Opinião

Por que é necessário tornar o feminicídio um crime autônomo?

Autores

  • Natalie Alves

    é advogada sócia e diretora executiva do escritório Malta Advogados.

  • Yuri Sena

    é advogado sócio do escritório Malta Advogados e pós-graduando em "Ordem Jurídica e Ministério Público" pela Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

25 de janeiro de 2021, 6h36

Segundo a Lei nº 13.104/2015, feminicídio é a circunstância qualificadora do crime de homicídio consistente em matar uma mulher por razões da condição de sexo feminino — isto é, quando o crime envolve violência doméstica e familiar ou o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher. A despeito dos incontestáveis avanços trazidos pela citada norma, a vinculação desse crime ao tipo de homicídio tem se mostrado insuficiente em face da premência que o tema demanda.

Na condição de tecnologia social, o Direito deve atender à função de pacificar as relações sociais e promover a justiça. Quando se observa a criminalização do assassinato de mulheres em razão de seu gênero, temos que a atual legislação é insuficiente para coibir a prática de feminicídio no país.

Baseado nisso, foi apresentado o Projeto de Lei nº 4.196/2020, pelos deputados Fábio Trad (PSD/MS), Santini (PTB/RS) e Pedro Lucas Fernandes (PTB/MA), que pretende tornar o crime de feminicídio tipo penal autônomo. A proposta, aliás, foi recentemente discutida em webinar promovido pela Associação de Magistrados Brasileiros, que contou com a presença dos parlamentares, da Conselheira do Conselho Nacional de Justiça Tânia Regina Reckziegel e do magistrado Carlos Alberto Garcete.

Em síntese, a inciativa é meritória porque representa importante avanço tanto no âmbito global de enfrentamento à discriminação de gênero quanto no aperfeiçoamento dos instrumentos jurídicos aptos a coibir a prática desse delito. A necessidade da medida ressai, sobretudo, porque: 1) o feminicídio, por sua própria essência e natureza, se diferencia substancialmente do homicídio, devendo a lei refletir essa distinção; 2) estatisticamente, a tipificação do feminicídio enquanto circunstância qualificadora do homicídio prejudica a sua quantificação; e 3) operacionalmente, a legislação atual impede resposta sancionatória a que fazem jus os "feminicídios qualificados".

A tipificação do feminicídio não é fenômeno isolado do Brasil: apenas na América Latina, outros 15 países [1] possuem em suas legislações dispositivos específicos que punem o assassinato de mulheres por razões da condição do gênero feminino.

Em sua origem, o termo foi concebido para definir o assassinato de mulheres precedido por um continuum de terror antifeminino, que inclui uma ampla variedade de abusos verbais e físicos [2]. Isso significa que o feminicídio não é um ato singular, mas representa o trágico desfecho de uma história de violência, agressões e discriminação. Ao contrário das demais hipóteses de homicídio, que, de tão amplas, podem ocorrer com diversas circunstâncias e motivações, o feminicídio possui peculiaridades que se reproduzem.

De acordo com pesquisa realizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo [3] sobre os feminicídios cometidos no Estado, o autor do crime, em 70% dos casos, era convivente ou ex-convivente da vítima; em 79% dos registros, o instrumento do crime eram objetos ou meio de fácil acesso nas residências (arma branca, instrumentos domésticos ou o uso das próprias mãos); o local do crime, para duas em cada três, era a própria casa da vítima; e as motivações mais comuns eram separação do casal, pedido de rompimento, ciúmes, sentimento de posse ou machismo.

Esses fatos revelam que, na prática, o feminicídio não se limita a um homicídio "mais grave". O crime representa, na verdade, um atentado à própria condição da mulher, afetando, de forma geral, todas as mulheres da sociedade — o que atrai o interesse público específico na sua capitulação como crime autônomo. Enquanto o país figura na amarga posição de quinto país [4] com maior proporção de feminicídios, não se pode acreditar que sua ocorrência é meramente o prematuro fim da vida de determinada mulher, mas, sim, que se está diante de quadro sintomático de uma estrutura social que vitima mulheres em várias dimensões.

O cenário clama, portanto, que o Direito reconheça essas especificidades na forma de um tipo penal autônomo, imprimindo um efeito simbólico que repercutirá, inclusive, na maior reprovabilidade social do crime.

Além disso, deve-se atentar à necessidade de quantificar os feminicídios praticados, tendo em vista que a elaboração de estatísticas robustas é o primeiro passo para a criação de políticas públicas efetivas de enfrentamento ao crime. Todavia, a classificação do feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio dificulta a sua efetiva contabilização em âmbito nacional.

Isso porque não há uma estatística unificada acerca da razão dos óbitos no país. Os dados utilizados pelo Fórum Nacional de Segurança Pública, por exemplo, são gerados pelo Sistema de Informações de Mortalidades do Ministério da Saúde (SIM/Datasus), que não incorpora tipificação legal ou motivação da agressão para registrar os óbitos. As únicas informações estatísticas disponíveis sobre o feminicídio se baseiam nos registros de ocorrência disponibilizados pelas Secretarias de Segurança Pública estaduais.

Ocorre, contudo, que, da forma como atualmente está previsto o crime de feminicídio, é possível que a autoridade policial enquadre uma possível ocorrência de feminicídio como homicídio, ou que os protocolos de registro em determinado Estado também considerem esse crime (e a sua investigação) como suspeita de homicídio.

O processo pedagógico de incorporação da perspectiva de gênero por parte das delegacias de polícia, a propósito, é uma das razões pelas quais os pesquisadores do Anuário Brasileiro de Segurança Pública constatam o progressivo aumento na quantidade de feminicídios registrados desde 2015 também por causa "do processo de aprendizagem por parte das polícias em relação à adequada identificação e ao registro do feminicídio" [5].

Tornando feminicídio tipo penal autônomo, será mais evidente — e simbólica — a mensagem do legislador aos órgãos que atuam diariamente na apuração de infrações penais de que o feminicídio guarda peculiaridades em relação ao homicídio e assim merece ser abordado.

Por fim, convém adentrar em questão mais técnica e operacional de nosso sistema jurídico. Circunstância qualificadora significa dado acidental ao crime, que serve apenas para estabelecer novos limites mínimo e máximo para a pena do autor. Em outros termos, segundo a dogmática jurídica, as razões de gênero no feminicídio são apenas um elemento acessório para a punição do agente que o comete [6].

O uso desse instituto jurídico, todavia, impede, operacionalmente, que outras circunstâncias qualificadoras sejam utilizadas para elevar os limites das penas de feminicídio, porque o Direito brasileiro, do ponto de vista técnico, não emprega a figura dos "crimes duplamente qualificados". Sendo assim, ainda que o feminicídio não se confunda com motivo torpe ou o emprego de asfixia, o fato de esses elementos serem qualificadoras do crime de homicídio permite que sejam igualmente considerados para a dosimetria da pena.

Isso leva à conclusão de que, na dosimetria da pena dos feminicidas, o emprego de outras qualificadoras é sopesado pelo juiz na forma de mais uma agravante ou circunstância judicial negativa, não sendo previstos novos limites mínimo e máximo para fixação da pena. Por meio da previsão do crime de feminicídio enquanto tipo penal autônomo, será possível a conjugação mais harmônica da aplicação da pena para aqueles que cometem esse tão grave crime em conjunto com circunstâncias qualificadoras do homicídio.

Com efeito, não se pode negar a importância da Lei nº 11.304/2015 para o enfrentamento da violência de gênero em nosso país. Entretanto, para o aprofundamento desse combate, é necessário que se avance sobre o tema, tendo a aprovação do PL 4.196/2020 o potencial para cumprir o papel da atividade legiferante de estar sempre atenta à realidade social e às demandas que ela imprime.

 


[1] COMPROMISSO E ATITUDO. Legislações da América Latina que penalizam o feminicídio. Disponível em: http://www.compromissoeatitude.org.br/legislacoes-da-america-latina-que-penalizam-o-feminicidio/.

[2] RADFORD, Jill; RUSSELL, Diana E. H. Femicide: The Politics of Woman Killing. Nova Iorque: Twayne, 1992, p. 15. Tradução livre.

[3] FERNANDES, Valéria Diez Scarance; et al. Raio X do feminicídio em São Paulo: É possível evitar a morte. Ministério Público do Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Nucleo_de_Genero/Feminicidio/RaioXFeminicidioC.PDF. Acesso em 29 de outubro de 2020.

[4] Taxa de feminicídios no Brasil é quinta maior do mundo; diretrizes nacionais buscam solução. Organização das Nações Unidas. 01 de março de 2017. Disponível em: http://themis.org.br/onu-taxa-de-feminicidios-no-brasil-e-quinta-maiordo-mundo-diretrizes-nacionais-buscam-solucao/.

[5] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA – FBSP. Anuário brasileiro de segurança pública. Edição XIV. São Paulo, 2020, p. 119.

[6] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. 24. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 824.

Autores

  • é diretora-executiva do escritório Malta Advogados e desenvolve pesquisas em Bioética, Direito Médico e Direito Administrativo, com enfoque em servidores públicos.

  • é advogado, sócio do escritório Malta Advogados e pós-graduando em "Ordem Jurídica e Ministério Público" pela Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

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