Doença incurável

Leigos que defendem a CPMF merecem ser perdoados

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14 de novembro de 2007, 12h26

Teria dito um médico e ex-ministro, para defender a manutenção da CPMF, que “os ricos não pagam imposto e por isso o Brasil é tão desigual”. Por mais respeitável que seja um profissional, da medicina, da geologia ou da polícia civil, devemos ter em conta que tributação é uma especialidade que não pode ser discutida por leigos.

Advogados não costumam dar palpites no trabalho dos médicos. Com a freqüência recomendada pelo clínico de minha confiança submeto-me a exames e procuro orientar-me pelo conhecimento e pela experiência do profissional da saúde. Para os problemas de segurança consulto o profissional da área e se tiver que procurar minérios, contratarei um geólogo.

Mas muita gente imagina que tributação seja igual a futebol, onde cada um fala o que lhe passa na cabeça. Talvez por isso o futebol tenha se transformado no que é hoje: um circo, palco para negociatas, antro de incompetentes, símbolo do nosso atraso cultural e intelectual.

Como qualquer um se julga no direito de se auto-intitular consultor e um bacharel qualquer que tenha paciência para adquirir seu mestrado ou doutorado nessas indústrias de diplomas que hoje chamamos de escolas pode sair por aí arrotando sabedoria, escrevendo livros e se dizendo tributarista porque descobriu como é o sistema tributário da Finlândia num curso caça-níqueis de uma faculdade americana, qualquer um é tributarista.

Mas, meus caros, o mundo real é um pouco diferente.

Quem é o rico que não paga imposto? Parece que rico é aquele sujeito que teve um rolex roubado ou aquele outro que comprou um automóvel importado por R$ 400 mil. Ou o que mora na mansão do Morumbi. Não é pecado ser rico. Não é proibido ser rico. A não ser na cabeça oca de ilustres apedeutas.

Quem compra um rolex por R$ 10 mil com nota fiscal numa joalheria já pagou R$ 6 mil de impostos indiretos. O proprietário do BMW de R$ 400 mil pagou R$ 250 mil de impostos (importação, IPI, ICMS, IPVA, Cofins, PIS, etc), antes mesmo de ter o direito de colocar seu rico traseiro no banco de couro…

Rico não paga imposto? Quanto o “consultor” ou “professor doutor” imagina que está embutido no preço de uma mansão no Morumbi? Eu não moro lá, mas como sou tributarista sei: cerca de 40% da mansão é imposto.

Fala sério, pessoal! Parem de discutir o que não entendem, mesmo que a discussão seja no restaurante elegante ou no boteco da Vila Madalena. Deixem esse papo para quem é do ramo.

O Brasil é desigual? Claro que é! E isso nada tem a ver com os ricos, mas com esses burocratas que desviam o dinheiro dos impostos. Isso tem a ver com as obras superfaturadas, com as campanhas eleitorais milionárias, cheias de cuecas recheadas de dólares. Isso tem a ver até mesmo com os encargos sociais que são pagos para sustentar as mordomias de líderes empresariais que no mais das vezes lideram apenas a si próprios.

Vocês já viram quanto se paga para essa pelegada que está pendurada nos sindicatos, nas federações, nas ONGs que pegam dinheiro dos impostos para sustentar as mordomias de gente que nunca trabalhou na vida?

O Brasil é desigual até mesmo porque muitos profissionais formados na USP e nas escolas públicas mantidas com o imposto dos ricos e dos pobres depois que se formam raramente devolvem parte do que receberam em forma de serviços.

O Brasil é desigual porque qualquer burocrata irrelevante, qualquer funcionariozinho do enésimo escalão tem carro com motorista. O Brasil é desigual porque está repleto de pessoas que se aposentam aos 50 anos de idade e continuam pendurados nos empregos públicos.

O Brasil é desigual porque juízes querem trabalhar em palácios, políticos querem andar de jatinhos, fazendeiros não acreditam na Lei Áurea, donos de jornais se transformaram em adoradores de caixas registradoras e empresários de tevê em vaquinhas do presépio federal.

O Brasil é desigual porque professores do colégio do Estado moram em favelas, policiais são obrigados a fazer bicos para pagar as contas no fim do mês, enquanto espertalhões exploram a crendice popular.

A afirmação de que a CPMF é instrumento de combate à sonegação é uma bobagem grosseira, uma estupidez sem limites. O país já dispõe de inúmeros instrumentos de combate à sonegação. Usar a CPMF com tal finalidade é apenas incentivar a corrupção e realimentar a inflação. Só tem um lado bom: dá trabalho e lucro para advogados tributaristas.

A DCTF (Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais), embora de duvidosa legalidade, já é uma ferramenta eficiente contra a sonegação, pois ao mesmo tempo em que informa os valores a recolher, representa confissão da dívida declarada pela pessoa jurídica. A retenção do imposto de renda na fonte, que hoje alcança não só as pessoas físicas, mas praticamente todas as empresas de prestação de serviços, é outro meio eficaz e simples de combate à sonegação.

A sonegação vem sendo combatida severamente pelo Fisco e nada tem a ver com a CPMF. Vejam-se, a propósito, os relatórios das autoridades fiscais, dando conta do enorme volume de autuações, especialmente na área de importações e combustíveis, sem que isso tenha qualquer relação com a CPMF.

Dizer que a CPMF é boa porque é impossível sonegar, é outra asneira. Quem assim o afirma não sabe a diferença entre sonegação e elisão fiscal. E a elisão, no caso, é bem simples: basta reduzir a movimentação bancária, seja transferindo aos fornecedores os cheques recebidos de clientes, seja repassando os serviços de recebíveis e pagamentos a empresas terceirizadas, seja operando cada vez mais com dinheiro em espécie.

Registre-se que esta última forma de elisão fiscal é bem conhecida de toda a sociedade brasileira, não podendo ser ignorada por deputados, mesmo por aqueles que são reconhecidamente sérios. Movimentação financeira não dá qualquer garantia séria de controle de sonegação, nem mesmo quando seja maior do que a renda declarada do contribuinte.

Já defendemos várias vítimas desse engano e já tivemos oportunidade de provar, em mais de uma oportunidade, a inconsistência dos autos de infração baseados em “cruzamento” da CPMF com a declaração do imposto de renda. A CPMF, por outro lado, viabiliza ou estimula a corrupção. Se houver algum fiscal corrupto, ele pode tentar extorquir o contribuinte, sob ameaça de vasculhar suas contas, de apreender seus extratos, etc. e tal. Infelizmente há contribuintes que gostam de corromper agentes do fisco.

Todos nós criticamos eventuais servidores públicos que se desviam de seus deveres e chegam a receber propinas. Lamentavelmente, também há pessoas sem caráter que acham “normal” alguém subornar o servidor, esquecendo-se que corrupção é uma via de duas mãos, com bandidos em ambos os lados.

Além de tudo isso, a CPMF é um tributo injusto pois, sendo cumulativo, onera toda a cadeia produtiva, influindo negativamente na formação dos preços finais, especialmente daquelas mercadorias consumidas pelas pessoas de menor poder aquisitivo. Eis aí a explicação para a inflação que ainda nos persegue e que está mais presente nos alimentos e nos produtos básicos consumidos pelos mais pobres.

Quem afirma que são sonegadores os que combatem a CPMF não apenas está a fazer uma calúnia, mas revela-se notório apedeuta. Quem diz que rico não paga imposto deve ampliar suas leituras para além das bulas de remédio. Vá qualquer um de nós tentar discutir a eficácia de uma cirurgia com um professor doutor! Seremos açoitados, amaldiçoados, execrados.

Se eu tivesse alguma religião (outra grande besteira, além do futebol) poderia pedir que os leigos, por não terem a mínima noção sobre tributos, devessem ser perdoados. A medicina tem avançado muito, mas a ignorância continua uma doença incurável.

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