNACIONAL – ABRAEC

ADVOGADO(A/S): JOSÉ EDUARDO RANGEL DE ALCKMIM E OUTROS

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Esta argüição de descumprimento de preceito fundamental, em que formulado pedido de concessão de medida acauteladora, foi formalizada, apontando–se como argüida a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT, vinculada ao Ministério das Comunicações. Consigna-se o objetivo de reparar lesão a diversos preceitos fundamentais contidos na Constituição Federal. Então, discorre-se sobre a legitimidade da argüente, associação de abrangência nacional, a representar os interesses das empresas de distribuição, conforme previsto nos artigos 2º do Capítulo I e 5º do Capítulo II dos Estatutos Sociais, contando com associados nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Maranhão, Paraná, Ceará, Bahia, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Piauí, Amazonas, Distrito Federal e outros. Afirma-se a legitimidade por se encontrar a argüente no rol das associações que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. Quanto à pertinência temática, alude-se às finalidades estatutárias e à matéria versada na inicial, no que é buscada a preservação da livre iniciativa, da livre concorrência, tal como dispõem os artigos 1º, inciso IV, 5º, inciso XIII, e 170, cabeça e inciso IV e parágrafo único, todos da Constituição Federal. Ter-se-ia o envolvimento de lei anterior à vigente Constituição Federal e atos, contrários ao Diploma Fundamental em vigor, emanados do Poder Público, perpetrados via Empresa Pública Federal de Correios e Telégrafos. Segundo o sustentado, inexiste meio eficaz de sanar a lesividade, dizendo-se dos reflexos de medidas relativamente às empresas associadas e que estão em todo o território nacional, no total de cerca de quinze mil, com mais de um milhão e duzentos mil empregados. Aduz-se que as ações judiciais se sucedem e que há de ser observado o princípio da subsidiariedade. Cita-se o que veiculado pelo ministro Celso de Mello na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 17 bem como pelo ministro Gilmar Mendes em artigo sobre o tema, argumentando–se com a ausência de outro meio eficaz para tornar prevalecentes os ditames Constitucionais. Então, assevera-se:

a) os atos praticados pela argüida têm fundamento em lei anterior à Constituição de 1988, o que afasta a possibilidade de ajuizar–se ação direta de inconstitucionalidade;

b) os conflitos enfrentados pelas associadas da argüente e a insegurança jurídica hoje reinante em relação aos serviços postais somente podem ser cessados por meio de medida coletiva, com efeitos abrangentes, de modo a pacificar as relações judiciais mantidas pelas associadas, irradiando–se a toda sociedade.

A seguir, em tópico intitulado “dos fatos”, relata-se a criação, no território nacional, de diversas empresas de distribuição, visando a atender à demanda do mercado de serviço de logística, movimentação de materiais, manuseio, distribuição de malotes, revistas, periódicos, pequenas encomendas, leitura e entrega de conta de luz e gás e outras atividades autorizadas pelos entes federativos – União, Estados e Municípios, sendo que em momento algum as empresas pretenderam entregar ou distribuir cartas, entendidas essas como correspondência de cunho pessoal, íntimo e sigiloso. Ter-se-ia iniciado “uma verdadeira cruzada nacional para expurgar a concorrência e banir do mercado todas as empresas congregadas pela argüente (na verdade, todas as empresas do ramo de distribuição) sob o argumento de que a argüida possuiria o monopólio postal absoluto e, assim, toda e qualquer correspondência, seja ela uma lista telefônica, uma conta de luz ou uma encomenda, estaria sob o conceito de carta, ou seja, papel escrito metido em envoltório fechado, que se envia de uma parte a outra para comunicação entre pessoas distantes; manuscrito fechado com endereço (Dicionário Brasil Contemporâneo)” (folha 10). Aponta-se como objetivo único de tal empreitada a eliminação da livre concorrência e do primado da iniciativa privada, buscando–se o desempenho exclusivo e a liberdade total de preços. Assevera-se que somente se tem monopólio nas atividades taxativamente referidas no artigo 177 da Constituição Federal e que as decisões sobre o tema vêm variando, ora concluindo o Judiciário pela existência do monopólio postal, ora pela necessidade de manutenção do serviço postal. As empresas de distribuição estariam sob ameaça de fechamento, muito embora prestando serviços de qualidade, a preços competitivos, gerando empregos e recolhendo impostos, tudo ocorrendo com a aprovação dos entes federativos.


A seguir, na inicial, procura–se demonstrar a inexistência do monopólio postal, à luz da Carta 1988. Alude-se às transformações decorrentes da passagem do tempo e cita-se não só Celso Ribeiro Bastos, como também Ives Gandra, ressaltando o primeiro que “nos dias atuais, o próprio serviço postal assume tão variadas modalidades que seria até mesmo um desatino e um contra-senso admitir-se que uma única empresa concessionária de serviço público pudesse prestá-lo em todas as suas variadas externações”. O trecho citado, do saudoso constitucionalista, tem o seguinte fecho: “a intromissão da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos em áreas em que ela não é bem–vinda, pois não requisitada pelos próprios usuários, é não só uma tentativa de fazer valer o monopólio que a Constituição não consagra, como também a implementação de um execrável precedente marcado por uma racionalidade econômica na qual não é lícito supor-se possa traduzir-se o interesse coletivo”. O texto de Ives Gandra revela que “o correio aéreo nacional só se justifica, hoje, para atender aquelas áreas do País aonde não chegam as linhas regulares”. Estar–se–ia confundindo manutenção de certo serviço pela União – do serviço postal nacional – com o monopólio. São mencionados constrangimentos sofridos pelos associados da argüente – de notificações a clientes quanto à ilegalidade da atuação, passíveis de punições civis e criminais, a medidas de busca e apreensão e condução de empregados a delegacias policiais. À folha 15, vê-se quadro exemplificativo de empresas acionadas, processos em curso e respectivas conseqüências.

A análise sobre os preceitos fundamentais tidos como violados faz-se após referência ao voto do ministro Néri da Silveira no julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 1, quando Sua Excelência assentou que “cabe exclusiva e soberanamente ao STF conceituar o que é descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição, porque, promulgado o texto constitucional, é ele o único, soberano e definitivo intérprete, fixando quais são os preceitos fundamentais, obediente a um único parâmetro – a ordem jurídica nacional, no sentido mais amplo. Está na sua discrição indicá-los”. Mencionam–se lições de André Ramos Tavares, em “Tratado de Argüição de Preceito Fundamental” e remete-se ao Direito português, nas ópticas de Canotilho e Vital Moreira acerca do que se entende como princípio fundamental, aludindo-se, mais, ao ensinamento de José Afonso da Silva em “Curso de Direito Constitucional Positivo”.

À luz da livre iniciativa, evoca-se o fato de a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos brandir lei da época da ditadura, visando ao afastamento de empresas legalmente constituídas, sob o pretexto de ter a exclusividade, o monopólio. Quanto à liberdade do exercício de qualquer trabalho, argumenta-se que a norma do inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal tem por finalidade a formação do mercado, excluídas apenas atividades ilícitas ou os casos em que não se faça presente a qualificação profissional. No tocante à livre concorrência, à livre iniciativa, pondera-se que o limite é o abuso do poder econômico que objetive a dominação dos mercados, a eliminação de concorrentes e o aumento dos lucros – artigo 173, § 4º, do Diploma Máximo. Os atos praticados pela argüida implicam, segundo o sustentado, violência aos preceitos fundamentais referidos, buscando a intimidação de empregados, diretores e clientes das empresas associadas. As medidas para banir do ramo de distribuição a livre iniciativa, a livre concorrência, e impedir o desenvolvimento do ofício estariam compreendidas na política nacional desenvolvida pelo Ministério das Comunicações e seguida à risca pelos dirigentes da Empresa Brasileira de Correios, com alegado esteio no artigo 9º de lei anterior a Carta, ou seja, a Lei nº 6.538/78, no que dispõe:

Art. 9º – São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades postais:

I – recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal;

II – recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência agrupada:

III – fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal.

§ 1º – Dependem de prévia e expressa autorização da empresa exploradora do serviço postal;

a) venda de selos e outras fórmulas de franqueamento postal;

b) fabricação, importação e utilização de máquinas de franquear correspondência, bem como de matrizes para estampagem de selo ou carimbo postal.

§ 2º – Não se incluem no regime de monopólio:

a) transporte de carta ou cartão-postal, efetuado entre dependências da mesma pessoa jurídica, em negócios de sua economia, por meios próprios, sem intermediação comercial;

b) transporte e entrega de carta e cartão-postal; executados eventualmente e sem fins lucrativos, na forma definida em regulamento.


Passa-se à interpretação sistemática dos artigos 21, inciso X, 22, inciso V, e 170 da Constituição Federal, salientando-se ser a livre iniciativa e a livre concorrência verdadeiros princípios constitucionais. Reportando–se ao artigo 177 da Lei Fundamental, diz–se constituir exceção o monopólio de atividades, descabendo ampliar, conforme ressaltado por José Afonso da Silva, o elenco referido na Carta da República. Após o exame do serviço postal, de maneira a se lhe elucidar o caráter – se de serviço público ou de atividade econômica –, remete-se a parecer de Luiz Roberto Barroso publicado na Revista de Direito Administrativo de outubro/dezembro de 2000, no qual o autor revela que, em todo o mundo, a prestação de serviço postal não pressupõe o exercício de um poder estatal, bem assim no direito objetivo brasileiro. Sob a perspectiva constitucional, ao menos desde a década de 60, não se contaria com o enquadramento do serviço postal como serviço público, havendo sido o marco da alteração a transformação do Departamento de Correios e Telégrafos – DCT, em 1968, em empresa pública. Conclui o jurista, naquele parecer, tratar-se não de serviço público, mas de exploração de atividade econômica, aspecto a afastar o óbice à atuação de particulares. Com a vigência da Constituição Federal de 1988, delimitadas teriam restado as áreas em que presente o monopólio. Em tal sentido também entendera Celso Ribeiro Bastos, consoante veiculado no seguinte trecho transcrito à folha 29:

Não tendo havido previsão constitucional de monopólio da União para as atividades de serviço postal, tem-se que este pode ser exercido também pelos particulares, em observância aos princípios da livre iniciativa e livre concorrência. Todos os casos não previstos no artigo 177 não são de monopólio dos entes estatais, em específico a União, porque tal dispositivo é numerus clausus, uma vez que representa exceção aos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência. Sendo a Lei nº 6.538 do ano de 1978, ao entrar em vigor a Constituição Federal de 1988 foi tal lei revogada no que se refere ao monopólios nela estabelecidos. Destarte, claro está que inexistente o chamado monopólio estatal. Logo ilegais e violadores dos preceitos fundamentais apontados os atos praticados pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, bem como inconstitucional a Lei nº 6.538/78 pois revogada tacitamente pela Carta Política de 1988.

Após aludir-se à fala do então ministro das Telecomunicações Miro Teixeira, em entrevista concedida em 27 de fevereiro de 2003 ao Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão – no sentido de que “novas tecnologias facilitarão a quebra do monopólio” – e do Secretário de Assuntos Postais, Marcelo Perrupato, em reportagem da revista Isto é Dinheiro, de 19 de março do corrente ano, sobre a existência de cerca de quinze mil empresas de distribuição no Brasil e a falta de impedimento, às filiadas da argüente, para administrar correspondência comercial, pleiteou-se a concessão de liminar, remetendo-se a lições de Liebman, citado por Humberto Teodoro Júnior, quanto ao escopo da medida – de “satisfazer provisoriamente o interesse geral jurídico de assegurar a paz na convivência social ou evitar a perda ou a deterioração de bens econômicos ou, ainda, obstar a lesão ou ameaça de lesão a direitos, em virtude do perigo na demora natural dos processos judiciais e a alteração do equilíbrio de força entre as partes” (folha 32). Assegurando-se existente o sinal do bom direito e o risco de se manter com plena eficácia o quadro, pediu–se “a suspensão de todo e qualquer processo, bem como de decisões judiciais, que versem sobre a matéria objeto da presente argüição, expedindo-se os ofícios respectivos aos Tribunais Regionais Federais, informando–os de tal decisão, haja vista não haver como, nesta peça, individualizar todos os feitos em trâmite o Poder Judiciário, em todo o território nacional, versando sobre esse tema” (folha 36). Caso assim não se entenda, requer–se seja concedida a liminar “unicamente para as associadas da argüente, impedindo que sejam vítimas das ações da argüida até o julgamento final desta argüição”, e, sucessivamente, que se “permita às associadas da argüente, até o julgamento final da ação, o livre exercício das atividades constantes em seus respectivos contratos sociais, sem qualquer constrangimento por parte da argüida” (folha 37). O pedido final está desdobrado, às folhas 37 e 38, para:

a) reconhecer–se “a violação aos preceitos fundamentais da livre iniciativa, da livre concorrência e do livre exercício de qualquer trabalho, como exaustivamente apontado nesta peça, perpetradas por atos da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (Poder Público)”;

b) declarar–se, “nos termos do artigo 11 da Lei nº 9.882/99, a inconstitucionalidade da Lei nº 6.538/78, especialmente sobre a questão do monopólio de entrega de correspondências”;


c) também nos termos do artigo 11 da Lei nº 9.882/99, tendo em vista a relevância da matéria, declarar–se o que se entende por carta cuja entrega, por motivo de segurança e privacidade, continua sendo prerrogativa da argüida, restringindo–se tal conceito “ao papel escrito, metido em envoltório fechado, selado, que se envia de uma parte a outra, com conteúdo único, para comunicação entre pessoas distantes, contendo assuntos de natureza pessoal e dirigido, produzido por meio intelectual e não mecânico, excluídos expressamente deste conceito as conhecidas correspondências de mala–direta, revistas, jornais e periódicos, encomendas, contas de luz, água e telefone e assemelhados, bem como objetos bancários como talões de cheques, cartões de créditos, etc”.

Então, requereu-se fossem intimados a manifestar-se sobre a ação o excelentíssimo Ministro da Comunicações, à época o Senhor Miro Teixeira, o Presidente da argüida, à época o Senhor Airton Dipp, o Procurador-Geral da República, como também qualquer outra autoridade, a critério do Tribunal. Com a inicial, vieram os documentos de folha 40 a 545.

À folha 548, despachei, tendo em conta a necessidade de autenticação das peças anexadas. A argüente peticionou, declarando a autenticidade das cópias acostadas à inicial e requerendo a juntada de documentos. Às folhas 571 e 572, tornei a despachar, aludindo à circunstância de se ter a anexação de cópias diversas não constantes de processo.

Acompanharam a petição de folhas 574 e 575 originais e cópias autenticadas.

Instei a argüente a providenciar cópia da inicial (folha 892), ordenando, às folhas 895 e 896, a citação da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT, devendo-se ouvir também o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República. Eis o teor do despacho (folha 895 e 896):

ADPF – MANIFESTAÇÕES – ARGÜIDA – ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO – PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA.

1. Cite-se a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, ouvindo-se o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República – § 2º do artigo 5º da Lei nº 9.882/99.

2. Esclareço que o processo ficou entre os que aguardam exame, não havendo sido percebida a fase. Considere-se o extravagante número dos distribuídos semanalmente.

3. Publique-se.

Com a petição de folhas 902 e 903, insistiu a argüente na apreciação do pedido de concessão de medida liminar, ao que determinei fossem aguardados os pronunciamentos.

A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos trouxe ao processo a manifestação de folha 909 a 974. Preliminarmente, ressalta a ilegitimidade ativa da argüente, conforme precedentes da Corte, no sentido de ser restrita tal atuação aos legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade e assevera que “não se reconhece natureza de entidade de classe àquelas organizações que, congregando pessoas jurídicas, apresentam-se como verdadeiras associações de associações” (folha 919). Segue-se a análise da natureza do serviço postal, reportando-se a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos aos artigos 21, inciso X, e 22, inciso V, da Constituição Federal, no que revelam caber à União manter o serviço e sobre ele legislar. O Decreto-Lei nº 509/69, que veio a criar a empresa pública federal encarregada do serviço estaria a encerrar o regime de monopólio, prevendo a Lei nº 6.538/78 sanções para os infratores do monopólio. No artigo 47 da citada lei, constaria a definição de carta. Afirma a argüida que o serviço postal tem caráter público, qualificado pela Constituição Federal como necessário, sendo um dever do Estado. Procurando estabelecer distinção entre o serviço postal, no que asseverado público, e o serviço de saúde e educação – quando a Carta, mediante os artigos 196 e 205, consigna o dever do Estado e a abertura à livre iniciativa –, aponta a Empresa que tais serviços – de saúde e educação – deixam de ser públicos, uma vez implementados por particulares. No caso do serviço postal, contar–se–ia com os três requisitos necessários à caracterização como público: a) o desenvolvimento de atividade de interesse coletivo, b) a presença do Estado e c) o procedimento de Direito Público. Após dizer da generalidade, uniformidade, continuidade e regularidade do serviço, afirma a argüida que, desde a Constituição de 1891, cumpre ao Estado o poder-dever ou o dever-poder de manter o serviço postal e o correio aéreo nacional, ante o interesse de toda a coletividade. Daí a União haver criado empresa pública para implementá–lo. Argumenta ser entidade estatal delegada. Referindo–se às lições de Cirne Lima sobre as pessoas administrativas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e ao magistério de Celso Antonio Bandeira de Mello acerca dos tipos fundamentais de empresas públicas – prestadoras de serviços públicos e exploradora de atividade econômica –, entende estar compreendida na primeira espécie, não se lhe aplicando as disposições do artigo 173 e parágrafo da Constituição Federal de 1988. Reporta-se à visão de Geraldo Ataliba sobre não haver, no caso, exploração de atividade econômica e ao que decidido no Recurso Extraordinário nº 172.816–7/RJ e no Mandado de Segurança nº 21.322–1/DF, relatados pelo ministro Paulo Brossard, no que apreciada a questão das empresas públicas constituídas para prestação de serviço público. Menciona mais o que assentado pelo Plenário no Recurso Extraordinário nº 220.906–9/DF, sob o ângulo da execução via precatório, remetendo ao voto do ministro Maurício Corrêa. O Tribunal teria considerado a prestação do serviço como pública. Alude ainda à decisão da Segunda Turma, da lavra do ministro Carlos Velloso, no sentido de a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos ser prestadora de serviço público, estando alcançada pela imunidade tributária recíproca – Recurso Extraordinário nº 407.099–5/RS. Assevera que o serviço postal não perde a natureza e o regime públicos ante a delegação a uma empresa pública.


Após concluir pela existência de atividade própria do Estado, discorre sobre a exclusividade, com esteio na Lei nº 6.538/78. Admite que, conquanto possam constituir serviços exercidos pela União, diretamente ou por meio da própria atuação, os de recebimento, transporte e entrega de outros objetos e valores que não configurem carta, cartão-postal ou correspondência agrupada, as atividades não estão sujeitas ao monopólio, podendo haver a exploração econômica pela iniciativa privada. Uma vez atuando, ter–se–ia como adequada a rotulação como serviço postal. Aponta que, “a rigor, portanto, a menos que houvesse concessão ou permissão da ECT, ninguém poderia executar o serviço postal de valores e encomendas”. Alega que a Lei nº 6.538/78 alcança diversas atividades: a) serviço público exclusivo – artigo 9º; b) serviço público não exclusivo – artigo 7º, § 2º e § 3º; c) atividades correlatas – artigo 8º e d) atividades afins – artigo 2º, § 1º, letra “d”. As empresas associadas à argüente não teriam a titularidade do serviço de recebimento, transporte e entrega, no território nacional, expedição para o exterior, de carta e cartão-postal, por envolver serviço público exclusivo da União, cuja execução lhe fora delegada.

No que tange à recepção, pela Constituição Federal, da exclusividade prevista no Decreto-Lei nº 509/69 e na Lei nº 6.538/78, reporta–se a argüida à manifestação do Ministério Público Federal na Apelação nº 1999.70.00.033981.5, julgada pela 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Busca demonstrar que o silêncio, sob ângulo do monopólio, do artigo 177 da Constituição Federal, resulta do fato de não se ter atividade de natureza privada. Discorrendo sobre o enquadramento de entrega de contas relativas ao consumo de energia elétrica, de água, de documentos bancários e outros como serviço postal, conclui de forma positiva, ante a Lei nº 6.538/78. A entrega estaria compreendida no gênero “cartas endereçadas a diversas pessoas naturais e jurídicas”, sendo alcançada pelo monopólio postal. Faz referência ao que decidido no Recurso Especial nº 434.399/PR, sob a relatoria do ministro Luiz Fux, bem como ao voto do juiz Jirair Aram Meguerian no Mandado de Segurança 1998.01.00.01221.0/RO, citando, mais, o que decidido no Habeas Corpus nº 21.804/SP pelo Superior Tribunal de Justiça, da relatoria do ministro Gilson Dipp, e outros precedentes. Remete à óptica de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre a impossibilidade de até mesmo ter-se o serviço postal e o correio aéreo nacional submetidos ao sistema de autorização, concessão ou permissão, daí decorrendo haver–lhe sido outorgada legalmente, pela União, a execução do serviço.

Critica o que denomina de correio paralelo, no que a população vincula o serviço postal ao nome “Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos”. Concluiu, então, que o recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição para o exterior de carta e cartão-postal é serviço público qualificado, típico e exclusivo da União, cuja execução foi a si delegada. A argüente estaria visando à discussão, tão–somente, do conceito de carta, porquanto teria admitido a exclusividade no recebimento, transporte e entrega, dando enquadramento todo próprio à noção do que se entende como tal. Admite a argüida a possibidade de atuação das associadas no mercado de serviços de logística, realizando serviços de distribuição de revistas, periódicos e encomendas, mas não quanto às atividades enumeradas no artigo 9º da Lei nº 6.538/78, ou seja, com destaque para o recebimento, transporte e entregas de cartas assim como a emissão de selos. Faz referência à existência do monopólio postal em diversos países – Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Grécia, Espanha, França, Irlanda, Países Baixos, Áustria, etc –, salientando ser a décima terceira maior do mundo, respondendo por 90% do fluxo postal da América Latina e contando com 98.015 empregados diretos regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho e admitidos mediante concurso público, estando presente em todos os 5.561 municípios brasileiros e gozando da maior credibilidade perante a população – 92%, segundo pesquisa da FIAUSP. As atividades postais monopolizadas, em especial o recebimento, transporte e entrega de carta (contas de água, luz, telefone, boleto bancário, etc.), responderiam, segundo dados de 2002, por 47% da receita operacional, havendo alcançado, naquele ano, cinco bilhões e quatrocentos milhões de reais. Afirma, então, que “todo o serviço postal continua sob a égide da União, que outorgou a sua titularidade a ECT, devendo esta entidade ser a guardiã de sua implantação, planejamento, manutenção, execução, fiscalização e controle, observado o monopólio de que trata o artigo 9º da Lei nº 6.538/78”.


A Advocacia-Geral da União manifestou-se na forma da peça de folha 978 a 992, ressaltando:

a) a atividade econômica é gênero do qual são espécies a atividade econômica em sentido estrito e o serviço público;

b) o artigo 173, § 1º, da Constituição Federal refere-se a atividade econômica em sentido estrito, não atingindo a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos;

c) o serviço postal está no conceito amplo de atividade econômica e é um serviço público não submetido a regime de competição que, mediante autorização legal, pode ser delegado por meio de concessão ou permissão – artigo 175 da Constituição Federal;

d) o serviço postal, por estar no artigo 21 da Constituição Federal, é um serviço público do tipo privativo da União;

e) o termo “monopólio” diz respeito a atividade econômica e, em relação ao serviço público, aplicável é o vocábulo exclusividade;

f) a argüição de descumprimento de preceito fundamental não pode ser utilizada para discutir as medidas judiciais e administrativas promovidas pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos.

Entende que a Lei nº 6.538/78 foi recepcionada pela Constituição Federal e que não há violação dos preceitos asseguradores da livre iniciativa, do livre exercício do trabalho e da livre concorrência.

Já a Procuradoria Geral da República assentou que:

a) o princípio da livre concorrência não é de natureza fundamental, não cabendo argüição de descumprimento de preceito fundamental para questionar–lhe a inobservância;

b) a atividade econômica é gênero do qual são espécies atividade econômica em sentido estrito e serviço público;

c) o serviço público postal não está submetido aos artigos 173, § 1º, 177 da Constituição Federal, vigorando o regime de privilégio sem competição;

d) o serviço público pode ser tomado sob dois ângulos: o delegado mediante concessão, permissão ou autorização e o prestado pelo próprio Estado, como no caso do serviço postal;

e) o Supremo Tribunal Federal, julgando o Recurso Extraordinário nº 407.099-5/RS, assentou que o serviço postal é serviço público, estando na competência da União;

f) a argüição de descumprimento de preceito fundamental, embora processo objetivo, pode ser utilizado, tendo em conta medidas judiciais e administrativas promovidas pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, não procedendo, no entanto, o pleito inicial.

O parecer é no sentido de que a Lei nº 6.538/78 foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, não subsistindo o que articulado na inicial.

É o relatório.

V O T O

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – Tenho a Associação Brasileira das Empresas de Distribuição – Abraed como parte legítima para a formalização do pedido, já que se enquadra na previsão do inciso I do artig o 2º da Lei nº 9.882, de 3 de novembro de 1999, como entidade de classe de âmbito nacional, com associadas em mais de nove estados do País, balizas aventadas na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 386-1/ES, relatada pelo ministro Sydney Sanches. Incumbe-lhe defender os integrantes da categoria congregada, que se dedicam à área de logística e de distribuição de pequenas encomendas bem como malas-diretas, revistas, jornais, periódicos, contas de luz, de água, de telefone e assemelhados e que estariam sujeitos a constrangimentos de toda a ordem, inclusive de natureza penal, por provocação da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT, na medida em que esta se diz detentora do monopólio da entrega do gênero “correspondências”.

Quanto à observação do disposto no artigo 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, ou seja, a regra de que não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade, é pacífica a jurisprudência deste Tribunal no sentido de não ser cabível o questionamento de normas pré-constitucionais mediante o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade, caso em que o Tribunal é chamado apenas a decidir sobre a recepção, ou não, de determinada regra, em face de posterior texto constitucional. Não existe outro meio apto a sanar possível lesividade a que se alegam submetidas as empresas distribuidoras de encomendas em todo o território nacional. Cumpre resolver controvérsia constitucional da maior envergadura – a permanência, ou não, do monopólio da prestação do serviço postal, instituído com a Lei federal nº 6.538/78, ante os novos ditames constitucionais.

Assim, sob o ângulo do macroprocesso, enquadra-se o caso na cláusula final do § 1º em análise. Qualquer outro meio para sanar a lesividade não surge eficaz, somente servindo ao surgimento de milhares de processos cujo desfecho é projetado no tempo, com sobrecarga da máquina judiciária e enorme instabilidade das relações jurídicas. Eis o importante papel, no que tange à paz social, atribuído ao Supremo, que não pode ficar a reboque na definição do alcance da Carta da República. Digo mesmo que a Corte há de estar sempre propensa a examinar os grandes temas nacionais, contando, para tanto, com a competência de julgar os processos objetivos. O grande número de demandas individuais, o vulto do varejo não pode servir a posicionamento esvaziador da atividade precípua que lhe é reservada constitucionalmente – de guarda da Lei Fundamental – e da qual não deve e não pode despedir–se. Tudo recomenda que, em jogo matéria de extrema relevância, haja o imediato crivo do Supremo, evitando-se decisões discrepantes que somente causam perplexidade, no que, a partir de idênticos fatos e normas, veiculam enfoques diversificados. A unidade do Direito, sem mecanismo próprio à uniformização interpretativa, afigura-se simplesmente formal, gerando insegurança, o descrédito do Judiciário e, o que é pior, com angústia e sofrimento ímpares vivenciados por aqueles que esperam a prestação jurisdicional.


Nesse sentido, importante destacar a notícia recentemente veiculada no endereço eletrônico da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos sobre o modo como vem agindo para amedrontar e afugentar as demais empresas que atuam no setor:

Com mão forte, a ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos) retomou a ofensiva cujo objetivo é aniquilar as pequenas empresas de courier, que pouco a pouco tomam o mercado nacional de encomendas expressas e, segundo os Correios, o de cartas. Os expedientes empenhados: apoio da PF (Polícia Federal) para várias blitzes nas empresas em pontos do país e ações em Tribunais Federais nas regiões com o pedido de fechamento imediato das empresas. A ação não poupa nem as firmas que contratam os serviços como companhia de água, de luz ou mesmo os bancos. A Febraban (Federação Brasileira dos Bancos) não comenta o assunto, mas existem informações que (sic) a entidade está preocupada com o tema(1).

É de ressaltar, ainda, que os preceitos tidos por violados são essenciais à ordem constitucional vigente, configurando princípios e fundamentos da República Federativa do Brasil, como a livre iniciativa – comando este previsto no artigo 1º, inciso IV, inserto no Título I, da Constituição Federal, denominado “Dos Princípios Fundamentais”, também a liberdade no exercício de qualquer trabalho (artigo 5º, inciso XIII), a livre concorrência (artigo 170, cabeça e inciso IV) e o livre exercício de qualquer atividade econômica (artigo 170, parágrafo único).

Atendendo a petição inicial aos requisitos que lhe são inerentes – artigo 3º da Lei nº 9.882/99 –, cabe adentrar o tema de fundo.

Interpretar significa apreender o conteúdo das palavras, não de modo a ignorar o passado, mas de maneira a que este sirva para uma projeção melhor do futuro. Como objeto cultural, a compreensão do Direito se faz a partir das pré-compreensões dos intérpretes. Esse foi um dos mais importantes avanços da hermenêutica moderna: a percepção de que qualquer tentativa de distinguir o sujeito do objeto da interpretação é falsa e não corresponde à verdade. A partir da idéia do “Círculo Hermenêutico” de Hans Gadamer(2), evidenciou-se a função co-autora do hermeneuta: na medida em que este compreende, interpreta as normas de acordo com a própria realidade e as recria, em um processo que depende sobremaneira dos valores envolvidos.

Nesse sentido, o jusfilósofo Richard Palmer(3) assevera que a tarefa da interpretação é a de construir uma ponte sobre a distância histórica a separar o sujeito do objeto da interpretação. Assim, quando o intérprete analisa um texto do passado, não deve esvaziar a sua memória, nem abandonar o presente, mas levá-los consigo e utilizá-los para compreender e projetar um futuro.

Nessa linha de entendimento é que se torna necessário salientar que a missão do Supremo, a quem compete, repita–se, a guarda da Constituição, é precipuamente a de zelar pela interpretação que se conceda à Carta a maior eficácia possível, diante da realidade circundante. Dessa forma, urge o resgate da interpretação constitucional, para que se evolua de uma interpretação retrospectiva e alheia às transformações sociais, passando–se a realizar interpretação que aproveite o passado, não para repeti-lo, mas para captar de sua essência lições para a posteridade. O horizonte histórico deve servir como fase na realização da compreensão do intérprete, mas não pode levar à auto-alienação de uma consciência, funcionando como escusa à análise do presente.

A razão para tal alerta é simples. Cabe a esta Corte, ao realizar a atividade definidora das normas que estão no texto constitucional, harmonizar o conteúdo do artigo 21, inciso X – “Compete à União: manter o serviço postal e o correio aéreo nacional” –, com os demais valores constitucionalmente protegidos – livre iniciativa, livre concorrência, livre exercício de qualquer trabalho e livre exercício de qualquer atividade econômica – de maneira a garantir a força normativa da Constituição, o que, nos dizeres de Canotilho, significa “dar-se primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas constitucionais, possibilitam a atualização normativa, garantindo a sua eficácia e permanência”(4).

Com isso, quero dizer que a atuação da Corte não pode ser mecânica e apenas repetitiva das interpretações que até puderam ter feito sentido em um passado remoto, mas que não mais se coadunam com a realidade. Ao sobrelevar a importância da força normativa do Diploma Básico, friso a necessidade de este Tribunal concretizar e realizar os preceitos constitucionais de forma ótima, o que se traduz na observância do processo dialético e ininterrupto de condicionamento entre a norma e a realidade. A indiferença quanto ao cumprimento desses princípios hermenêuticos pode ocasionar um recorte drástico e indesejado, considerados o dispositivo constitucional e a realidade, configurando-se o que Pablo Lucas Verdú convencionou chamar de “mutação constitucional”(5), hipótese em que a Carta Federal fica obsoleta, fragilizada, caduca. Cabe ao intérprete, no caso, proceder a uma interpretação evolutiva, reconhecendo que essas “mutações constitucionais silenciosas” funcionam, na verdade, como atos legítimos de interpretação constitucional (6).


Nesse contexto, qual o significado do teor do inciso X do artigo 21? Será que o sentido da expressão “manter o serviço postal” é hoje o mesmo de duzentos anos atrás, quando, pelo Alvará de 20 de Janeiro de 1798, instituiu-se que competia aos Poderes Públicos o processo de organização postal dos Correios Terrestres? Será que se está condenado a ficar permanentemente atrelado ao passado, ignorando que o sentido das normas também é condicionado pela evolução da vida, da vida em sociedade? A resposta é desenganadamente negativa, revelando–se um sonoro “não”.

A menção ao serviço postal foi inserida no corpo constitucional a partir da primeira Constituição republicana – artigo 34, inciso 15. À exceção desta Carta, quando o texto referia-se apenas à competência legislativa no que tange aos Correios, a partir da Constituição Federal de 1934 – artigo 5º, inciso VII -, fixou-se o entendimento de que cabia privativamente à União manter o serviço postal, o que veio sendo repetido em cada uma das Constituições que se seguiram – na de 1937, no artigo 15, inciso VI; na de 1946, no artigo 5º, inciso XI; na de 1967, no artigo 8º, inciso XI, na Emenda Constitucional nº 1, de 1969, no artigo 8º, inciso XII e na Lei Fundamental em vigor – artigo 21, inciso X, sendo que apenas a Carta de 1937 contemplou, tal como a anterior, a exclusividade. Se a proposição normativa – qual seja, o invólucro no qual se situa a norma – não evoluiu com o passar do tempo, de modo que incansavelmente dispôs o texto constitucional competir à União manter os serviços postais, a mesma coisa não é dado afirmar relativamente ao alcance do verbo “manter”. Se no plano constitucional, à época da Primeira República, ainda no século XIX, entendia-se que somente o Poder Público poderia desincumbir-se da missão de entregar correspondências, a mesma interpretação não pode mais ser implementada nos dias atuais, sem que seja tida como destoante dos novos e benfazejos ditames constitucionais, da realidade fática e normativa.

Com efeito, as mesmas mudanças ocorridas no contexto social também nos ajudam a dirimir alguns dogmas jurídicos, e, com isso, evoluirmos, no sentido de demonstrar que a distinção entre o que vem a configurar atividade econômica e o que é considerado serviço público não reside em uma intrínseca e imutável natureza das coisas. Trata-se de uma diferenciação historicamente determinada.

Se em certa sociedade o Estado prega o dirigismo econômico, mais e mais atividades serão realizadas sob as mãos do Estado e alçadas à condição de serviço público. Ao contrário, se exorta a livre iniciativa e a liberdade econômica, a regra é que os particulares desenvolvam tais atividades livremente, desde que atendam à disciplina própria para cada setor da economia, atuando o Poder Público apenas de maneira subsidiária, quando imprescindível por imperativo de segurança nacional ou relevante interesse coletivo – artigo 173 da Constituição Federal em vigor.

A liberdade de iniciativa constitui-se em uma manifestação dos direitos fundamentais do homem, na medida em que garante o direito que todos têm de se lançar ao mercado de produção de bens e serviços por conta e risco próprios, bem como o direito de fazer cessar tal atividade. Os agentes econômicos devem ser livres para produzir e para colocar os produtos no mercado, o que também implica o respeito ao princípio da livre concorrência. Eis uma garantia inerente ao Estado Democrático de Direito.

A maturidade dos debates econômicos atuais, ao defender–se a observância da livre iniciativa, já não mais revela a retomada da política econômica do liberalismo clássico – quando houve uma nítida dissociação entre a atividade política e a atividade econômica. Adam Smith, representante típico do liberalismo econômico, afirmava que ao Estado incumbia apenas três deveres: proteger a sociedade da violência e da invasão por outras sociedades, estabelecer uma adequada administração da justiça e erigir e manter certas obras e instituições públicas que nunca seriam do interesse de qualquer indivíduo (ou de um pequeno número), porque o lucro não reembolsaria as despesas. Quanto menor a presença do Estado dentro de uma sociedade, maior seria a liberdade dos indivíduos, de modo que a essência estatal resumia-se a uma missão de inteiro alheiamento e de ausência de iniciativa social.

As imperfeições do regime liberal clássico não tardaram a aparecer. É que o funcionamento deste pressupunha uma certa igualdade, a competição equilibrada entre os agentes. Como tais pressupostos nunca foram alcançados, houve a crise do liberalismo, caracterizada por sucessivas depressões econômicas, desequilíbrios internacionais e acirramento das desigualdades sociais. A esse modelo contrapôs-se o Estado Social, sob duas vertentes dominantes: o Estado Socialista e o Estado do Bem-Estar, este último consolidado nas democracias ocidentais após a Segunda Guerra Mundial.


Acontece que esse paradigma de Estado interventor, parâmetro para as Constituições brasileiras, de 1934 até o texto primitivo da Constituição de 1988, vem sendo alvo de duras e acertadas críticas, porquanto a experiência demonstrou a existência de um Estado ineficiente, paternalista, incompetente ao não atender com presteza à demanda dos cidadãos, causador de vultosos endividamentos públicos, um Estado esbanjador, inchado, incapaz de investir nas demandas sociais mais urgentes – transporte, habitação, saúde, educação, segurança pública –, levando o indivíduo a sentir–se sufocado e cativo nas mãos do Estado-pai e, ao mesmo tempo, achar–se no direito de eternamente ficar clamando do Estado a resposta a todo e qualquer anseio.

A partir desse descrédito no potencial empresário do Estado como forma de atingir eficazmente o progresso e a transformação social, os papéis que dantes lhe foram destinados passaram por uma redistribuição, no intuito de reduzir o tamanho da máquina burocrática, devolvendo–se à iniciativa particular as atividades que estavam sendo prestadas. O pêndulo retorna à iniciativa privada, de modo a assegurar-lhe o papel de protagonista na sociedade.

No Brasil, a situação não foi diferente: vivenciamos um momento de reforma no Estado, impulsionado por inúmeros fatores, como a economia globalizada – o Estado enfraquecido em relação ao poder indutor -, a exaustão financeira, a ausência de condições para o desenvolvimento de atividades econômicas, a conveniência de se ter a desestatização de empresas. O Estado brasileiro encontrava-se incapaz de prestar zelosa e eficientemente os serviços públicos e desenvolver as atividades econômicas. Fez-se e faz-se ainda necessária a devolução das atividades que ainda são prestadas pelo Poder Público à iniciativa privada.

Sim, o programa de reforma do Estado brasileiro decorreu da incapacidade de o setor público prosseguir como principal agente financiador do desenvolvimento econômico. A transferência das funções de utilidade pública do setor público para o privado, com os fenômenos da publicização (o chamado setor público não-estatal) e da privatização, resultou, para o Estado, em poderes crescentes de regulamentação, de fiscalização e de planejamento da atividade econômica.

A retirada do Estado da prestação direta de tais atividades não significou uma redução do intervencionismo. Ao contrário, fez com que o Poder Público ficasse mais atento ao cumprimento da missão fiscalizatória, por meio de entes desprovidos de subordinação, com autonomia perante as ingerências políticas, com funções técnicas delimitadas, para que a prestação de serviços essenciais à população não ficasse submetida apenas à decisão das empresas privadas, mas fosse realizada de acordo com o cumprimento de regras previamente delimitadas pelo Poder Público. Tal função é desenvolvida, hodiernamente, pelos diversos órgãos reguladores, pela Secretaria de Defesa Econômica – SDE e pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE.

Vale frisar que, no Brasil, a intervenção direta do Estado na economia, seja por absorção – hipótese de monopólio estatal -, seja por participação direta na atividade econômica – concorrência de empresas estatais com empresas privadas –, verificou–se em um momento em que não havia empresas com capacidade financeira, nem infra-estrutura suficiente, para promover o desenvolvimento de tais atividades. Como exemplo, é dado destacar as chamadas indústrias de base – mineração e siderurgia -, que durante muito tempo foram consideradas monopólios naturais, uma vez que os altos custos de elaboração dos bens, decrescentes à medida que a produção aumentava, somente compensariam a instalação se uma única empresa atuasse no setor. A exigência da produção em larga escala não comportava concorrência, à época da implementação, haja vista que o mercado absorveria apenas a oferta de uma única empresa neste nível de produção. O desenvolvimento dessas atividades por monopólios estatais foi a solução apontada para lidar com essa estrutura de mercado.

Desse modo, foram criadas a Companhia Siderúrgica Nacional, em 1941, para atuar no setor de ferro e de aço, e a Companhia Vale do Rio Doce – CVRD, em 1942, para atuar no setor de mineração. Em passo seguinte, surgiram a Eletrobrás, a Telebrás e a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, mas, mesmo em tais setores, o Estado se mostrou incapaz não só de realizar os investimentos necessários à melhoria dos serviços, como também de gerenciá–los sob a forma empresarial(7).

Posteriormente, o aumento da demanda permitiu a acomodação de mais empresas produzindo numa escala viável, o que possibilitou o surgimento da concorrência. Além disso, o incremento na tecnologia adotada na produção desses bens, diminuindo os custos fixos e a proporção destes no custo total, modificou a definição dos setores de infra-estrutura como monopólios naturais.


Se a forma mais comumente associada à regulação de monopólios naturais havia sido a nacionalização das empresas atuante no setor, fez-se necessário organizar a transição da outrora prestação pública para a hodierna atividade privada, e ao Estado coube então exercer o papel regulatório, para que não houvesse distorções no desenvolvimento da atividade. Essa transferência da prestação pública para a particular pôde ser sentida nos setores de siderurgia, de mineração, de telecomunicações e de energia elétrica, restando ainda os serviços postais, objeto da presente argüição de descumprimento de preceito fundamental. Esta é a questão apresentada: o monopólio da atividade postal, instituído por força de lei, quando a Constituição Federal expressamente admitia tal possibilidade – na Constituição de 1967, por meio do artigo 157, § 8º, e na Emenda Constitucional nº 1, de 1969, mediante o artigo 163 –, foi recepcionado pela Carta de 1988? Em outras palavras, as razões que determinaram a instituição do monopólio do serviço postal permanecem vigentes? Pode a Corte olvidar as transformações sociais e tecnológicas que ocorreram no País nesse meio século e entender que o significado do verbo “manter”, núcleo do inciso X do artigo 21, é o mesmo de dois séculos atrás?

O serviço postal, durante muito tempo, foi executado pela União – e não somente mantido – porque simplesmente não havia no País empresas com capacidade operacional e técnica suficientes para poder desenvolver, com presteza e agilidade, a entrega de correspondências por todo o território nacional. As dimensões continentais brasileiras, atreladas aos incipientes investimentos nos transportes – aéreo, terrestre, ferroviário –, forçaram o surgimento de um monopólio inevitável. As precárias condições vigentes à época não admitiam o ingresso de empresas privadas.

Todavia, a partir da década de 80, surge no Brasil a tendência de o Estado se retirar da prestação direta de atividades econômicas, ora devido ao fato de que isso impunha uma descarada desigualdade em comparação com as empresas privadas, ora porque a submissão ao regime de direito público simplesmente não se coaduna com o dinamismo e a necessidade de inovação tecnológica que se fazem presentes na atividade empresarial, ora porque essa modalidade de intervenção já não mais se fazia necessária. Algumas das razões a justificar a diminuição do Estado podem ser extraídas das lições do professor italiano Giampaolo Rossi(8):

a) mudanças no sistema de produção, com a desvalorização do setor primário, principalmente da agropecuária, e valorização de emergentes setores técnicos- especializados; b) aceleração e desenvolvimento tecnológicos dos meios de comunicação, o que acarretou o fim de alguns monopólios naturais até então inevitáveis; c) a globalização da economia que, potencializada pela evolução da informática, mitigou bastante os empecilhos econômicos e materiais para as trocas internacionais e inter-regionais; d) mudanças na sociedade pluriclasse, com os sujeitos deixando de se organizar preponderantemente pela posição que ocupam na cadeia produtiva (capital – trabalho), ocupação por sinal crescentemente instável e cambiante, para reunirem-se em grupos sociais de variados substratos (idade, lazer, religião, formação cultural, etnia, etc); e) erosão do conceito clássico de soberania do Estado, que vem perdendo espaço, tanto montante, para entidades internacionais (ONU, OMC, EU etc) e poderosas organizações econômicas transnacionais, como a jusante, para organizações sociais locais e setoriais, o que tem causado sensível alteração na teoria das fontes do direito (fontes emergentes, de caráter internacional, privado, corporativo, comunitário, técnico, deontológico etc); e, por esses motivos, f) a diminuição da importância da política estatal stricto sensu.

As sucessivas emendas demonstraram a necessidade de se rever o papel que a Constituição de 1988, em seu texto primitivo, reservava ao Estado. A progressiva retirada deste da prestação direta dos serviços públicos e das atividades econômicas – Emendas Constitucionais nos 6/95, 8/95 e 9/95 –, aliada à drástica redução da participação direta do Estado na atividade econômica a partir do Plano Nacional de Desestatização, fez surgir a correlata necessidade de monitoramento constante dessas atividades, visando a evitar práticas abusivas por parte das empresas privadas, condutas anticoncorrenciais ou concentração empresarial, além de procurar garantir a qualidade, a universalidade e a continuidade do serviço para os destinatários finais, proteger o consumidor contra a ineficiência, o domínio do mercado, a concentração econômica, a concorrência desleal e o aumento arbitrário dos lucros. Nesses termos, salienta Juan Carlos Cassagne(9)


O fenômeno da privatização, ao abarcar a transferência ao setor privado da gestão dos serviços públicos, que antes eram prestados por empresas estatais, trouxe a correlata necessidade de regular essas atividades para proteger devidamente os interesses da comunidade. No campo do Direito Administrativo, não é comum que o Estado regule suas próprias entidades e articule controle na proteção dos usuários, e dificilmente o Estado exige de suas empresas que os serviços públicos por elas prestados sejam disponibilizados com a maior eficiência possível.

A ingerência estatal termina por ser mais forte e mais eficaz quando não é o próprio Estado quem presta diretamente o serviço. A influência sobre a gestão privada, em se tratando de eficiência, tornou-se maior após as privatizações do que quando o Poder Público prestava diretamente, ou por intermédio de empresas estatais, os serviços públicos, de forma que, hoje, melhores resultados são alcançados.

A regulação, à época do intervencionismo direto, era precária e casuística, fenômeno que pode ser analisado também em outros países que, tais como o Brasil, utilizaram-se de empresas estatais para o desenvolvimento de setores tidos por estratégicos. O professor da Universidade Complutense de Madri, Alberto Alonso Ureba(10), em extensa tese publicada sobre as empresas públicas, destaca que, apesar dessas entidades disporem de diversos privilégios não extensíveis ao setor privado, como situações de monopólio, linhas especiais de crédito, subvenções, dotações orçamentárias, atribuições patrimoniais, isenções fiscais, entre outros, os resultados que oferecem para a sociedade são manifestamente negativos, como escassa produtividade, altos índices de prejuízos e de endividamentos, custos vultosos com pessoal, ao passo em que não há o correspondente volume de investimentos necessários em tecnologia, resultando na perda de competitividade internacional.

Embora se encaixem com maestria à vida das nossas empresas públicas, tais características não são exclusivamente brasileiras. Ao contrário, são comumente encontradas em diversos países que adotaram essa modalidade de ente estatal, como Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Chile, Argentina e Espanha. Os pífios resultados foram produzidos tanto nas empresas públicas prestadoras de serviços públicos como nas que atuavam na atividade econômica, sem que houvesse uma justificativa razoável para a permanência de tais empresas no mercado.

Gravíssimas são as conseqüências de um setor público ineficaz para o conjunto do sistema econômico: constante pressão orçamentária e fiscal, represando grande parte dos recursos públicos, aumento extorsivo da carga tributária, para financiar a manutenção do modelo estatal inoperante, descrédito internacional, hiperinflação, incapacidade de promover uma poupança pública apta a financiar políticas urgentes, redução das taxas de crescimento e estagnação da renda dos habitantes.

Estudos realizados em diferentes países que adotaram tal modelo demonstram que a principal causa de ineficiência das empresas estatais é o excesso de intervenção política na gestão empresarial, o que resulta em uma desprofissionalização e atecnicidade dos dirigentes, bem como a conseqüente dependência dos órgãos de gestão e de administração a jogatinas político-partidárias. Conforme ressalta o professor Ureba(11):

O controle político não se limitou à fixação dos grandes objetivos sociais, políticos e econômicos, através de diretrizes básicas ou gerais compatíveis com uma independência na gestão ordinária que permita uma atuação eficaz com base em critérios comerciais e, em conformidade com isso, uma exigência de responsabilidade quando fosse o caso, senão que se chegou a uma interferência total das instâncias políticas que não se traduz naquelas diretrizes básicas, nem no controle por nomeação e remoção direta e livre de diretores e conselheiros, mas que se estende inclusive à gestão ordinária (salários, tarifas, inversões, financiamento, comercialização, produção), dando lugar a uma confusão dos poderes e das responsabilidades, o que se agrava ainda mais com as mudanças produzidas pela alternância política.

Trata-se, sem sombra de dúvidas, da adoção do funesto modelo do Spoil System, prática tão comum na Administração Pública brasileira e que consiste em exonerar todos os funcionários que haviam sido nomeados para cargos de confiança na gestão política anterior, pouco importando a presteza com que desempenhavam seus misteres e a importância que representavam à preservação da memória da instituição. É a adoção do critério do apadrinhamento, em detrimento de uma Administração Pública imparcial e despersonalizada, ignorando–se a técnica, a experiência e a especialização acumuladas.


Ora, se essa crítica pode ser feita em relação a países nos quais bem cedo foram estipulados os limites entre a esfera pública e a privada, o que se dirá em relação ao Brasil, de origens patrimonialistas e no qual ainda se podem sentir os efeitos perversos das distorções causadas por séculos de apropriação indevida do público pelo privado – nepotismo, corrupção, clientelismo, corporativismo, fisiologismo?

Vale sublinhar, no caso concreto, o fato de a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos ocupar um não-orgulhoso lugar de destaque na máquina administrativa do Governo. A presidência da estatal é disputadíssima, uma vez que assegura, ao detentor, a possibilidade de preencher mais de 120 cargos no alto escalão, entre diretores e coordenadores regionais, além do poder de administrar uma receita anual de aproximadamente R$ 7,6 bilhões de reais(12) e um mercado que movimenta cerca de R$ 8 bilhões de reais(13), em dados relativos ao ano de 2004. Não é preciso ressaltar a natureza política das nomeações para tais cargos, a beneficiar os amigos dos que têm poder.

Dados financeiros de 2003, da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, mostram como a gestão do dinheiro público, na maior parte das vezes, não acontece com a acuidade e a presteza que acometem o administrador de recursos próprios. Observa-se que a receita operacional da empresa é inferior, em quase meio bilhão de reais, aos gastos efetuados(14), e que esta diferença assume posição crescente, ao correr dos anos. A estatal só não opera no vermelho por conta de aplicações financeiras que realiza com os valores percebidos e que lhe garante uma sobrevida para operar nos anos seguintes.

Diversas são as críticas realizadas à gestão financeira da empresa, especialmente quanto aos gastos efetuados com a contratação de aeronaves para proceder à distribuição da correspondência. Espantosamente, agindo na contramão das empresas internacionais que atuam no mesmo setor, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos não possui sequer um avião em sua frota de veículos, apesar de precisar de mais de 35 aeronaves diariamente – necessidade suprida por meio de fretamentos com as mais variadas companhias aéreas – para atender à demanda na entrega postal(15).

Observa-se, portanto, que, muitas vezes, a intervenção direta praticada pelo Estado está mais perto dos interesses secundários do que dos primários, verdadeiramente públicos, para aludir à clássica distinção feita por Renato Alessi. Preservam-se os interesses do ente estatal incumbido da prestação da atividade em vez de se protegerem os usuários, destinatários finais, obedecidos os princípios da celeridade, da economicidade e da eficiência.

A comprovada ineficácia com que a atividade econômica era prestada pelo Estado terminou por acelerar a progressiva retirada do Estado da prestação das atividades econômicas. De toda sorte, a referida retração estatal não pode ser analisada fora da conjuntura de reformas que permeia a atual Administração Pública brasileira. Novos modelos vêm sendo implementados, novas figuras jurídicas vêm sendo criadas, como a regulamentação dos contratos de concessão e de permissão, os contratos de gestão, os órgãos reguladores, as organizações sociais, as organizações da sociedade civil sem fins lucrativos – Oscip, as agências executivas, as parcerias público-privadas, tudo isso a partir da premissa de que a preservação do interesse público nem sempre é sinônimo de atuação estatal. Ao reverso, o que a experiência vem demonstrando é que em muitos casos mais se atende ao interesse social quando o Estado se retira da prestação direta e passa a atuar de outra maneira, como ente capaz de regular, fiscalizar e impor sanções, de acordo com os ditames do artigo 174 da Carta Política, e liberta a atividade econômica para seus verdadeiros titulares: a iniciativa privada.

Nesse teor, bem advertiu o professor da Faculdade de Lisboa Marcello Caetano(16), ao afirmar que, em uma sociedade com economia de mercado, somente se justificaria a assunção, pelo Estado, de serviços públicos de natureza econômica – com a correlata exclusão da iniciativa privada – se esta tivesse se revelado insuficiente ou deficiente, ou ainda se, para o interesse público, houvesse se mostrado deveras perigosa a insegurança na competição entre as empresas ou a oscilação dos preços, o que simplesmente não é o caso no contexto postal brasileiro.

Desse modo, faz-se necessário reconhecer que, diante do texto constitucional de 1988, frente às mutações operadas no Direito Administrativo brasileiro, de acordo com as inovações perpetradas no que tange aos limites de participação do Estado na economia, simplesmente não há mais espaço para se entender recepcionada a Lei nº 6.538/78, especialmente o texto do artigo 9º, no que disciplina o serviço postal como monopólio a ser explorado unicamente pela União.


Evidenciada a não-recepção do monopólio do serviço postal pela Carta Política, cumpre analisar, ainda, o enquadramento do referido serviço nas áreas de atuação estatal. Uma das classificações da teoria do serviço público procura examiná-lo em relação aos destinatários finais. Quando se observa que determinada prestação beneficia a todos, coletivamente, tem-se que esta é uma atividade de interesse público, em sentido lato. Tradicionalmente, vinculava-se a idéia de serviço público à satisfação de necessidades coletivas pelo Estado. Todavia, nem sempre essa definição corresponde à melhor forma de atender à vontade geral.

É preciso destacar que não se pode ter tamanho apego à forma, ou melhor, não se deve desenvolver o fetichismo exegético de dar mais importância ao conceito do que à essência da atividade desempenhada. Em vez de adotar parâmetros estanques e bitolados, como, por exemplo, o fato de serviço público necessariamente significar prestação estatal, deve-se ter o cuidado de analisar a essência da atividade que está sendo desenvolvida, para, somente a partir desse ponto, classificá-la como sujeita ao regime de direito público ou de direito privado.

Desse modo, no contexto de reestruturação do Estado, pode-se esboçar o seguinte esquema de delimitação das áreas de atuação estatal:

a) Núcleo de atividade estratégica – corresponde às funções indelegáveis do Estado, compreendendo os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, o Ministério Público, a Presidência da República, e demais órgãos – de direção, de execução e consultivos – integrantes das pessoas estatais, responsáveis pelo planejamento e pela formulação das políticas públicas;

b) Atividades próprias, típicas e exclusivas de Estado – são os serviços em que se exerce o poder extroverso do Estado – regulamentar, fiscalizar, fomentar. Determinadas atividades, tais como diplomacia, polícia judiciária, arrecadação e fiscalização de tributos, atividade de procuradoria fazendária, regulação de setores de infra-estrutura, entre outras, fazem parte do rol das funções tipicamente estatais, não podendo ser privatizadas nem desempenhadas por terceiros, ante razões de segurança e de soberania nacional;

c) Terceiro setor (serviços não-exclusivos) – trata-se do chamado setor “público não-estatal”, como a área de saúde, telecomunicações, educação. A reforma que vem sendo implementada no Estado prevê a paulatina transferência da prestação de alguns destes serviços, que deixam de ser realizados pelo Poder Público e passam a ser executados por entes em colaboração, como as organizações sociais, que pactuam contratos de gestão com a Administração Pública (Lei nº 9.637/98) e as organizações da sociedade civil de interesse público, que celebram termos de parceria com o ente estatal (Lei nº 9.790/99);

d) Quarto setor (produção para o mercado) – é a área de produção e circulação de bens e serviços, atividades de cunho econômico, de que o Estado era titular por conta da Constituição Federal. A reforma no aparelho estatal possibilitou a transferência da titularidade de empresas públicas, passando-as para a iniciativa privada, pelo Programa Nacional de Desestatização.

No caso concreto, melhor alcança o interesse da coletividade a garantia de que o serviço postal, em suas diversas modalidades, possa ser prestado em regime de concorrência entre as diversas empresas que disputam o mercado consumidor, porquanto tal modelo induz à busca constante de melhorias tecnológicas, redução dos custos operacionais e conseqüente queda dos preços oferecidos pelo serviço. Os serviços postais enquadram-se, desse modo, no Terceiro Setor, hipótese em que a atividade pode e deve ser prestada por particulares, sem que isso signifique a diminuição da alta relevância social do desempenho de tais misteres. Ao revés, ocorrerá até uma maior intervenção estatal por meio da regulação, ao lado dos já regulados serviços de educação, saúde, telecomunicações, energia elétrica.

É preciso destacar que a defesa de privilégios corporativistas não pode ser mascarada sob o rótulo de nacionalismo. Tal observação faço, inclusive, para afastar qualquer tipo de interpretação que gere mal-entendidos: na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.273–9/DF, ao proferir voto vista, entendi que o monopólio do petróleo não se coaduna com a transferência de propriedade do bem e que, no caso, era necessária a intervenção direta do Estado na economia, ante razões óbvias, creio eu, para fazer predominar o interesse público, em jogo a soberania nacional. O Tribunal concluiu não haver o monopólio, ficando mitigado o alcance do vocábulo constante do artigo 177 da Constituição Federal. Então, qual será o enfoque ante o fato de o artigo 21 não prever, ao contrário das Constituições de 1934 e de 1937, o exercício privativo da atividade na qual hoje prevalece o conteúdo econômico e referir–se apenas à manutenção? O que significa, no contexto social do momento, o verbo “manter”, inserido no inciso X do artigo 21?


A leitura da Constituição revela que o Legislador constituinte, quando quis remeter à necessidade de prestação direta da atividade pelo Estado, consignou-a expressamente, utilizando-se, para tanto, de construções como “explorar, diretamente ou mediante concessão”, para o caso das telecomunicações, considerado o texto original do inciso XI do artigo 21; ou “explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão”, para os casos de radiodifusão sonora, de sons e de imagens (artigo 21, inciso XII, alínea “a”); para os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água (artigo 21, inciso XII, alínea “b”); para a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária (artigo 21, inciso XII, alínea “c”); para os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território (artigo 21, inciso XII, alínea “d”); para os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros (artigo 21, inciso XII, alínea “e”) e, ainda, quanto aos portos marítimos, fluviais e lacustres (artigo 21, inciso XII, alínea “f”).

A Constituição Federal é exaustiva, também, no tocante à instituição do monopólio da atividade econômica – artigos 21, inciso XXIII, e 177 da Carta, a saber:

Art. 21. Compete à União:

(…)

XXIII – explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições: (…)

Art. 177. Constituem monopólio da União:

I – a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos;

II – a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro;

III – a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores;

IV – o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem;

V – a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados.

Somente o intérprete mais criativo poderia concluir que o verbo “manter”, a compelir a União a assumir os ônus relativos aos serviços postais, significa na verdade “prestação direta ou mediante delegação a empresa pública, em regime de reserva de mercado”. A prevalecer esse entendimento, é dado imaginar uma interpretação extensiva, no sentido de dizer que, onde na Constituição se lê “manter”, leia-se “monopólio”, o que é absolutamente risível. No caso e ante as peculiaridades envolvidas, “manter”, na verdade, significa um conjunto de serviços que devam ser garantidos necessariamente pela União, o que abrangeria, inclusive, eventual exigência de prestá-los diretamente, quando não houver interesse econômico suficiente à implementação da atividade em determinados pontos do território nacional. Funciona como espécie de aval que a União concede aos cidadãos, obedecidos os princípios de continuidade e de universalidade dos serviços.

Não há qualquer menção, no texto constitucional de 1988, ao monopólio na prestação dos serviços postais. Quando a lei foi editada, em 1978, atendia-se à previsão inserida na Constituição de 1967 e repetida na Emenda Constitucional nº 1, de 1969, no sentido de que a legislação infraconstitucional poderia fixar monopólios. É que, naquela época, a atuação estatal na economia não se fazia de forma subsidiária. As empresas públicas e as sociedades de economia mista surgiram no Direito brasileiro justamente sob os auspícios da Constituição pretérita, na década de 60, e serviram para intervir em esferas que se mostravam nitidamente econômicas.

É preciso ressaltar que a reconstrução do papel do Estado brasileiro envolve a superação de falsos dilemas, como o que levava a optar necessariamente pelo maniqueísmo entre serviço público e atividade econômica, como se uma atividade não pudesse correlacionar, ao mesmo tempo, os dois conceitos. Cumpre dissipar a ilusão de que os direitos fundamentais somente são observados se houver a preservação do Estado interventor. O Estado deve atuar, sim, mas de maneira subsidiária, de forma a assegurar boas condições para o crescimento da economia e o melhor desenvolvimento das capacidades de cada indivíduo, garantindo igualdade de oportunidades e viabilizando os deveres de continuidade, de universalidade e de eficiência na obtenção dos serviços públicos.


Abandonemos o conceito de Estado burocrático, formalista, exageradamente apegado aos meios, extremamente rígido, instituído no Brasil na década de 30 para fazer oposição ao Estado patrimonialista e que atendeu à proposta de dominação racional-legal idealizada por Max Weber. Adotemos o modelo de Estado gerencial, em vigor nos países escandinavos, na Inglaterra, na Austrália, como aquele que busca resultados, concede autonomia aos agentes, descentraliza os poderes, muito mais do que a mera observância de regras. Nesse sentido, atender ao princípio da subsidiariedade significa dizer que o que possa ser realizado de maneira satisfatória pelas empresas privadas não deve ser assumido pelo Estado. A eficiência do Poder Público, então, será dimensionada não pelo número de atividades que preste diretamente à população, mas na medida em que consiga manter o mercado plenamente saudável para a livre iniciativa e a livre concorrência das empresas privadas.

Nessa toada, a atuação do Estado na atividade econômica deverá ocorrer apenas quando esta se mostrar falha, ou insuficiente, de modo que o Poder Público aja de maneira a corrigir as imperfeições que o mercado sozinho não for capaz de digerir. Quando o cumprimento pela livre iniciativa se mostrar imperfeito, como por exemplo quando não atender às necessidades de universalização do serviço, deverá o Estado intervir, para garantir–lhe a manutenção de forma adequada a todos os cidadãos. Nesse sentido, valiosas são as lições extraídas de obra do professor Juan Carlos Cassagne(17):

A instituição dos monopólios em matéria dos chamados serviços públicos, industriais ou comerciais, contradiz abertamente o princípio da subsidiariedade, que legitima a gestão [estatal] e, ao mesmo tempo, desemboca em um sistema de alto custo social, já que as formas monopolísticas de prestação desses serviços públicos geram uma ineficiência natural que chega a resistir até às mudanças tecnológicas, à racionalização do serviço e à seleção de pessoal.

Na maioria esmagadora das situações, a razão que motivou o Estado brasileiro a intervir diretamente na economia não foi ideológica, mas prática, à exceção dos imperativos de segurança nacional ou de relevante interesse coletivo. É chegada a hora de reconhecer a crise do modelo adotado, porquanto a implicar intervenção desnecessária em uma área que consegue perfeitamente sustentar-se a partir da iniciativa privada resultando, ainda, na submissão de um setor da economia à dispensável subordinação a fatores políticos.

Ao reconhecer que a atividade econômica não é própria do Estado, torna-se de menor importância o interminável e insolúvel debate que permeia a exata definição do que vem a ser precisamente o serviço postal – se se trata de serviço público ou de atividade econômica no sentido estrito. Essa discussão envolve conotações de sectarismo ideológico que descamba para a retórica e para o jogo de palavras e conceitos, o que simplesmente não é necessário para resolver o problema versado nesta argüição.

É preciso avançar e superar esse dilema que, na essência, apresenta-se falso, haja vista a possibilidade de conviverem diferentes regimes de realização da atividade: a prestação subordinada ao regime público, sujeita à observância dos princípios de universalidade e de continuidade do serviço, em termos fixados em contratos de concessão ou permissão, com as garantias que lhe são peculiares, e a prestação subordinada ao regime privado, observando-se os princípios de liberdade de iniciativa e de concorrência, podendo ser submetida a um regime de autorização por parte do Poder Público, a depender do tipo de atividade desempenhada.

A maneira como o serviço postal será prestado para a sociedade é, de fato, uma escolha política, cuja opção não compete ao Judiciário fazer: pode ser entendido como um serviço público não-exclusivo, de modo que os particulares sejam chamados para atuar em colaboração com o Estado; pode ser tido como atividade econômica em sentido estrito, de tal forma que a atuação privada seja regulada apenas pelas leis do mercado; pode ser considerada a dualidade de regimes, com prestação tanto no regime público – hipótese em que a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos atuaria com a observância dos deveres de continuidade e universalidade do serviço -, como no regime privado – quando empresas privadas operariam no mercado sujeitas à autorização por parte do Poder Público.

Todavia, independentemente do modelo a ser escolhido, o que não se pode conceber, porque não há qualquer dispositivo constitucional que assim o permita, é a convivência da liberdade de iniciativa como princípio fundamental da República Federativa brasileira e o vetusto e ultrapassado monopólio, há muito instituído, por meio de lei anterior à Carta de 1988 e que não mais atende ao interesse público, cuja sobrevivência decorreu, ao longo desses anos, de pressões político-partidárias, fazendo gerar inúmeros conflitos de interesse.


A possibilidade de duplo regime quanto à prestação do serviço foi inserida no nosso ordenamento jurídico por meio da Lei nº 9.472, de 1997, quando se consignou que, no caso das telecomunicações, poderia coexistir o regime público com o privado. E, para afastar essa aparente, porque falsa, dicotomia entre serviço público e atividade econômica é que o Constituinte derivado houve por bem retirar o adjetivo “público”, que qualificava o serviço de telecomunicações, isso quando da Emenda Constitucional nº 8, de 1995. Desse modo, o texto atual remete ao “serviço de telecomunicações” quando versa sobre a competência da União para explorá-lo diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, e não mais ao “serviço público de telecomunicações”.

Quando se permite a livre atuação das empresas privadas, admite-se que estas estarão sujeitas a duplo controle: além da regulação ínsita a cada categoria, determinada pelo Poder Público, deverão ainda passar pelo crivo do exigente consumidor, cidadão-cliente que, atento ao valor do próprio salário, procura a melhor resposta à equação custo/benefício, o que o monopólio, ao estabelecer a exclusiva prestação da atividade, não consegue responder, uma vez que obriga os consumidores a aceitarem passivamente o preço que lhes é imposto. Não raras são as hipóteses em que o preço ofertado pelos Correios para custear certa entrega chega a ser nove vezes superior ao preço realizado pelas demais empresas que operam no mercado, como, por exemplo, acontece no setor de distribuição de gás canalizado(18).

A justificativa da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos para a diferença de preços praticados no setor postal baseia-se no princípio da universalização dos serviços. Dessa forma, argumenta que, para atender ao princípio do serviço universal, conjugado com a modicidade das tarifas, faz-se necessário superfaturar o preço da entrega da correspondência, quando o remetente e o destinatário se localizarem na mesma capital, ou, ainda, em capitais diferentes, visando a custear a entrega postal de destinatários e/ou remetentes situados em locais longínquos, ou cidades que não sejam capitais dos estados da Federação.

No setor das telecomunicações, a controvérsia sobre os custos da universalização da atividade foi resolvida por meio da criação do Fundo de Universalização do Setor de Telecomunicações – FUST, quando se previu que as empresas particulares atuantes no setor deveriam destinar parte dos lucros para garantir que o serviço de telecomunicações fosse prestado de forma contínua, universal e com tarifas módicas pela empresa que estivesse atuando sob o regime de direito público, na modalidade de concessão.

Mencionem-se os artigos 1º, 5º e 6º da Lei nº 9.998, de 17 de agosto de 2000 – por meio da qual se instituiu o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações – apenas para elucidar o debate:

Art. 1º Fica instituído o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações – Fust, tendo por finalidade proporcionar recursos destinados a cobrir a parcela de custo exclusivamente atribuível ao cumprimento das obrigações de universalização de serviços de telecomunicações, que não possa ser recuperada com a exploração eficiente do serviço, nos termos do disposto no inciso II do art. 81, da Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997.

(…)

Art. 5º Os recursos do Fust serão aplicados em programas, projetos e atividades que estejam em consonância com o plano geral de metas para universalização de serviço de telecomunicações ou suas ampliações que contemplarão, entre outros, os seguintes objetivos;

I – atendimento a localidades com menos de cem habitantes;

II – (VETADO)

III – complementação de metas estabelecidas no Plano Geral de Metas de Universalização para atendimento de comunidades de baixo poder aquisitivo;

IV – implantação de acessos individuais para prestação de serviço telefônico, em condições favorecidas, a estabelecimentos de ensino, bibliotecas e instituições de saúde;

V – implantação de acessos para utilização de serviços de redes digitais de informação destinadas ao acesso público, inclusive da internet, em condições favorecidas, a instituições de saúde;

VI – implantação de acessos para utilização de serviços de redes digitais de informação destinadas ao acesso público, inclusive da internet, em condições favorecidas, a estabelecimentos de ensino e bibliotecas, incluindo os equipamentos terminais para operação pelos usuários;

VII – redução das contas de serviços de telecomunicações de estabelecimentos de ensino e bibliotecas referentes à utilização de serviços de redes digitais de informação destinadas ao acesso do público, inclusive da internet, de forma a beneficiar em percentuais maiores os estabelecimentos freqüentados por população carente, de acordo com a regulamentação do Poder Executivo;


VIII – instalação de redes de alta velocidade, destinadas ao intercâmbio de sinais e à implantação de serviços de teleconferência entre estabelecimentos de ensino e bibliotecas;

IX – atendimento a áreas remotas e de fronteiras de interesse estratégico;

X – implantação de acessos individuais para órgãos de segurança pública.

XI – implantação de serviços de telecomunicações em unidades do serviço público, civis ou militares, situadas em pontos remotos do território nacional;

XII – fornecimento de acessos individuais e equipamentos de interface a instituições de assistência a deficientes;

XIII – fornecimento de acessos individuais e equipamentos de interface a deficientes carentes;

XIV – implantação da telefonia rural.

§ 1º Em cada exercício, pelo menos trinta por cento dos recursos do Fust, serão aplicados em programas, projetos e atividades executados pelas concessionárias do Sistema Telefônico Fixo Comutado – STFC nas áreas abrangidas pela Sudam e Sudene.

§ 2º Do total dos recursos do Fust, dezoito por cento, no mínimo, serão aplicados a educação, para estabelecimentos públicos de ensino.

§ 3º Na aplicação dos recursos do Fust será privilegiado o atendimento a deficientes.

Art. 6º Constituem receitas do Fundo:

I – dotações designadas na lei orçamentária anual da União e seus créditos adicionais;

II – cinqüenta por cento dos recursos a que se referem as alíneas c, d, e e j do art. 2º da Lei nº 5.070, de 7 de julho de 1966, com a redação dada pelo art. 51 da Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997, até o limite máximo anual de setecentos milhões de reais;

III – preço público cobrado pela Agência Nacional de Telecomunicações, como condição para a transferência de concessão, de permissão ou de autorização, de serviço de telecomunicações ou de uso de radiofreqüência, a ser pago pela cessionária, na forma de quantia certa, em uma ou várias parcelas, ou de parcelas anuais, nos termos da regulamentação editada pela Agência;

IV – contribuição de um por cento sobre a receita operacional bruta, decorrente de prestação de serviços de telecomunicações nos regimes público e privado, excluindo-se o Imposto sôbre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transportes Interestadual e Intermunicipal e de Comunicações – ICMS, o Programa de Integração Social – PIS e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins;

V – doações;

VI – outras que lhe vierem a ser destinadas.

Parágrafo único. Não haverá a incidência do Fust sobre as transferências feitas de uma prestadora de serviços de telecomunicações para outra e sobre as quais já tenha havido o recolhimento por parte da prestadora que emitiu a conta ao usuário, na forma do disposto no art. 10 desta Lei.

Ao se aludir ao modelo que rege as telecomunicações, é importante esclarecer que não se pretende propor a adoção desse ou daquele sistema, substituindo–se ao legislador, nem mesmo sugerir que compete ao Judiciário atuar como legislador positivo. Entretanto, a comparação com o molde das telecomunicações torna-se praticamente inevitável, ao se observar que tal cenário fora também idealizado para o segmento postal, quando do Projeto de Lei nº 1.491, de 1999, da autoria do Poder Executivo de outrora, sob o comando do então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso.

Naquele projeto, havia a referência ao Fundo de Universalização dos Serviços Postais – FUSP, à criação da Agência Nacional de Serviços de Correios, como ente regulador, e, sobretudo, ao fato de que o serviço poderia ser prestado tanto no regime público, como no regime privado. O primeiro sujeitar-se-ia aos deveres de universalização e de continuidade e seria regido por contrato de concessão, excepcionalmente, de permissão. O segundo estaria submetido a regime privado, precedido de autorização, atuando–se a partir dos princípios da livre iniciativa e livre exercício profissional, à mercê de concorrência ampla e justa e do respeito aos direitos dos usuários.

A despeito das inúmeras audiências públicas que permearam o debate, com representantes das mais diferentes categorias, tanto profissionais como econômicas, envolvendo a comunidade nacional e internacional, apesar da maturidade em que se encontrava o citado projeto de lei, discutido durante mais de quatro anos, inesperadamente, por meio da Mensagem nº 558, de 22 de outubro de 2003, o atual Poder Executivo formalizou o pedido de retirada do projeto da tramitação no Congresso Nacional, porquanto estaria “totalmente transfigurado e dissociado da ampla reforma econômica e social” que o hodierno governo diz propor para a nação brasileira.

Com isso, quer-se apenas ressaltar que o próprio governo de outrora já entendia não mais caber qualquer espécie de atuação monopolística, com reserva de mercado exclusiva para a ECT. Ao revés, reconhecia a necessidade de um modelo que fosse mais ágil e eficiente e sinalizava ser possível a convivência de dois regimes, afastando-se, desse modo, da controvérsia sobre a exata definição do serviço postal como serviço público ou como atividade econômica.


À luz do Direito Administrativo, não é dado olvidar a existência dos chamados conceitos indeterminados, cuja densificação é extremamente volátil e decorre dos sabores do momento. Na França, por exemplo, berço da Escola do Serviço Público, sistematizada por Duguit e Gastón Jèze, a religião chegou a ser considerada espécie de serviço público. Atualmente, no entanto, não só o Estado é laico, mas ainda são proibidas quaisquer manifestações de índole religiosa em escolas públicas, rejeitando-se inclusive demonstrações por meio de vestimentas e objetos pessoais. Nos países anglo-saxões, por sua vez, o conceito de serviço público liga-se à existência, ou não, de algum tipo de regulação estatal a submeter os prestadores privados daquela atividade, e não à execução direta por meio da Administração Pública.

No Brasil, a história é pródiga em demonstrar exemplos de que a melhor noção de serviço público não se vincula à essência do objeto em si, mas decorre de uma necessidade pontual e historicamente determinada de maior intervenção a ser feita pelo Estado em certa esfera da economia. O que em época de que não se tem saudade seria facilmente compreendido como “serviço público”, a demandar a intervenção estatal, hoje não passaria de manifesta demonstração de interferência indevida do ente público na atividade privada, a saber:

O Departamento Nacional do Café – criado pelo Decreto nº 22.452, de 10 de fevereiro de 1933;

O Instituto Nacional do Açúcar e do Álcool – criado pelo Decreto nº 22.789, de 1 de julho de 1933;

O Instituto Nacional do Malte – criado pelo Decreto nº 375, de 13 de abril de 1938;

O Instituto Nacional do Sal – criado pelo Decreto-Lei nº 2.300, de 10 de junho de 1940;

O Instituto Nacional do Pinho – criado pelo Decreto-Lei nº 3.124, de 19 de março de 1941;

As Companhias Industriais de Leite, criadas em diferentes Estados da Federação;

O Lloyd Brasileiro, sociedade anônima privada, que explorava a navegação de cabotagem e de médio e longo cursos e que passou a ser empresa estatal por meio do Decreto nº 1.708, de 11 de junho de 1937;

As Estradas de Ferro Central do Brasil – criadas pelo Decreto-Lei nº 3.306, de 24 de maio de 1941.

Nesse rol, e por idênticas razões, não poderíamos deixar de citar a criação do Departamento de Correios e Telégrafos, por meio do Decreto nº 20.859, de 26 de dezembro de 1931, como exemplo de atividade econômica que durante certo período – respeitadas circunstâncias sociais diversas das que temos hoje – chegou a ser considerada espécie do gênero serviço público.

Observa-se, desse modo, que a noção de serviço público não está ligada a questões ontológicas, nem mesmo funciona como corolário da natureza das coisas. Nenhuma atividade é, em si mesma, um serviço público. Tudo depende da maior ou menor intervenção que o Estado deseje realizar na atividade econômica. É preciso não perder de vista a advertência feita por Fernando Herren Aguillar sobre o fato de as correntes definições sobre serviço público remeterem a generalizações que foram ganhando espaço ao longo do tempo, de forma que o intérprete termina por filiar-se a longínquas tradições que são reproduzidas, sem proceder, contudo, à indispensável crítica(19). A par desse aspecto, o uso abusivo do conceito termina por enfraquecer-lhe a importância, banalizando-o e tornando-o carente de significado e de conteúdo.

O debate sobre a necessidade de quebra do monopólio do serviço postal não é novo na sociedade brasileira. Nos idos de 1994, época da revisão constitucional, e presente enfoque próprio dado à clausula constitucional existente, o parecer do então relator-geral(20), deputado Nelson Jobim, já sinalizava para a importância de se proclamar extinto o monopólio do serviço postal, com o fim da reserva de mercado para a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, de maneira que a atividade pudesse, sem percalços, ser explorada também pela iniciativa privada. No ano 2000, o professor da Universidade de São Paulo, Eros Roberto Grau, em parecer exarado a pedido da ECT – e ainda não-publicado – manifestou-se positivamente sobre a constitucionalidade do então Projeto de Lei nº 1.491/99, admitindo a possibilidade da prestação do serviço em regime privado, e, ainda, a constitucionalidade da prestação do serviço postal por meio de duplo regime, a despeito de haver concluído que os serviços postais seriam espécie de serviço público. O professor entendeu, ainda, que os serviços postais não poderiam configurar monopólio, não obstante poderem eventualmente submeter-se a um regime especial de privilégio.

Agora, finalmente, o Judiciário é chamado a enfrentar o problema e a interpretar se é possível a convivência do monopólio postal de outrora, de simples conotação legal, com a Constituição Federal de 1988.


No Direito comparado(21)isciplina conferida ao tema é bem diferente do monopólio cuja prevalência quer fazer crer a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. À exceção da Holanda e da Argentina, onde o serviço postal foi privatizado, o que se observa geralmente é a participação dos capitais público e privado na operacionalização dos serviços postais, havendo regime de concorrência na maior parte dos setores de entrega. Como exemplo, tem–se a Alemanha, onde participam da prestação dos serviços postais os capitais público e privado, bem como a França, onde se formaram os joint-ventures para atuar no setor. Empresas privadas celebram termos de parceria com o setor público ao redor do mundo, como acontece na Austrália e no Canadá. A Finlândia, a Suécia e a Nova Zelândia aboliram completamente o monopólio estatal do serviço de entrega de correspondências. A União Européia lançou os fundamentos do fim do monopólio postal na Diretriz nº 97/67/CE, para que as nações integrantes da União flexibilizem os mercados. Nos Estados Unidos, a empresa estatal, United States Postal Service – USPS, tem o monopólio da entrega relativamente às cartas comuns, mas não quanto às encomendas expressas e ao serviço rápido, que são abertos à concorrência. A maior empresa privada do país, a United Parcel Service – UPS fatura 30 bilhões de dólares por ano e entrega 14 milhões de encomendas por dia. Na Inglaterra, desenvolve-se o sistema de franquias – o que também chegou a acontecer no Brasil, e que serve como reforço de argumentação no sentido de não se poder considerar o serviço postal como um serviço público exclusivo e monopolístico, porque a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, como delegatária do serviço, não poderia livremente franquear a atividade a terceiros interessados, sem que isso fosse considerado de uma inconstitucionalidade flagrante, uma vez que, por meio do artigo 175, prevê–se que os serviços públicos serão prestados diretamente pelo Estado ou, se por particulares, mediante concessão ou permissão, sempre precedidos de licitação. Entretanto, mesmo diante da vedação constitucional a proibir a delegação de serviço público sem que dantes seja precedida de regular licitação, a ECT realizou, no período compreendido entre 1990 e 1994, quase dois mil contratos de franquia, talvez por perceber que de serviço público já não mais se tratava, o que denota, a mais não poder, a evidente contradição considerada a atuação anterior da ECT e o entendimento sustentado nesta Argüição. Em 1994, no entanto, o sistema de franquias foi proibido por decisão do Tribunal de Contas da União, até que o setor fosse devidamente regulamentado e não mais pairassem dúvidas sobre a que tipo de regime estaria submetida a execução da atividade.

É preciso ter em mente que “liberalização” do setor não se confunde com “privatização”. O serviço postal compõe-se de diversos blocos diferenciados, no que tange ao perfil do cliente, à concorrência, ao ciclo de vida do produto e à densidade tecnológica dos serviços. Há no mercado espaço e condições para que várias empresas atuem, especializando-se em determinado segmento da atividade. Como exemplos, cabe citar os seguintes setores do mercado: remessas expressas internacionais e nacionais, distribuição urbana, como ocorre com as multas de trânsito e com contas de serviços de telefone, luz e gás, impressos, correspondência agrupada, encomendas, marketing direto, financeiro, atendimento e correio híbrido – quando forem conjugados o processamento de informações, impressão remota e entrega.

Poder-se-ia aumentar ou diminuir o preço do serviço de acordo com a prioridade da entrega e não somente a partir da natureza do objeto transportado, o que ocasionaria diversos tipos de prestação: urgente — para clientes que privilegiassem prazo em relação ao preço -, normal — relação de equilíbrio entre prazo e preço – ou econômica — quando preço fosse o fator preponderante da escolha.

A par desses aspectos, faz-se necessária, ainda, uma reestruturação do setor, reformatando-se a logística postal, de modo a priorizar investimentos nas evoluções tecnológicas — de que são exemplos os sistemas código de barras, o Remote Video Coding System – RVCS e o Optical Character Recognition – OCR. Se antes se priorizava a entrega de cartas — cujo decréscimo de volume decorreu em larga medida dos fac-símiles e das mensagens eletrônicas -, agora a grande atuação do serviço postal é a entrega de encomendas, impulsionada principalmente com a forte demanda decorrente das compras realizadas pela internet. Por mais que se pretenda modernizar a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, a permanecerem as amarras que decorrem necessariamente da submissão desta ao regime de direito público, no sistema de monopólio, os principais prejudicados serão, certamente, os consumidores finais, como partes mais frágeis e hipossuficientes dessa relação.

Conta a mitologia grega que, no caminho para Atenas, havia um ladrão chamado Procrusto. Referido malfeitor, imbuído de sentimentos vis, além de assaltar aqueles que passavam, atemorizava-os com um teste cruel: os transeuntes deveriam deitar-se em um leito, o “Leito de Procrusto”, e, se acaso nele coubessem, poderiam continuar seguindo o próprio caminho. Entretanto, se fossem maiores, o satisfeito mentecapto cortava-lhes a cabeça, a fim de se amoldarem à armação. Se fossem menores, porém, seriam espichados até poderem conformar-se à superfície e, assim, saciar a vontade do salafrário.

Não se pode transformar a Carta da República no “Leito de Procrusto” e, assim, espichar ou diminuir o alcance das suas normas conforme se fizer necessário para que se julgue constitucional certa lei ou ainda determinada política de governo que se queira defender. Os intérpretes do Diploma Maior devem zelar para que este se mantenha íntegro, forte, para que os princípios constitucionais, tão caros à Democracia, sejam sempre analisados em conjunto, a fim de manter a unidade de uma Lei Fundamental que efetivamente represente o espírito de seu povo.

Acolho o pleito formulado na inicial para declarar que não foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988 os artigos da Lei nº 6.538/78 que disciplinaram o regime da prestação do serviço postal como monopólio exclusivo da União, — ou, mediante sutil jogo de palavras, em regime de “controle/privilégio exclusivo”, conforme quer fazer crer a Advocacia—Geral da União, em memorial entregue a esta Corte — a ser executado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, o que viola os princípios da livre iniciativa, da liberdade no exercício de qualquer trabalho, da livre concorrência e do livre exercício de qualquer atividade econômica, respectivamente disciplinados na Carta Política de 1988 nos artigos 1º, inciso IV, 5º, inciso XIII, 170, cabeça, inciso IV e parágrafo único.

É como voto na espécie.

ADPF 46

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