A mudança na jurisprudência alemã sobre vida privada
18 de julho de 2012, 8h00
Os paparazzi estão no centro de polêmicas contemporâneas sobre os limites da busca pela informação jornalística e da exposição da vida de celebridades. A morte de lady Diana Spencer, a ex-princesa de Gales, após a perseguição desses profissionais (a maior parte free-lancers), é um ponto de referência nessas discussões, que hoje ocupam o centro de debates acadêmicos no mundo inteiro.
É curioso, mas esse é um problema bem mais antigo do que se supõe. É anterior mesmo à explosão do cinema nos anos 1930 e às cenas registradas por Federico Fellini em sua película de 1960. Se não é o primeiro, o caso do príncipe Otto von Bismarck, do final do século XIX, é importantíssimo por seu ineditismo e por sua similitude com tudo o que se vive nos dias atuais. Otto Eduard Leopold von Bismarck-Schönhausen Fürst [príncipe] von Bismarck e Herzog [duque] zu Lauenburg (1815-1898) foi o maior estadista alemão do Oitocentos. Ele unificou a Alemanha, após três guerras contra a Dinamarca, a Áustria e a França, governou o país em nome do kaiser Guilherme I e foi responsável por leis históricas (e pioneiras) em matéria previdenciária e trabalhista. Com a ascensão ao trono de Guilherme II, o homem errado na hora errada, Bismarck perdeu o cargo de chanceler imperial. Segundo alguns historiadores, antes de morrer, ele previu a eclosão da I Guerra Mundial, por causa de alguma “tolice cometida nos Balcãs”, o que efetivamente ocorreu com o assassínio em Saravejo, no ano de 1914, do arquiduque austro-húngaro Francisco Ferdinando, por um terrorista bósnio.
Mesmo após a queda do poder, Bismarck converteu-se em uma figura extremamente popular na Alemanha, com a arrecadação de fundos em todo o país para construção de estátuas em sua homenagem. Em Hamburgo, há uma famosa estátua do velho chanceler, conhecida como Bismarckdenkmal, que pode ser vista clicando-se aqui, erguida com dinheiro popular e contra a vontade do imperador.
Bismarck, para além da figura do chanceler e do legislador, associou seu nome ao que se pode chamar de “nascimento” dos direitos da personalidade no plano jurisprudencial e normativo, como se teve a oportunidade demonstrar no livro Direitos da personalidade, publicado em coautoria com Jorge Miranda e Gustavo Fruet.
Sua morte, em 1898, causou comoção nacional e tudo o que dizia a Bismarck respeito gerava interesse semelhante às grandes celebridades de nosso tempo. Em razão disso, dois jornalistas conseguiram entrar em sua câmara funerária, em sua residência, após terem subornado alguns criados, e fotografar seu cadáver, com o objetivo de vender as imagens. Toda essa aventura comprova que Bismarck pode ser considerado como uma das primeiras celebridades modernas. A negociação da imagem de seu corpo daria ganhos muito significativos a esses profissionais extremamente ousados, típicos paparazzi do século XIX. Os herdeiros de Bismarck processaram os fotógrafos e obtiveram uma injunção para impedir a divulgação das imagens, além da apreensão das chapas, dos negativos e das impressões. A decisão do Tribunal do Reich [Reichsgerichtshof], que foi de 28 de dezembro de 1899[1], às vésperas da vigência do novo Código Civil alemão,[2] usou como fundamento a entrada ilegal dos autores das imagens na propriedade particular de Bismarck.[3]
Sob forte influência desse caso, em 1907, a Dieta alemã [Parlamento do Império] aprovou uma Lei relativa aos Direitos Autorais sobre Belas Artes e Fotografias (KWG), na qual se exige o consentimento do titular da imagem para que sua reprodução seja lícita.[4] Algumas exceções são apontadas (parágrafo 23), como a participação em eventos históricos, o que dá margem a muitas controvérsias sobre o limite dessa situação excepcional; a imagem ser um mero acessório de uma paisagem ou de grupos de pessoas; a participação em procissões, cortejos, passeatas, greves e outros eventos de natureza multitudinária. No entanto, há ressalvas se, ainda assim, observar-se violação ao direito do titular da imagem ou de seus familiares, se ele já tiver morrido. Em seu parágrafo 22, a lei determina que, após a morte da pessoa cuja imagem houver sido reproduzida, seu uso dependerá de autorização dos parentes, fixando-se o prazo de dez anos para essa proteção post-mortem. Em larga medida, há aqui o reconhecimento da tutela de um direito da personalidade em relação a alguém falecido, o que não deixa de ser digno de registro, por se tratar de uma previsão legal inovadora para a época.[5]
Ao longo do século XX, a jurisprudência alemã sobre proteção à imagem e à privacidade foi se consolidando, o que veio a ocorrer de maneira definitiva com o pós-guerra e a adoção da chamada “teoria das esferas” (Sphärentheorie), cujo grande estudioso no Brasil é Wanderlei de Paula Barreto, cujos trabalhos exploram de maneira atualizada e fiel as construções jurisprudenciais alemãs sobre os direitos da personalidade. Em suas palavras: “A chamada teoria das esferas (Sphärentheorie) —esfera íntima intangível, esfera sigilosa e privada e esfera social — não resistiu à crítica da doutrina, fundamentada em dois argumentos: primeiro, o reconhecimento da existência de uma ‘privacidade na publicidade’, caracterizada pelo fato de alguém ter se recolhido em uma segregação espacial em que ele, de forma reconhecível, objetivamente, quer permanecer sozinho; segundo, porque o conteúdo e o alcance da ‘privacidade na publicidade’ não será determinado pelo titular do direito, ex ante facto, senão pela jurisprudência, ex post facto, consoante critérios objetivos-normativos que não poderão ser conhecidos pelo atingido, no momento em que ele necessitar da proteção da esfera privada, de tal modo que a incerteza jurídica acaba beneficiando o ofensor do direito".[6]
Essa posição foi abandonada graças a outro caso rumoroso, envolvendo também a aristocracia. Os antecedentes são os seguintes: a princesa Caroline de Mônaco casou-se com Ernst August Prinz [príncipe] von Hanover e passou a ter domicílio na Alemanha, país onde há um forte segmento da imprensa dedicada às celebridades. Ela foi fotografada em momentos de intimidade e suas imagens ganharam os jornais alemães.
Ela ingressou na Justiça e perdeu a ação no Bundesgerichtshof [Tribunal Federal equivalente ao nosso STJ]. Após isso, ela ajuizou uma reclamação junto à Corte Constitucional, que foi rejeitada por se entender que a publicação de fotos de Caroline, em ambiente íntimo, não implicava violência ao livre desenvolvimento da personalidade.[7]
Posteriormente, o caso foi levado ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que considerou ter havido violação do artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Segundo o TEDH, as fotos da princesa não foram tiradas em ambientes públicos e ela não estava em missão oficial. As pessoas, segundo a Corte, teriam expectativas legítimas, em certas situações, de proteção de sua vida, dado que existe uma “zona de interação” do indivíduo com os outros. Nesse sentido, mesmo em relação a uma pessoa pública, pode haver uma zona cinza envolvendo a vida privada, que a faz merecedora de proteção. Em suma, não existiria interesse público capaz de justificar a invasão da privacidade, mesmo que ela fosse uma “celebridade”. O interessante é que a Corte Europeia entendeu que ela não poderia ser considerada uma pessoa pública pelo simples fato de ela pertencer a uma família real.
Como resultado a matéria foi devolvida aos tribunais alemães, que passaram a adotar a “abgestuftes Schutzkonzept”, que pode ser traduzida por “sistema [ou conceito] de proteção por camadas [ou etapas]”.
Em 2008, o caso foi novamente para o Tribunal Constitucional, que manteve a decisão do Tribunal Federal, agora baseado no “sistema de proteção por camadas”. Esse novo modelo teórico tem, em linhas bem superficiais, a seguinte estrutura: a) a imagem da pessoa só pode ser divulgada com sua autorização; b) excepciona-se a regra quando a pessoa for relevante para a história contemporânea. Conceito esse desenvolvido na Lei de Direitos Autorais, Artes Plásticas e Fotografia, de 1907; c) haverá exceção à exceção quando a difusão da imagem lesar um interesse legítimo de seu titular.
Essa nova visão do problema subverte alguns postulados sobre a liberdade de imprensa e sua análise é importante para se comparar com a experiência brasileira, o que se fará na próxima coluna.
[1] RGZ 45, 170 (caso Bismarck).
[2] KLIPPEL, Diethelm; LIES-BENACHIB, Gudrun. Der Schutz von Persönlichkeitsrechten um 1900. In. FALK, Ulrich; MOHNHAUPT, Heinz (Hrsg). Das Bürgerliche Gesetzbuch und seine Richter. Zur Reaktion der Rechtsprechung auf die Kodifikation des deutschen Privatrechts (1896-1914). Frankfurt am Main: Klostermann 2000. p. 372.
[3] MIRANDA, Jorge; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; FRUET, Gustavo Bonato. Direitos da personalidade. São Paulo :Atlas, 2012. p.15
[4] A íntegra dessa lei está disponível em: http://www.gesetze-im-internet.de/kunsturhg/. Acesso em 18.11.2011.
[5] MIRANDA, Jorge; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; FRUET, Gustavo Bonato. Op. cit. p. 16.
[6] O ilustre professor paranaense é, sem favor, a maior autoridade no Brasil no assunto. Há diversos trabalhos publicados por ele, cito, porém, este mais recente: BARRETO, W. P. . Os direitos da personalidade na jurisprudência alemã contemporânea. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 41, p. 135-159, 2010.
[7] BVerfGE 101, 361, de 1999.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!