O rosto da ação

Supremo Tribunal Federal julga no mérito a primeira ADPF

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7 de dezembro de 2005, 20h05

Criada para suprir a lacuna da Ação Direta de Inconstitucionalidade, que não pode ser aplicada a leis anteriores a 1988 nem contra atos municipais, a ADPF — Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental teve nesta quarta-feira (7/12), seu primeiro julgamento de mérito no Supremo Tribunal Federal.

No caso concreto, a ADPF 33, o plenário do Supremo declarou, por unanimidade, a ilegitimidade um decreto estadual que vinculava os vencimentos dos servidores de um instituto estadual (Idesp) ao salário mínimo nacional. O relator da ação, ministro Gilmar Mendes, reafirmou sua decisão na liminar e julgou procedente a ADPF.

Mais importante que o caso concreto, porém, considerou-se o fato de a ADPF ter finalmente seu perfil definido. No dizer do ministro Celso de Mello “com o voto do ministro Gilmar Mendes, o STF inicia, agora, um processo de elaborada construção jurisprudencial destinado a valorizar a ADPF”.

Outras matérias em julgamento no STF em sede de ADPF são as questões da possibilidade de aborto de fetos anencefálicos e a discussão sobre a manutenção do monopólio postal da Empresa de Correios e Telégrafos.

A discussão travada no julgamento do Supremo foi em torno do cabimento da ADPF em face de decreto estadual, anterior à Constituição de 1988. Era preciso definir se a norma que fixou a remuneração de servidores de autarquia vinculada ao salário-mínimo ofende preceito fundamental. A Procuradoria-Geral da República opinou pela procedência do pedido do estado.

A aceitação da ADPF não só suspendeu a norma como deve mandar para o arquivo centenas de ações judiciais de servidores que se escoravam na regra.

O relator da ação, Gilmar Mendes, enquanto advogado-geral da União foi quem produziu os projetos de lei que regulamentaram a aplicação da Ação Direta de Inconstitucionalidade (que se tornou a Lei 9.868/99) e da ADPF (Lei 9.882/99).

O voto abaixo reproduzido, ainda sem revisão, foi classificado pelo ministro Celso de Mello belíssimo e brilhante: “O magnífico voto proferido apoiou-se em sólidos fundamentos doutrinários e abre novas perspectivas para a utilização da ADPF, pois delineou de maneira clara e compatível com o sistema de direito constitucional positivo, os pressupostos os requisitos e o âmbito de incidência desse importantíssimo instrumento constitucional.”

Leia o voto do ministro Gilmar Mendes

(Sem revisão)

07/12/2005

TRIBUNAL PLENO

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 33-5 PARÁ

RELATOR: MIN. GILMAR MENDES

ARGUENTE: GOVERNADOR DO ESTADO DO PARÁ

ARGUIDO: INSTITUTO DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO-SOCIAL DO PARÁ – IDESP

INTERESSADO(A/S): AFONSO SILVA MENDES

ADVOGADO(A/S): JOSÉ DA SILVA CALDAS E OUTROS

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (RELATOR): O Governador do Estado do Pará, com fundamento no art. 2o, inciso I da Lei no 9.882, de 3.12.1999, e arts. 102, § 1o e 103, inciso V da Constituição, apresentou argüição de descumprimento de preceito fundamental que tem por objetivo impugnar o art. 34 do Regulamento de Pessoal do Instituto de Desenvolvimento Econômico-Social do Pará (IDESP), adotado pela Resolução no 8/86 do Conselho de Administração e aprovado pelo Decreto Estadual no 4.307, de 12 de maio de 1986, com o fim de fazer cessar lesão ao princípio federativo e à vedação constitucional de vinculação do salário mínimo para qualquer fim (art. 7º, IV, CF/88).

Referido Instituto, autarquia estadual criada pela Lei no 3.649, de 27 de janeiro de 1966, foi extinto pela Lei no 6.211, de 28 de abril de 1999, que determinou ser o Estado do Pará sucessor do IDESP, para todos os fins de direito (art. 11).

O dispositivo impugnado trata da remuneração do pessoal da autarquia, vinculando o quadro de salários ao salário mínimo, o que estaria a configurar afronta ao princípio federativo (arts. 1o e 18 da Constituição), no entendimento de que o poder do Estado de estabelecer a remuneração de seus servidores ficaria vinculado a índice fixado pelo Governo Federal.

Segundo o Governador do Estado, também o art. 7o, inciso IV, da Constituição de 1988, que expressamente proíbe tal vinculação, estaria sendo desrespeitado, principalmente no que se refere à sua finalidade, qual seja evitar efeitos inflacionários que acabariam por afetar o processo de elevação do valor do salário mínimo. Assim, estariam sendo lesados os preceitos fundamentais relativos ao princípio federativo e ao direito social fundamental ao salário mínimo digno.

O autor pretende ver declarada, com eficácia erga omnes, a não-recepção pela Constituição de 1988 da norma ora impugnada.

Solicitou, ainda, concessão de medida liminar para determinar a suspensão de todos os processos e dos efeitos de decisões judiciais que versem sobre a aplicação do art. 34 do Regulamento de Pessoal do IDESP, considerando que a concretização de todas as decisões judiciais, destinadas à aplicação do art. 34 do referido regulamento, comprometeria a ordem jurídica, além de causar grave lesão à economia do Estado. Fundamenta sua solicitação, a indicar o periculum in mora, o acréscimo de 345,35% à folha de pagamentos do Estado, o que significaria necessidade adicional da ordem de R$ 4,3 milhões mensais (fls. 26).

Deferi a liminar, decisão que restou referendada por esta Corte (fls. 195 e ss.).

O eminente Procurador-Geral da República, Dr. Cláudio Fonteles, manifesta-se pela procedência da presente ação, com a declaração de inconstitucionalidade do art. 34 e §§ do Regulamento de Pessoal do IDESP, aprovado pelo Decreto Estadual nº 4.307, de 1986.

Posteriormente ao julgamento da cautelar, vieram aos autos Afonso Silva Mendes e outros, postulando o ingresso no feito na condição de amici curiae e apresentando razões em desfavor da tese do reclamante. Inicialmente indeferi tal pleito. Em face de provocação fundamentada, reconsiderei aquela primeira decisão e admiti o ingresso daqueles interessados no presente feito, na condição de amici curiae (fl. 287).

Referidos interessados são autores de ações movidas contra o extinto IDESP, tendo como fundamento justamente a previsão do art. 34 do ato ora impugnado.

Conforme relata o parecer do Ministério Público (fls. 948/950), os fundamentos trazidos pelos amici curiae podem ser assim resumidos:

“a) há ‘ação direta de inconstitucionalidade contra a Lei nº 9.882/99’ (fls. 301), o que inviabiliza seu processamento, que há de ser sobrestado;

b) ausência de capacidade postulatória do argüente (303/307);

c) perda do objeto pela revogação da norma impugnada (fls. 307/9);

d) ofensa ao princípio da subsidiariedade (fls. 309/316);

e) ausência de comprovação de controvérsia judicial relevante (fls. 316/319); e

f) restrição dos efeitos da decisão a ser proferida, acaso procedente (fls. 319/324).”

Tendo em vista as razões trazidas pelos amici curiae, determinei nova remessa dos autos ao Ministério Público. O ilustre Procurador-Geral analisou os argumentos e reiterou os termos do seu parecer anterior (fls. 948/951).

É o relatório.

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 33-5 PARÁ

V O T O

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (RELATOR):

Considerações preliminares – Nos termos da Lei no 9.882, de 3 de dezembro de 1999, cabe a argüição de descumprimento de preceito fundamental para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público (art. 1o, caput).


O parágrafo único do art. 1o explicita que caberá também a argüição de descumprimento quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclusive anteriores à Constituição (leis pré-constitucionais).

Vê-se, assim, que a argüição de descumprimento poderá ser manejada para solver controvérsias sobre a constitucionalidade do direito federal, do direito estadual e também do direito municipal.

Na hipótese dos autos, não prevalece o argumento do amicus curiae no sentido de que a controvérsia não restou demonstrada. Tão somente o fato de existirem decisões do Tribunal de Justiça em sentido manifestamente oposto à jurisprudência pacificada desta Corte quanto à questão da vedação de vinculação de salários a múltiplos do salário mínimo já é suficiente para demonstrar a controvérsia sobre o tema. Nesse sentido, o parecer da PGR:

“Por questionar, justamente, toda uma linha jurisprudencial decisória de Colegiado estadual a consagrar parâmetro de remuneração em frontal desafio ao texto constitucional e à consolidada jurisprudência da Suprema Corte, tal quadro, por óbvio, impede o reclamo derradeiro dos amici curiae” (fls. 950-952).

Pode-se dizer que a argüição de descumprimento vem completar o sistema de controle de constitucionalidade de perfil relativamente concentrado no STF, uma vez que as questões até então não apreciadas no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade) poderão ser objeto de exame no âmbito do novo processo.

Por fim, vale registrar que o fato de ainda estar pendente de julgamento a medida cautelar na ADI nº 2231-8/DF, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil contra a íntegra da Lei nº 9.882/99, não prejudica a análise do presente feito, pois muito embora já tenha sido proclamado o voto do Min. Néri da Silveira, no sentido de deferir em parte a medida cautelar com relação ao inciso I do parágrafo único do artigo 1º da Lei nº 9.882/99, para excluir de sua aplicação controvérsia constitucional concretamente já posta em juízo, bem como deferindo a liminar para suspender o §3º do artigo 5º da mesma lei, com eficácia ex nunc e até julgamento final da ação direta de inconstitucionalidade, o julgamento está suspenso em virtude do pedido de vista do Min. Sepúlveda Pertence, de forma que a Lei nº 9.882/99 está integralmente em vigor, de forma que não há óbice a se continuar o julgamento das argüições de descumprimento de preceito fundamental ajuizadas.

Se outro fosse o entendimento, ter-se-ia um esvaziamento da garantia constitucional inserida pelo legislador constituinte originário (e já regulamentada pelo legislador ordinário) ocasionada pela atividade do próprio Supremo Tribunal Federal.

Ademais, pelo menos em dois casos, esta Corte iniciou o julgamento de ADPFs, mesmo após a suspensão do julgamento da ADI 2331-8/DF:

1) ADPF 46, que teve o julgamento iniciado em 15/06/05, suspenso em virtude de vista do Min. Joaquim Barbosa; retomado em 17/11/05 e novamente suspenso em virtude do pedido de vista da Min. Ellen Gracie;

2) ADPF 54, cuja liminar foi deferida em 01/07/04, monocraticamente, pelo Min. Marco Aurélio, e o Plenário revogou em parte a decisão em 20/10/04.

Assim, não é o caso de se suspender o julgamento da presente ação.

Legitimidade do Governador de Estado para subscrever a petição inicial da ADPF

Alega-se, no memorial do amicus curiae, que ao Governador do Estado do Pará, subscritor da presente ação, falece de capacidade postulatória para subscrever sozinho a petição inicial, pois, nos termos do art. 12, I, do CPC, a referida peça deveria ter sido assinada por Procurador de Estado ou por procurador advogado habilitado por procuração (art. 36 do CPC).

Sucede que a jurisprudência do STF, segue no sentido de considerar o Governador de Estado detentor de capacidade postulatória para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal, decorrente da própria lei.

Por essa razão, inclusive, reconhece-se à referida autoridade, independentemente de sua formação, aptidão processual plena ordinariamente destinada apenas aos advogados (ADIMC 127-AL, Celso de Mello, DJ 04.12.92), constituindo-se verdadeira hipótese excepcional de jus postulandi. Eis a ementa da referida decisão:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. QUESTÃO DE ORDEM. GOVERNADOR DE ESTADO. CAPACIDADE POSTULATORIA RECONHECIDA. MEDIDA CAUTELAR. DEFERIMENTO PARCIAL. 1. O Governador do Estado e as demais autoridades e entidades referidas no art. 103, incisos I a VII, da constituição federal, além de ativamente legitimados a instauração do controle concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos, federais e estaduais, mediante ajuizamento da ação direta perante o Supremo Tribunal Federal, possuem capacidade processual plena e dispõem, ex vi da própria norma constitucional, de capacidade postulatória. Podem, em consequência, enquanto ostentarem aquela condição, praticar, no processo de ação direta de inconstitucionalidade, quaisquer atos ordinariamente privativos de advogado. 2. A suspensão liminar da eficácia e execução de leis e atos normativos, inclusive de preceitos consubstanciados em textos constitucionais estaduais, traduz medida cautelar cuja concretização deriva do grave exercício de um poder jurídico que a constituição da republica deferiu ao supremo tribunal federal. A excepcionalidade dessa providencia cautelar impõem, por isso mesmo, a constatação, hic et nunc, da cumulativa satisfação de determinados requisitos: a plausibilidade jurídica da tese exposta e a situação configuradora do periculum in mora. precedente: ADIN n. 96-9 – RO (medida liminar, DJ de 10/11/89).”


Assim sendo, não procede o argumento de que falece ao Governador de Estado capacidade postulatória na presente ação.

Parâmetro de controle – É muito difícil indicar, a priori, os preceitos fundamentais da Constituição passíveis de lesão tão grave que justifique o processo e o julgamento da argüição de descumprimento.

Não há dúvida de que alguns desses preceitos estão enunciados, de forma explícita, no texto constitucional.

Assim, ninguém poderá negar a qualidade de preceitos fundamentais da ordem constitucional aos direitos e garantias individuais (art. 5o, dentre outros). Da mesma forma, não se poderá deixar de atribuir essa qualificação aos demais princípios protegidos pela cláusula pétrea do art. 60, § 4o, da Constituição, quais sejam, a forma federativa de Estado, a separação de Poderes e o voto direto, secreto, universal e periódico.

Por outro lado, a própria Constituição explicita os chamados “princípios sensíveis”, cuja violação pode dar ensejo à decretação de intervenção federal nos Estados-membros (art. 34, VII).

É fácil ver que a amplitude conferida às cláusulas pétreas e a idéia de unidade da Constituição (Einheit der Verfassung) acabam por colocar parte significativa da Constituição sob a proteção dessas garantias. Tal tendência não exclui a possibilidade de um ‘engessamento’ da ordem constitucional, obstando à introdução de qualquer mudança de maior significado (Cf. Otto-Brun Bryde, Verfassungsengsentwicklung, Stabilität und Dynamik im Verfassungsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Baden-Baden, 1982, p. 244).

Daí afirmar-se, correntemente, que tais cláusulas hão de ser interpretadas de forma restritiva. Mas essa afirmação simplista, ao invés de solver o problema, pode agravá-lo, pois a tendência detectada atua no sentido não de uma interpretação restritiva das cláusulas pétreas, mas de uma interpretação restritiva dos próprios princípios por elas protegidos.

Essa via, em lugar de permitir fortalecimento dos princípios constitucionais contemplados nas ‘garantias de eternidade’, como pretendido pelo constituinte, acarreta, efetivamente, seu enfraquecimento.

Assim, parece recomendável que eventual interpretação restritiva se refira à própria “garantia de eternidade” sem afetar os princípios por ela protegidos (Bryde, cit., p. 244).

Por isso, após reconhecer a possibilidade de que se confira uma interpretação ao art. 79, III, da Lei Fundamental Alemã que não leve nem ao engessamento da ordem constitucional, nem à completa nulificação de sua força normativa, afirma Bryde que essa tarefa é prenhe de dificuldades:

“Essas dificuldades residem não apenas na natureza assaz aberta e dependente de concretização dos princípios constitucionais, mas também na relação desses princípios com as concretizações que eles acabaram por encontrar na Constituição. Se parece obrigatória a conclusão de que o art. 79, III, da Lei Fundamental não abarcou todas as possíveis concretizações no seu âmbito normativo, não se afigura menos certo que esses princípios seriam despidos de conteúdo se não se levassem em conta essas concretizações. Isso se aplica, sobretudo, porque o constituinte se esforçou por realizar, ele próprio, os princípios básicos de sua obra. O princípio da dignidade humana está protegido tão amplamente fora do âmbito do art. 1o, que o significado da disposição nele contida acabou reduzido a uma questão secundária (defesa da honra), que, obviamente, não é objeto da garantia de eternidade prevista no art. 79, III. Ainda que a referência ao 1o não se estenda, por força do disposto no art. 1o, III, a toda a ordem constitucional, tem-se de admitir que o postulado da dignidade humana protegido no art. 79, III, não se realiza sem contemplar outros direitos fundamentais. Idêntico raciocínio há de se desenvolver em relação a outros princípios referidos no art. 79, III. Para o Estado de Direito da República Federal da Alemanha afigura-se mais relevante o art. 19, IV (garantia da proteção judiciária), do que o princípio da proibição de lei retroativa que a Corte Constitucional extraiu do art. 20. E, fora do âmbito do direito eleitoral, dos direitos dos partidos políticos e dos chamados direitos fundamentais de índole política, não há limite para a revisão constitucional do princípio da democracia” (Bryde, cit., p. 245).

Essas assertivas têm a virtude de demonstrar que o efetivo conteúdo das ‘garantias de eternidade’ somente será obtido mediante esforço hermenêutico. Apenas essa atividade poderá revelar os princípios constitucionais que, ainda que não contemplados expressamente nas cláusulas pétreas, guardam estreita vinculação com os princípios por elas protegidos e estão, por isso, cobertos pela garantia de imutabilidade que delas dimana.


Os princípios merecedores de proteção, tal como enunciados normalmente nas chamadas “cláusulas pétreas”, parecem despidos de conteúdo específico.

O que significa, efetivamente, “separação de Poderes” ou “forma federativa”? O que é um “Estado de Direito Democrático”? Qual o significado da “proteção da dignidade humana”? Qual a dimensão do “princípio federativo”?

Essas indagações somente podem ser respondidas, adequadamente, no contexto de determinado sistema constitucional. É o exame sistemático das disposições constitucionais integrantes do modelo constitucional que permitirá explicitar o conteúdo de determinado princípio.

Ao se deparar com alegação de afronta ao princípio da divisão de Poderes de Constituição estadual em face dos chamados “princípios sensíveis” (representação interventiva), assentou o notável Castro Nunes lição que, certamente, se aplica à interpretação das cláusulas pétreas:

“(…). Os casos de intervenção prefigurados nessa enumeração se enunciam por declarações de princípios, comportando o que possa comportar cada um desses princípios como dados doutrinários, que são conhecidos na exposição do direito público. E por isso mesmo ficou reservado o seu exame, do ponto de vista do conteúdo e da extensão e da sua correlação com outras disposições constitucionais, ao controle judicial a cargo do Supremo Tribunal Federal. Quero dizer com estas palavras que a enumeração é limitativa como enumeração. (…). A enumeração é taxativa, é limitativa, é restritiva, e não pode ser ampliada a outros casos pelo Supremo Tribunal. Mas cada um desses princípios é dado doutrinário que tem de ser examinado no seu conteúdo e delimitado na sua extensão. Daí decorre que a interpretação é restritiva apenas no sentido de limitada aos princípios enumerados; não o exame de cada um, que não está nem poderá estar limitado, comportando necessariamente a exploração do conteúdo e fixação das características pelas quais se defina cada qual deles, nisso consistindo a delimitação do que possa ser consentido ou proibido aos Estados” (Repr. n. 94, Rel. Min. Castro Nunes, Archivo Judiciário 85/31 (34-35), 1947).

Essa orientação, consagrada por esta Corte para os chamados “princípios sensíveis”, há de se aplicar à concretização das cláusulas pétreas e, também, dos chamados “preceitos fundamentais”.

É o estudo da ordem constitucional no seu contexto normativo e nas suas relações de interdependência que permite identificar as disposições essenciais para a preservação dos princípio basilares dos preceitos fundamentais em um determinado sistema. Tal como ensina J.J. Gomes Canotilho em relação à limitação do poder de revisão, a identificação do preceito fundamental não pode divorciar-se das conexões de sentido captadas do texto constitucional, fazendo-se mister que os limites materiais operem como verdadeiros ‘limites textuais implícitos’ (J.J.Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 2002, p. 1.049).

Destarte, um juízo mais ou menos seguro sobre a lesão de preceito fundamental consistente nos princípios da divisão de Poderes, da forma federativa do Estado ou dos direitos e garantias individuais exige, preliminarmente, a identificação do conteúdo dessas categorias na ordem constitucional e, especialmente, das suas relações de interdependência.

Nessa linha de entendimento, a lesão a preceito fundamental não se configurará apenas quando se verificar possível afronta a um princípio fundamental, tal como assente na ordem constitucional, mas também a disposições que confiram densidade normativa ou significado específico a esse princípio.

Tendo em vista as interconexões e interdependências dos princípios e regras, talvez não seja recomendável proceder-se a uma distinção entre essas duas categorias, fixando-se um conceito extensivo de preceito fundamental, abrangente das normas básicas contidas no texto constitucional.

Na espécie, cuida-se da autonomia do Estado, base do princípio federativo amparado pela Constituição, inclusive como cláusula pétrea (art. 60, § 4o, inciso I).

Na forma da jurisprudência desta Corte, se a majoração da despesa pública estadual ou municipal, com a retribuição dos seus servidores, fica submetida a procedimentos, índices ou atos administrativos de natureza federal, a ofensa à autonomia do ente federado está configurada (RE 145018/RJ, Min. Moreira Alves; Rp 1426/RS, Rel. Min. Néri da Silveira; AO 258/SC, Rel. Min. Ilmar Galvão, dentre outros).

Direito pré-constitucional

Nesse ponto, passo a tratar da questão relativa à natureza pré-constitucional das normas impugnadas.

As Constituições brasileiras de 1891 (art. 83), de 1934 (art. 187) e de 1937 (art. 183) estabeleceram cláusulas de recepção, que, tal como as cláusulas de recepção da Constituição de Weimar e da Constituição de Bonn (respectivamente, art. 178, II, e art. 123, I), continham duas disposições: a) assegurava-se, de um lado, a vigência plena do direito pré-constitucional; b) estabelecia-se, de outro, que o direito pré-constitucional incompatível com a nova ordem perdia a vigência desde a entrada em vigor da nova Constituição. (João Barbalho, Constituição Federal Brasileira, Comentários, p. 356; cf., sobre o assunto, no direito alemão: Jörn Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, Baden-Baden, 1980, p. 161).


O Supremo Tribunal Federal admitiu inicialmente a possibilidade de examinar, no processo do controle abstrato de normas, a questão da derrogação do direito pré-constitucional em virtude de colisão entre a Constituição superveniente e o direito pré-constitucional. Nesse caso, julgava-se improcedente a representação, mas reconhecia-se expressamente a existência da colisão e, portanto, a incompatibilidade entre o direito ordinário pré-constitucional e a nova Constituição (Rp no 946, Rel. Min. Xavier de Albuquerque, RTJ 82/44; Rp no 969, Rel. Min. Antônio Neder, RTJ 99/544). O Tribunal tratava esse tema como uma questão preliminar, que haveria de ser decidida no processo de controle abstrato de normas.

Essa posição foi abandonada, todavia, em favor do entendimento segundo o qual o processo do controle abstrato de normas destina-se, fundamentalmente, à aferição da constitucionalidade de normas pós-constitucionais (Rp no 946, Rel. Min. Xavier de Albuquerque, RTJ 82/44; Rp no 969, Rel. Min. Antônio Neder, RTJ 99/544).

Dessa forma, eventual colisão entre o direito pré-constitucional e a nova Constituição deveria ser simplesmente resolvida segundo os princípios de direito intertemporal (Rp no 1.012, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 95/990).

Assim, caberia à jurisdição ordinária, tanto quanto ao STF, examinar a vigência do direito pré-constitucional no âmbito do controle incidente de normas, uma vez que, nesse caso, cuidar-se-ia de simples aplicação do princípio lex posterior derogat priori, e não de um exame de constitucionalidade.

Esse problema, que já fora contemplado por Kelsen no famoso Referat sobre a natureza e o desenvolvimento da jurisdição constitucional, é tratado de forma diferenciada em cada sistema jurídico (Kelsen – “Wesen und Entwicklung der Staatsgerichts-barkeit”, VVDStRL 5/64, 1929).

A práxis austríaca parte do princípio de que o objeto do controle abstrato de normas, nos termos do art. 140 da Lei Constitucional, não são apenas as leis federais e estaduais, mas também as antigas leis do Reich e dos Estados, desde que tenham sido recebidas em conformidade com o preceituado nas “Disposições Constitucionais Transitórias” de 1920 (Cf., a propósito, L. Adamovich e Hans Spanner, Handbuch des österreichischen Verfassungsrechts, 6a ed., Viena/Nova York, 1971, p. 456).

A discussão sobre a constitucionalidade dessas leis antigas deve ser examinada, todavia, em face das disposições constitucionais vigentes à época (Cf. Adamovich e Spanner,cit., p. 456; BVerfGE 2/124 (130); 2/138, 218; 3/48; 4/339; 6/64; 7/335; 10/58, 127, 131, 159; 11/129; 12/353; 14/65; 15/183; 16/231; 17/162; 18/252. Crítico, a propósito, Ipsen, cit.,p. 164).

Segundo esse entendimento, a colisão entre o direito pré-constitucional e a Constituição configura questão de direito intertemporal, não estando submetida à competência exclusiva da Corte Constitucional (Cf. Adamovich e Spanner, cit., p. 456).

Tal questão pode ser apreciada tanto pelo Tribunal Constitucional como por outros tribunais como uma questão preliminar (Adamovich e Spanner, idem, ibidem). Adamovich recomendou que se dotasse a Corte Constitucional Austríaca de competência para decidir com eficácia erga omnes as questões de derrogação (cf. Adamovich e Spanner, Handbuch des österreichischen Verfassungsrechts, 5a ed., Viena/Nova York, 1957, p. 398).

A Corte Constitucional alemã desenvolveu uma espécie de solução de compromisso, assentando que tanto as leis pós-constitucionais quanto as pré-constitucionais podem ser objeto do controle abstrato de normas. Estão submetidas, porém, ao processo de controle concreto de normas apenas as leis pós-constitucionais, uma vez que, nesse caso, a decisão sobre a colisão de normas não ameaça a autoridade do legislador constitucional (BVerfGE 2/124 (130); 2/138, 218; 3/48; 4/339; 6/64; 7/335; 10/58, 127, 131, 159; 11/129; 12/353; 14/65; 15/183; 16/231; 17/162; 18/252. Crítico, a propósito, Ipsen,cit., p. 164).

A Corte Constitucional italiana já na sua primeira decisão, em 5.6.56, reconheceu competência para examinar a constitucionalidade do direito pré-constitucional (Paolo Biscaretti di Ruffia, Derecho Constitucional, p. 268; Gustavo Zagrebelsky, La Giustizia Costituzionale, p. 42; Franco Pierandrei, “Corte Costituzionale”, in Enciclopedia del Diritto, v. 10, Milão, 1962, p. 908. Cf., a propósito: T. Ritterspach, “Probleme der italienischen Verfassungsgerichtsbarkeit: 20 Jahre Corte Costituzionale”, AöR 104/137 (1380, 1979; Aldo Sandulli, “Die Verfassungsgerichtbarkeit in Italien”, in Mosler, Verfassungsgerichtbarkeit in der Gegenwart, p. 292 (306-307) , porque tanto o art. 134 da Constituição quanto a Lei Constitucional, de 9.2.48, cuidavam apenas da constitucionalidade da lei, e entre a lei ordinária e a Constituição existe uma diferença de hierarquia, sendo, por isso, irrelevante a distinção entre direito pré-constitucional e pós-constitucional (Acórdão de 5.6.56, n. 1. Cf., a propósito, Gaetano Sciascia, “Die Rechtsprechung des Verfassungsgerichtshofs der Italienischen Republik”, JöR, NF 6/1 (6), 1957).


A Constituição portuguesa, de 1976, consagrou expressamente a chamada “inconstitucionalidade superveniente” (art. 282, § 4o), reconhecendo a competência da Corte Constitucional para examinar a compatibilidade do direito pré-constitucional em face da nova Constituição (Cf., a propósito, Canotilho, cit., p. 1288).

O Tribunal Constitucional Espanhol optou por uma linha intermediária, que lhe permite dividir a competência com a jurisdição ordinária em relação ao direito pré-constitucional, e outorga-lhe em relação ao direito pós-constitucional o monopólio da censura (Cf. A. Weber, “Die Verfassungsgerichtsbarkeit in Spanien”, JöR, NF 34/245 (257-258), 1985). Configura-se, pois, competência concorrente para apreciar a compatibilidade entre o direito pré-constitucional e a nova Constituição (A. Weber, “Die Verfassungsgerichtsbarkeit in Spanien”, JöR, NF 34/245 (258), 1985). A Lei Orgânica do Tribunal Constitucional Espanhol prevê, no art. 33, um prazo de três meses para a instauração do processo de controle abstrato de normas a contar da publicação da lei ou do ato normativo com força de lei. Nos termos do art. 2o das “Disposições Transitórias” dessa lei, aplica-se ao controle abstrato de normas, ao recurso constitucional e aos conflitos de competência o prazo previsto de três meses para os atos anteriormente editados, a contar da data de instituição do Tribunal (15.7.80) (Cf., a propósito, A. Weber, “Die Verfassungsgerichtsbarkeit in Spanien”, JöR, NF 34/245 (254), 1985).

É certo, pois, que, com a exceção da Corte Constitucional austríaca, procuram os modernos Tribunais Constitucionais assegurar sua competência para aferir a constitucionalidade das leis pré-constitucionais em face da Constituição vigente. Ressalte-se que essa idéia não se aplica de forma irrestrita para a Corte Constitucional espanhola, uma vez que, após o decurso do prazo fixado, não dispõe mais de competência para conhecer da questão no juízo abstrato. No sistema italiano, que não conhece o controle abstrato de normas, impôs-se, desde o início, a idéia de uma inconstitucionalidade superveniente.

A Constituição brasileira de 1988 não tratou expressamente da questão relativa à constitucionalidade do direito pré-constitucional. A jurisprudência do STF, que se desenvolveu sob a vigência da Constituição de 1967/1969, tratava dessa colisão com base no princípio lex posterior derogat priori.

Já sob o império da nova Constituição, teve o STF oportunidade de discutir amplamente a questão na ADIn no 2, da relatoria do eminente Min. Paulo Brossard. Embora o tema tenha suscitado controvérsia, provocada pela clara manifestação de Sepúlveda Pertence em favor da revisão da jurisprudência consolidada do Tribunal, prevaleceu a tese tradicional, esposada por Paulo Brossard. Em síntese, são os seguintes os argumentos expendidos por Brossard:

“A idéia nuclear do raciocínio reside na superioridade da lei constitucional em relação às demais leis. A Constituição é superior às leis por ser obra do poder constituinte; ela indica os Poderes do Estado, através dos quais a nação se governa, e ainda marca e delimita as atribuições de cada um deles.

Do Legislativo, inclusive. Tendo este a sua existência e a extensão dos seus poderes definidos na Constituição, nesta há de encontrar, com a enumeração de suas atribuições, a extensão delas. E na medida em que as exceder estará praticando atos não autorizados por ela. Procede à semelhança do mandatário que ultrapassa os poderes conferidos no mandato.

Assim, uma lei é inconstitucional se e quando o legislador dispõe sobre o que não tinha poder para fazê-lo, ou seja, quando excede os poderes a ele assinados pela Constituição, à qual todos os Poderes estão sujeitos.

Disse-se que a Constituição é a Lei Maior, ou a Lei Suprema, ou a Lei Fundamental, e assim se diz porque ela é superior à lei elaborada pelo poder constituído. Não fora assim e a lei a ela contrária, obviamente posterior, revogaria a Constituição sem a observância dos preceitos constitucionais que regulam sua alteração.

Decorre daí que a lei só poderá ser inconstitucional se estiver em litígio com a Constituição sob cujo pálio agiu o legislador. A correção do ato legislativo, ou sua incompatibilidade com a lei maior, que o macula, há de ser conferida com a Constituição que delimita os poderes do Poder Legislativo que elabora a lei, e a cujo império o legislador será sujeito. E em relação a nenhuma outra.

O legislador não deve obediência à Constituição antiga, já revogada, pois ela não existe mais. Existiu, deixou de existir. Muito menos à Constituição futura, inexistente, por conseguinte, por não existir ainda. De resto, só por adivinhação poderia obedecê-la, uma vez que futura e, por conseguinte, ainda inexistente.

É por esta singelíssima razão que as leis anteriores à Constituição não podem ser inconstitucionais em relação a ela, que veio a ter existência mais tarde. Se entre ambas houver inconciliabilidade, ocorrerá revogação, dado que, por outro princípio elementar, a lei posterior revoga a lei anterior com ela incompatível, e a lei constitucional, como lei que é, revoga as leis anteriores que se lhe oponham.” (A Constituição e as leis anteriores, Arquivos do Ministério da Justiça 180/125 (126-127), 1992).


Sepúlveda Pertence sustentou, por seu turno, a aplicação do princípio da supremacia da Constituição também à lei pré-constitucional. A seguinte passagem contém uma boa síntese dos argumentos expendidos por Sepúlveda Pertence:

“Indaga, a propósito, o eminente Relator, com a eloqüência que o singulariza, ‘como poderia o legislador observar Constituição inexistente ao tempo em que elaborou a lei, como poderia quebrantar normas constitucionais que só mais tarde viriam a ser promulgadas’.

‘Mesmo que o legislador fosse vidente’ – responde S. Exa – ‘ e tivesse a antevisão do que iria acontecer, e de antemão soubesse que uma Constituição com tais e quais preceitos viria a ser promulgada, mesmo assim não lhe poderia obedecer, por estar sujeito aos preceitos e termos da Constituição vigente’.

Com todas as vênias, não me convenci de que o argumento, de fascinante cintilação retórica, tivesse maior peso jurídico.

A inconstitucionalidade é apenas o resultado de um juízo de incompatibilidade entre duas normas, ao qual é de todo alheia qualquer idéia de culpabilidade ou responsabilidade do autor da norma questionada pela ilicitude constitucional.

A razão, por isso, cabe a Jorge Miranda (Manual, cit., II/250) quando anota que ‘a inconstitucionalidade não é primitiva ou subseqüente, originária ou derivada, inicial ou ulterior. A sua abstrata realidade jurídico-formal não depende do tempo de produção dos preceitos’.

Atemporal e impessoal, a inconstitucionalidade repele, pois, o que, embora a outro propósito, Calamandrei (“Ilegitimidade constitucional de las leyes”, em Estudios, cit., III/89) chamou de ‘concepção, por assim dizer, antropomórfica do que, na realidade, é somente um conflito objetivo de normas’.

Ao contrário, quando se cuida de inconstitucionalidade superveniente — que advém do cotejo de uma norma editada sob uma ordem constitucional com as normas e princípios de um outro ordenamento, futuro — a declaração da invalidade sucessiva da lei pode até significar o reconhecimento da lealdade do seu autor aos valores constitucionais da sua época.

Tanto assim é já antes se observou, que o mesmo conteúdo normativo da regra legal fulminada de inconstitucionalidade superveniente poderá seguir regendo os fatos anteriores à nova Lei Fundamental, se assim o determinarem os cânones do direito intertemporal pertinente.” (Cf. ADIn no 2, Rel. Min. Paulo Brossard, DJU 12.2.92; v., também, José Paulo Sepúlveda Pertence, “Ação direta de inconstitucionalidade e as normas anteriores: as razões dos vencidos”, in Arquivos do Ministério da Justiça 180/148 (170), julho-dezembro de 1992).

As teses acima contrapostas contêm bons argumentos, aptos a legitimar qualquer uma das possíveis conclusões.

Não se deve olvidar, outrossim, tal como enfatizado por Sepúlveda Pertence, (Ação direta de inconstitucionalidade e as normas anteriores: as razões dos vencidos, in Arquivos do Ministério da Justiça 180/148(170) ), que o debate sobre a inconstitucionalidade ou revogação do direito pré-constitucional em face do direito constitucional superveniente está imantado por uma opção político-constitucional e pragmática, que, diante da inequívoca razoabilidade das orientações, faz prevalecer uma das duas posições ou, ainda, permite desenvolver fórmulas de compromisso, com vistas à preservação de competência da jurisdição ordinária para conhecer de questões nos sistemas de controle concentrado.

É inegável, todavia, que a aplicação do princípio lex posterior derogat priori na relação lei/Constituição não é isenta de problemas, uma vez que esse postulado pressupõe idêntica densidade normativa (Cf., a propósito: Ipsen, cit., p. 163; José de Castro Nunes, Teoria e Prática do Poder Judiciário, pp. 603-604). Até porque, como expressamente contemplado no art. 2o da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, a derrogação do direito antigo não se verifica se a nova lei contiver apenas disposições gerais ou especiais sobre o assunto (lex generalis ou lex specialis).

Portanto, pode-se afirmar que o princípio lex posterior derogat priori pressupõe, fundamentalmente, a existência de densidade normativa idêntica ou semelhante (Cf., a propósito, Ipsen, cit., p. 164), estando, primordialmente, orientado para a substituição do direito antigo pelo direito novo (Cf. Ipsen, cit., p. 165). A Constituição não se destina, todavia, a substituir normas do direito ordinário (Cf. Ipsen, cit., p. 165).

Vale registrar, a propósito, o magistério de Ipsen sobre o tema:

“As regras de colisão da ordem jurídica não representam juízos lógicos a priori, mas normas que, juntamente com outras regras de interpretação e de aplicação, podem ser designadas como ‘direito de aplicação’ (Rechtsanwendungsrecht). Sua contingência histórica já foi ressaltada inúmeras vezes. O postulado da lex superior é fruto do moderno pensamento constitucional, enquanto o princípio da lex posterior é conseqüência do pensamento jurídico racional. (…). A lei posterior pode ser, simultaneamente, uma lei geral, o que permite indagar se a lei especial ou a lei posterior há de ter a primazia. Esses problemas de aplicação do Direito não se deixam solver de forma abstrata; (…). Tem-se, assim, que a regra sobre a força derrogatória da lex posterior refere-se a uma constelação totalmente diferente daquela pertinente à supremacia do postulado da lex superior.

Questão relativa à aplicação da lex prior ou da lex posterior somente pode surgir no caso de normas de idêntica densidade normativa. Se duas leis, para situações idênticas, determinarem conseqüências diversas, estará o aplicador do Direito diante do problema sobre a aplicação da lei ‘A’ ou da lei ‘B’, se o conflito não puder ser solvido mediante interpretação (redução teleológica ou extensão). A decisão não fica ao seu alvedrio, devendo, segundo o postulado da lex posterior, deixar de aplicar a lei anterior e decidir a questão segundo os parâmetros da lei posterior.

Outra é a situação quando se tem um conflito entre lei e Constituição. A Constituição estabelece, freqüentemente — seja nos direitos fundamentais, nos princípios constitucionais ou nas disposições programáticas —, apenas assertivas gerais que reclamam concretização para que possam desenvolver eficácia normativa. Se o juiz ou outro aplicador chegar à conclusão de que a lei contraria a Constituição, não poderá ele aplicar, indiscriminadamente, a Constituição em lugar da lei, uma vez que, a despeito de qualquer esforço, dificilmente se logra extrair da Constituição uma regulação positiva sobre situações específicas. (…). Enquanto a regra de colisão relativa à lex posterior pressupõe duas leis contraditórias de idêntica densidade normativa, surge na contradição entre a lei e a Constituição um déficit normativo: a lex superior não logra colmatar diretamente as lacunas surgidas. (…). Pode-se avançar um passo: Quando se cuidar de colisão de normas de diferente hierarquia, o princípio da lex superior afasta outras regras de colisão. A utilização de uma ou de outra regra de colisão poderia levar ao absurdo de permitir que a lei ordinária – enquanto lei especial ou posterior – afastasse a incidência da Constituição enquanto lei geral ou lex prior” (Ipsen, cit., pp. 162-164).


Conclusão bastante semelhante foi sustentada por Castro Nunes já nos idos de 1943:

“Não contesto que a incompatibilidade se resolve numa revogação, o que resulta da anterioridade da norma. Mas perde-se de vista o outro elemento, a diversidade hierárquica das normas.

A teoria da ab-rogação das leis supõe normas da mesma autoridade. Quando se diz que a lei posterior revoga, ainda que tacitamente, a anterior, supõem-se no cotejo leis do mesmo nível. Mas se a questão está em saber se uma norma pode continuar a viger em face das regras ou princípios de uma Constituição, a solução negativa só é revogação por efeito daquela anterioridade; mas tem uma designação peculiar a esse desnível das normas, chama-se declaração de inconstitucionalidade.” (Teoria e Prática do Poder Judiciário, pp. 602-603).

Assim, há de se partir do princípio de que, em caso de colisão de normas de diferente hierarquia, o postulado da lex superior afasta outras regras de colisão (Cf. Ipsen, cit., p. 164). Do contrário chegar-se-ia ao absurdo, destacado por Ipsen, de que a lei ordinária, enquanto lei especial ou lex posterior, pudesse afastar a norma constitucional enquanto lex generalis ou lex prior (Cf., a propósito, Ipsen, cit., p. 164).

Um último argumento – não trazido à baila pelos defensores da tese que equipara, sob o prisma conceitual, a incompatibilidade originária ou superveniente da lei com a Constituição – extrai-se das regras disciplinadoras do recurso extraordinário no Direito Brasileiro.

Nos termos do art. 102, III, “a”, “b” , “c” e “d”, da Constituição, o recurso extraordinário somente poderá ser admitido quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição; d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.

Embora a doutrina e a jurisprudência não tenham dúvida em afirmar o cabimento de recurso extraordinário, se se assevera a inconstitucionalidade da lei em face de Constituições anteriores, parece inequívoco que o constituinte concebeu esse instituto, fundamentalmente, para a defesa da Constituição atual. Tanto é que nos casos das alíneas “a” e “c” do art. 102, III, estabelece-se, expressamente, que o recurso será cabível quando a decisão contrariar a Constituição ou quando julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.

É fácil ver que o constituinte não concebeu a contrariedade a esta Constituição, em qualquer de suas formas, inclusive no que concerne à aplicação de leis pré-constitucionais, como simples questão de direito intertemporal, pois do contrário despiciendo seria o recurso extraordinário. Da mesma forma, afirmar a validade de lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição não parece traduzir juízo de mera compatibilidade entre o direito ordinário e a Constituição, tendo em vista também o postulado da lex posterior.

Essa conclusão resulta ainda mais evidente da cláusula contida no art. 102, III, “b”, que admite o recurso extraordinário contra decisão que declarar a inconstitucionalidade de tratado ou de lei federal. Significa dizer que qualquer juízo sobre a incompatibilidade entre a lei federal ou o tratado pré-constitucional e a Constituição atual levado a efeito pela instância a quo é valorado pela Constituição como declaração de inconstitucionalidade, dando ensejo, por isso, ao recurso extraordinário.

Tais reflexões permitem afirmar que, para os fins de controle de constitucionalidade incidenter tantum no âmbito do recurso extraordinário, não assume qualquer relevância o momento da edição da lei, configurando eventual contrariedade à Constituição atual questão de constitucionalidade, e não de mero conflito de normas a se resolver com aplicação do princípio da lex posterior.

Diante de todos esses argumentos e considerando a razoabilidade e o significado para a segurança jurídica da tese que recomenda a extensão do controle abstrato de normas também ao direito pré-constitucional, não se afiguraria despropositado cogitar da revisão da jurisprudência do STF sobre a matéria.

A questão ganhou, porém, novos contornos com a aprovação da Lei no 9.882, de 1999, que disciplina a argüição de descumprimento de preceito fundamental e estabelece, expressamente, a possibilidade de exame da compatibilidade do direito pré-constitucional com norma da Constituição Federal.

Assim, toda vez que se configurar controvérsia relevante sobre a legitimidade do direito federal, estadual ou municipal, anteriores à Constituição, em face de preceito fundamental da Constituição, poderá qualquer dos legitimados para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade propor argüição de descumprimento.


Também essa solução vem colmatar uma lacuna importante no sistema constitucional brasileiro, permitindo que controvérsias relevantes afetas ao direito pré-constitucional sejam solvidas pelo STF com eficácia geral e efeito vinculante.

No caso presente, cuida-se de norma de direito estadual editada em 1986, anterior, portanto, à Constituição de 1988, e que com esta se teria tornado incompatível em virtude da vedação constitucional de vinculação do salário mínimo para qualquer fim (art. 7o, IV), com notória afronta ao princípio federativo.

É relevante, pois, o pedido.

Claúsula da subsidiariedade

Cabem aqui, ademais, algumas considerações sobre a perspectiva de subsidiariedade da ADPF.

O desenvolvimento do instituto da inexistência de outro meio eficaz, ou o princípio da subsidiariedade, dependerá da interpretação que o STF venha a dar à lei. A esse respeito, destaque-se que a Lei no 9.882, de 1999, impõe que a argüição de descumprimento de preceito fundamental somente será admitida se não houver outro meio eficaz de sanar a lesividade (art. 4o, § 1o).

À primeira vista poderia parecer que somente na hipótese de absoluta inexistência de qualquer outro meio eficaz para afastar a eventual lesão poder-se-ia manejar, de forma útil, a argüição de descumprimento de preceito fundamental. É fácil ver que uma leitura excessivamente literal dessa disposição, que tenta introduzir entre nós o princípio da subsidiariedade vigente no direito alemão (recurso constitucional) e no direito espanhol (recurso de amparo), acabaria por retirar desse instituto qualquer significado prático.

De uma perspectiva estritamente subjetiva, a ação somente poderia ser proposta se já se tivesse verificado a exaustão de todos os meios eficazes de afastar a lesão no âmbito judicial. Uma leitura mais cuidadosa há de revelar, porém, que na análise sobre a eficácia da proteção de preceito fundamental nesse processo deve predominar um enfoque objetivo ou de proteção da ordem constitucional objetiva. Em outros termos, o princípio da subsidiariedade – inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesão -, contido no § 1o do art. 4o da Lei no 9.882, de 1999, há de ser compreendido no contexto da ordem constitucional global.

Nesse sentido, se se considera o caráter enfaticamente objetivo do instituto (o que resulta, inclusive, da legitimação ativa), meio eficaz de sanar a lesão parece ser aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata.

No direito alemão a Verfassungsbeschwerde (recurso constitucional) está submetida ao dever de exaurimento das instâncias ordinárias. Todavia, a Corte Constitucional pode decidir de imediato um recurso constitucional se se mostrar que a questão é de interesse geral ou se demonstrado que o requerente poderia sofrer grave lesão caso recorresse à via ordinária (Lei Orgânica do Tribunal, § 90, II).

Como se vê, a ressalva constante da parte final do § 90, II, da Lei Orgânica da Corte Constitucional alemã confere ampla discricionariedade tanto para conhecer das questões fundadas no interesse geral (allgemeine Bedeutung), quanto daquelas controvérsias baseadas no perigo iminente de grave lesão (schwerer Nachteil).

Assim, tem o Tribunal Constitucional admitido o recurso constitucional, na forma antecipada, em matéria tributária, tendo em vista o reflexo direto da decisão sobre inúmeras situações homogêneas (Cf. BVerfGE 19/268 (273); BVerfGE 62/338 (342); v. também Klaus Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, 4a ed., 1997, p. 162). A Corte considerou igualmente relevante a apreciação de controvérsia sobre publicidade oficial, tendo em vista o seu significado para todos os partícipes, ativos e passivos, do processo eleitoral (Cf. BVerfGE 62/230 (232); BVerfGE 62/117 (144); Schlaich, cit., p. 162). No que concerne ao controle de constitucionalidade de normas, a posição da Corte tem-se revelado enfática: “apresenta-se, regularmente, como de interesse geral a verificação sobre se uma norma legal relevante para uma decisão judicial é inconstitucional” (Cf. BVerfGE 91/93 (106)) .

No direito espanhol explicita-se que cabe o recurso de amparo contra ato judicial desde que “se hayan agotado todos los recursos utilizables dentro de la vía recursal” (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, art. 44, I) . Não obstante, a jurisprudência e a doutrina têm entendido que, para os fins da exaustão das instâncias ordinárias, “não é necessária a interposição de todos os recursos possíveis, senão de todos os recursos razoavelmente úteis” (Cf. José Almagro, Justicia Constitucional, Comentarios a la Ley Orgánica del Tribunal Constitucional, 2a ed., Valência, 1989, p. 324) .

Nessa linha de entendimento anotou o Tribunal Constitucional Espanhol: “Al haberse manifestado en este caso la voluntad del órgano jurisdicional sobre el mismo fondo de la cuestión planteada, há de entenderse que la finalidad del requisito exigido en el art. 44, 1, ‘a’, de la LOTC se há cumplido, pues el recurso hubiera sido en cualquier caso ineficaz para reparar la supuesta vulneración del derecho constitucional conocido” (auto de 11.2.81, n. 19) (Cf. Almagro, Justicia Constitucional, Comentarios a la Ley Orgánica del Tribunal Constitucional, p. 325) . Anote-se que, na espécie, os recorrentes haviam interposto o recurso fora do prazo.


Vê-se, assim, que também no direito espanhol tem-se atenuado o significado literal do princípio da subsidiariedade ou do exaurimento das instâncias ordinárias, até porque, em muitos casos, o prosseguimento nas vias ordinárias não teria efeitos úteis para afastar a lesão a direitos fundamentais.

Observe-se, ainda, que a legitimação outorgada ao Ministério Público e ao Defensor do Povo para manejar o recurso de amparo reforça, no sistema espanhol, o caráter objetivo desse processo.

Tendo em vista o direito alemão, Schlaich transcreve observação de antigo Ministro da Justiça da Prússia segundo a qual “o recurso de nulidade era proposto pelas partes, porém com objetivo de evitar o surgimento ou a aplicação de princípios jurídicos incorretos” (Schlaich, cit., p. 184) . Em relação ao recurso constitucional moderno, movido contra decisões judiciais, anota Schlaich: “essa deve ser também a tarefa principal da Corte Constitucional com referência aos direitos fundamentais, tendo em vista os numerosos e relevantes recursos constitucionais propostos contra decisões judiciais: contribuir para que outros tribunais logrem uma realização ótima dos direitos fundamentais” (Idem, ibidem).

Em verdade, o princípio da subsidiariedade, ou do exaurimento das instâncias, atua também nos sistemas que conferem ao indivíduo afetado o direito de impugnar a decisão judicial, como um pressuposto de admissibilidade de índole objetiva, destinado, fundamentalmente, a impedir a banalização da atividade de jurisdição constitucional (Cf., a propósito, Zuck, Rüdiger, Das Recht der Verfassungsbeschwerde, 2.ed. Munique,1988, pp. 13 e ss.).

No caso brasileiro o pleito a ser formulado pelos órgãos ou entes legitimados dificilmente versará — pelo menos de forma direta — sobre a proteção judicial efetiva de posições específicas por eles defendidas. A exceção mais expressiva reside talvez na possibilidade de o Procurador-Geral da República, como previsto expressamente no texto legal, ou qualquer outro ente legitimado, propor a argüição de descumprimento a pedido de terceiro interessado, tendo em vista a proteção de situação específica. Ainda assim o ajuizamento da ação e a sua admissão estarão vinculados, muito provavelmente, ao significado da solução da controvérsia para o ordenamento constitucional objetivo, e não à proteção judicial efetiva de uma situação singular.

Assim, tendo em vista o caráter acentuadamente objetivo da argüição de descumprimento, o juízo de subsidiariedade há de ter em vista, especialmente, os demais processos objetivos já consolidados no sistema constitucional. Nesse caso, cabível a ação direta de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade, não será admissível a argüição de descumprimento. Em sentido contrário, não sendo admitida a utilização de ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade — isto é, não se verificando a existência de meio apto para solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata —, há de se entender possível a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental.

É o que ocorre, fundamentalmente, nos casos relativos ao controle de legitimidade do direito pré-constitucional, do direito municipal em face da Constituição Federal e nas controvérsias sobre direito pós-constitucional já revogado ou cujos efeitos já se exauriram. Nesses casos, em face do não-cabimento da ação direta de inconstitucionalidade, não há como deixar de reconhecer a admissibilidade da argüição de descumprimento.

Dessa forma, não merece guarida o argumento do amicus curiae no sentido de que deve ser declarada a perda de objeto do feito em exame, em face da revogação da norma impugnada. Isso porque a argüição de descumprimento de preceito fundamental tem como objetivo sanar lesões em processos em curso sobre o tema em debate. Esse, inclusive é o entendimento do Ministério Público, o qual corroboro:

“Não há perda do objeto do pleito pela revogação da norma impugnada, pela simples e definitiva razão que, a despeito disso, demandas há, em curso e decididas, motivadas pela sua existência no mundo jurídico, e que com sua revogação, por certo não se extinguiram.”

Também é possível que se apresente argüição de descumprimento com pretensão de ver declarada a constitucionalidade de lei municipal que tenha sua legitimidade questionada nas instâncias inferiores. Tendo em vista o objeto restrito da ação declaratória de constitucionalidade e da ação direta de inconstitucionalidade, não se vislumbra aqui meio eficaz para solver, de forma ampla, geral e imediata, eventual controvérsia instaurada.

A própria aplicação do princípio da subsidiariedade está a indicar que a argüição de descumprimento há de ser aceita nos casos que envolvam a aplicação direta da Constituição – alegação de contrariedade à Constituição decorrente de decisão judicial ou controvérsia sobre interpretação adotada pelo Judiciário que não envolva a aplicação de lei ou normativo infraconstitucional.


Da mesma forma, controvérsias concretas fundadas na eventual inconstitucionalidade de lei ou ato normativo podem dar ensejo a uma pletora de demandas, insolúveis no âmbito dos processos objetivos.

Não se pode admitir que a existência de processos ordinários e recursos extraordinários deva excluir, a priori, a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Até porque o instituto assume, entre nós, feição marcadamente objetiva.

Nessas hipóteses, ante a inexistência de processo de índole objetiva apto a solver, de uma vez por todas, a controvérsia constitucional, afigura-se integralmente aplicável a argüição de descumprimento de preceito fundamental. É que as ações originárias e o próprio recurso extraordinário não parecem, as mais das vezes, capazes de resolver a controvérsia constitucional de forma geral, definitiva e imediata. A necessidade de interposição de uma pletora de recursos extraordinários idênticos poderá, em verdade, constituir-se em ameaça ao livre funcionamento do STF e das próprias Cortes ordinárias.

A propósito, assinalou Sepúlveda Pertence, na ADC no 1 (ADC 1/DF, Rel. Min. Moreira Alves, j. 1.12.93, DJU 16.6.95), que a convivência entre o sistema difuso e o sistema concentrado “não se faz sem uma permanente tensão dialética na qual, a meu ver, a experiência tem demonstrado que será inevitável o reforço do sistema concentrado, sobretudo nos processos de massa; na multiplicidade de processos a que inevitavelmente, a cada ano, na dinâmica da legislação, sobretudo da legislação tributária e matérias próximas, levará se não se criam mecanismos eficazes de decisão relativamente rápida e uniforme; ao estrangulamento da máquina judiciária, acima de qualquer possibilidade de sua ampliação e, progressivamente, ao maior descrédito da Justiça, pela sua total incapacidade de responder à demanda de centenas de milhares de processos rigorosamente idênticos, porque reduzidos a uma só questão de direito”.

A possibilidade de incongruências hermenêuticas e confusões jurisprudenciais decorrentes dos pronunciamentos de múltiplos órgãos pode configurar uma ameaça a preceito fundamental (pelo menos, ao da segurança jurídica), o que também está a recomendar uma leitura compreensiva da exigência aposta à lei da argüição, de modo a admitir a propositura da ação especial toda vez que uma definição imediata da controvérsia mostrar-se necessária para afastar aplicações erráticas, tumultuárias ou incongruentes, que comprometam gravemente o princípio da segurança jurídica e a própria idéia de prestação judicial efetiva.

Ademais, a ausência de definição da controvérsia – ou a própria decisão prolatada pelas instâncias judiciais – poderá ser a concretização da lesão a preceito fundamental. Em um sistema dotado de órgão de cúpula, que tem a missão de guarda da Constituição, a multiplicidade ou a diversidade de soluções pode constituir-se, por si só, em uma ameaça ao princípio constitucional da segurança jurídica e, por conseguinte, em uma autêntica lesão a preceito fundamental.

Assim, tendo em vista o perfil objetivo da argüição de descumprimento, com legitimação diversa, dificilmente poder-se-á vislumbrar uma autêntica relação de subsidiariedade entre o novel instituto e as formas ordinárias ou convencionais de controle de constitucionalidade do sistema difuso, expressas, fundamentalmente, no uso do recurso extraordinário.

Como se vê, ainda que aparentemente pudesse ser o recurso extraordinário o meio eficaz de superar eventual lesão a preceito fundamental nessas situações, na prática, especialmente nos processos de massa, a utilização desse instituto do sistema difuso de controle de constitucionalidade não se revela plenamente eficaz, em razão do limitado efeito do julgado nele proferido (decisão com efeito entre as partes).

Assim sendo, é possível concluir que a simples existência de ações ou de outros recursos processuais — vias processuais ordinárias — não poderá servir de óbice à formulação da argüição de descumprimento. Ao contrário, tal como explicitado, a multiplicação de processos e decisões sobre um dado tema constitucional reclama, as mais das vezes, a utilização de um instrumento de feição concentrada, que permita a solução definitiva e abrangente da controvérsia.

Essa leitura compreensiva da cláusula da subsidiariedade contida no art. 4o, § 1o, da Lei no 9.882, de 1999, parece solver, com superioridade, a controvérsia em torno da aplicação do princípio do exaurimento das instâncias.

É fácil ver também que a fórmula da relevância do interesse público para justificar a admissão da argüição de descumprimento (explícita no modelo alemão) está implícita no sistema criado pelo legislador brasileiro, tendo em vista especialmente o caráter marcadamente objetivo que se conferiu ao instituto.

Assim, o Tribunal poderá conhecer da argüição de descumprimento toda vez que o princípio da segurança jurídica restar seriamente ameaçado, especialmente em razão de conflitos de interpretação ou de incongruências hermenêuticas causadas pelo modelo pluralista de jurisdição constitucional.

Refuta-se, com tais considerações, o argumento também trazido pelo amicus curiae de que a presente argüição de descumprimento de preceito fundamental não respeitou o contido no art. 4º, §1º, da Lei nº 9.882/99.

Passo a concluir meu voto.

No caso específico, o dispositivo impugnado, ao criar mecanismos de indexação salarial para cargos, utiliza o salário mínimo como fator de reajuste automático da remuneração dos servidores da autarquia estadual que, ressalte-se, foi extinta e, para todos os fins, sucedida pelo Estado do Pará. Com isso, retira-se do Estado a autonomia para decidir sobre o reajuste de seus servidores, matéria que diz respeito a seu peculiar interesse, mas que estará vinculada à variação de índices determinada pela União.

A jurisprudência desta Corte sobre o tema é claríssima, havendo vários precedentes (RE 242.740/GO, Rel. Min. Moreira Alves, Pleno, DJ 18.5.2001; RE 229.631/GO, Rel. Min. Nelson Jobim, Pleno, DJ 1.7.1999; RE 140.499/GO, Rel. Min. Moreira Alves, 1a Turma, DJ 9.9.1994).

Outrossim, para responder a um questionamento do amicus curiae sobre a possibilidade de utilização da faculdade que compete a esta Corte, por força do art. 11 da Lei nº 9.882/99, verifica-se que não é o caso de conferir-se efeito ex nunc a esta decisão, pois não estão caracterizados os seus requisitos autorizadores: razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.

Assim, pelas razões expostas, concluo meu voto no sentido da confirmação da cautelar, julgando PROCEDENTE O PEDIDO da argüição de descumprimento de preceito fundamental para declarar a ilegitimidade do Regulamento de Pessoal do extinto IDESP, adotado pela Resolução nº 8/86 de seu Conselho de Administração e aprovado pelo Decreto estadual nº 4.307, de 12 de maio de 1986, em face do art. 7º, inciso IV, da Constituição.

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