Poder presidencial

Lula pode decidir sobre extradição de Battisti

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17 de novembro de 2009, 13h20

O caso Battisti não tem nada de convencional, inclusive por ser essa a primeira vez em que um ato de refúgio — típica e tradicional competência do Poder Executivo — é questionado seriamente pelo Supremo Tribunal Federal. Tal circunstância, aliada à profunda divisão que se instaurou na Corte, tem gerado dúvidas sobre a possibilidade de presidente da República vir a não entregar Battisti caso o Tribunal defira a extradição. Por desinformação, chegou-se a cogitar que a defesa poderia pedir ao presidente para “descumprir” a decisão. Por evidente, não seria próprio pedir ao mais alto dignitário político do país que ignore uma decisão judicial. E tampouco seria o caso, por diversos motivos.

A extradição é um instrumento de cooperação jurídica entre Estados soberanos, necessário para que um deles possa processar ou punir alguém que esteja no território de outro. O tema se coloca, naturalmente, no âmbito das relações internacionais, o que equivale a dizer que está na esfera de competências privativas do presidente da República. Isso não é controverso. Todavia, a Constituição prevê também a competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar a extradição solicitada por Estado estrangeiro. Diante disso, questiona-se a quem caberia a decisão final: presidente da República ou STF?

A maioria dos especialistas e a própria jurisprudência do STF têm defendido que o exame do Supremo se limita à legalidade do pedido. Isso não significa que a fase judicial da extradição seja inútil. Ao contrário, ela serve justamente como forma de proteção ao extraditando, impedindo a entrega que viole os seus direitos fundamentais ou a ordem pública brasileira. Em outras palavras: compete ao STF avaliar se é lícito ao Brasil entregar a pessoa ao outro país, mas não determinar que seja extraditado. A decisão é, portanto, autorizativa. Essa mesma regra é adotada por países como Estados Unidos, França, Reino Unido e Espanha, dentre outros. O caso mais recente, aliás, envolveu o presidente francês, que negou a extradição de uma ativista italiana do mesmo período de Battisti por razões humanitárias, apesar da decisão favorável dos tribunais.

Especificamente em relação à Itália, discute-se se a existência de tratado de extradição entre o Brasil e aquele país obrigaria o presidente da República a entregar Battisti, caso o STF autorize a extradição. Alguns poucos autores — com os quais, inclusive, estou de acordo — sustentam que um tratado pode, de fato, prever esse tipo de obrigatoriedade, embora tal previsão não seja frequente. Mas note-se bem: essa seria uma obrigação no plano internacional, que não altera a competência constitucional interna nem está sujeita à jurisdição do STF. A situação é análoga à de uma lei interna que modifique o tratamento jurídico dado ao tema por um tratado internacional. A decisão interna prevalece. Seja como for, o entendimento da mais alta Corte brasileira sempre foi no sentido de que a palavra final cabe ao presidente, sem maiores distinções. Tal orientação foi reiterada em recente decisão unânime envolvendo o Chile, país que também tem tratado com o Brasil. No entanto, sequer é necessário levar o argumento para esse plano de análise. No caso concreto, diversos elementos afastam qualquer dúvida sobre a possibilidade de o presidente da República decidir livremente sobre efetivar ou não a extradição. Dois deles merecem destaque especial.

A primeira razão é clara e objetiva. O próprio Tratado entre Brasil e Itália permite expressamente que os respectivos chefes de Estado neguem a extradição caso considerem que há qualquer risco de perseguição política ou de que a situação do indivíduo possa ser agravada por esse elemento. Em outras palavras: é o próprio Tratado que faculta esse juízo ao Presidente. Essa consideração já seria mais do que suficiente. Apesar disso, vale notar que a previsão contida no Tratado com a Itália está longe de constituir uma exceção fora de propósito. Ao contrário, e entra aqui a segunda razão.

A regra que veda a entrega de indivíduos ameaçados está contida em diversos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil também é parte. São exemplos a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, de 1969. A rigor, a proibição de entrega, nessas situações, é considerada uma regra cogente de Direito Internacional (regra do non-refoulement). O desrespeito a essa determinação sujeitaria o Brasil, inclusive, a ser responsabilizado perante tribunais internacionais. 

Em suma, não há dúvida do ponto de vista jurídico de que o presidente Lula pode fazer um juízo próprio sobre a entrega de Battisti. Nem faria sentido imaginar que a questão passaria por ele apenas para um aceno de cabeça, como se fosse um oficial de justiça com faixa presidencial. Aliás, a enorme dúvida objetiva verificada no STF mais do que recomendaria a recusa. A Carta de 1988 determina que, em suas relações internacionais, o Brasil deve se pautar pela prevalência dos direitos humanos e pela concessão de asilo para a sua proteção. Mandar um homem para a prisão perpétua, em condições politicamente hostis, não seria compatível com essas exigências. Muito menos por voto de desempate.

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