O judeu e o ciclista

MP e polícia abusam das acusações por crime de quadrilha

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21 de agosto de 2007, 20h08

Tenho na lembrança um filme que vi faz muitos anos. Navio que partia de Hamburgo para seu destino pouco antes da eclosão da segunda Guerra Mundial. Nele, embarcados em mesma cabine, um alemão batata: alto, forte, cabelos louros quase brancos, faces rosadas, voz tonitruante, exuberante como convém aos arianos; outro, um judeu alemão corcunda, simpático, calmo, de uma fealdade aliciante. Deu-se que no curso da viagem o alemão batata quase sucumbiu às qualidades do colega do beliche embaixo.

Quando cantavam as músicas mais alemãs das músicas, o judeu mais afinado e com a voz mais educada mantinha a melodia enquanto o alemão batata não agüentava o puxado. Enfim, para encurtar, a determinada altura e para não sucumbir ao risco da conivência, o alemão batata, pró-nazista naturalmente, defendeu sua última trincheira e lascou: “é dos judeus a culpa dos males do mundo”. Concordou o outro, mas argumentou: “é dos judeus e dos ciclistas”. Espantado, o alemão batata indagou? “Por que dos ciclistas?. E ouviu a serena resposta entre sorrisos: “Por que dos judeus?”

Essa lembrança me vem na maré dos tempos em que estamos vivendo. Alguém haverá de ter a culpa pelos males do mundo, sejam judeus ou ciclistas. Parece que desejam criminalizar a sociedade. Pelo mal-feito dos judeus pagam os ciclistas, ou ao contrário, que vem a dar no mesmo.

Antigo advogado de presos políticos durante a ditadura militar, vejo-me como no passado quando certas teorias do mau direito informavam, então, as sucessivas leis de segurança nacional: a posterior mais grave que a anterior.

O conceito de conspiração do Código de Mussolini é que animava perseguidores de então. Antigamente, dizia-se que o alemães criavam as leis, os italianos as copiavam, os franceses as comparavam e os espanhóis as traduziam. Assim, os portugueses. Leia-se parte do art. 179 do anoso Código Penal Português: “Aqueles que sem atentarem contra a segurança interior do Estado, se ajuntarem em motim ou tumulto…” O elemento material do tipo descrito é “ajuntar-se naquele motim”, “conjurar para aquele motim”.

Diferentemente do Código anterior de 1852, que marcava o número de vinte pessoas para a conspiração, o agora comentado contentava-se com qualquer número desde que superior a um. Mas, tal lei admitia ser a “conjuração” um ato preparatório do “ajuntamento” e por isso se o ajuntamento se viesse a realizar, a conjuração seria absorvida, devendo aplicar-se somente a pena de “sedição”. O Direito Português dava curso ao conceito de “suspeito” do atrasado direito penal francês. Todos eram “suspeitos” até que provassem ao contrário. Como? — a lei não dizia. Ficava ao arbítrio do poderoso do momento.

Absorvidos tais “conhecimentos” (perdão leitores!), fortalecidos pelo Código Penal de Rocco (1930 na ascensão do fascismo na Itália), os autores das leis de segurança nacional da ditadura militar que sofremos ampliaram os tipos penais: a conspiração, que no direito brasileiro ganharia o nome de “formação de quadrilha ou bando”, era o crime que se praticava contra o Estado, então reduzido a miserável ditadura.

“Prendam os suspeitos de sempre”, que determinava o policial francês no clássico Casablanca, atingiu os “de sempre” e ou outros “de sempre” que os sucederiam. Hoje, não se precisa mais descrever os horrores que foram praticados pelos que defendiam a volta do Estado de Direito. A ninguém é dado ignorar.

O que vem me causando perplexidade e mal-estar é ver que esses conceitos fascistas foram, em parte, assimilados em pleno Estado de Direito, na vigência da mais avançada Constituição do mundo no que diz respeito aos direitos fundamentais. Essa contradição se explica — não se justifica, já se vê — pela conjuntura política e social em que vivemos, onde as culpas e as responsabilidades represadas deságuam em perseguições, não importando se judeus ou se ciclistas.

As acusações abusam do tipo penal “crime de quadrilha” para indiciar ou denunciar cidadãos quando não encontram para eles um efetivo tipo penal descrito nas leis.

O crime de quadrilha ou bando, abrigado no artigo 288 do Código Penal na parte que trata dos “Crimes contra a paz pública”, pune a associação “de mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes”. Esse tipo penal é uma exceção à dogmática do Direito Penal quando admite que um “ato preparatório” constitui-se em crime autônomo.

Mas a doutrina e a jurisprudência são unânimes em afirmar não existir quadrilha se os componentes (quatro ou mais) não são sempre os mesmos. Portanto, não vejo como denunciar alguém como “chefe de quadrilha” de acusados diversos, por exemplo. Em uma denúncia contra dezenas de pessoas acusadas de delitos diferentes, como elas podem ter um “chefe”?

Com tristeza, tenho verificado que, à falta de uma acusação específica, a polícia e o Ministério Público têm indiciado ou denunciado cidadãos que rigorosamente não praticaram concretamente qualquer delito punível. É certo que respondem ao reclamo de parte da sociedade que vê na perseguição, na punição, na repressão indiscriminada, na violação dos direitos, na exacerbação das penas a resposta às suas justas angustias. Entendo, mas não posso compactuar quando princípios superiores como a presunção de inocência, o amplo direito de defesa e o devido processo legal são postos de lado como foram no tempo da ditadura.

Como todos os operadores do Direito tenho na mais alta conta o chefe do Ministério Público. E não lhe faço qualquer favor ao nele reconhecer a sólida cultura jurídica e suas elevadas qualidades morais. É por isso mesmo que me espanta e entristece quando leio a denúncia que ofereceu à Suprema Corte misturando delinqüentes e inocentes. Como se fazia no tempo da ditadura empurrando uns e outros para o abismo da vala comum do “crime de quadrilha”.

Parece-me que o tempo não passou, que as lições do passado tão duramente aprendidas se esvaem em uma conjuntura adversa. Que os valores que recuperaram o Estado de Direito Democrático não têm mais vigência plena.

Não existe “chefe de quadrilha”, doutor: o acusado é ciclista.

Artigo originalmente publicado na edição de 18 de agosto do jornal O Globo.

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