Opinião

Estatuto da Cidade, 20 anos depois

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23 de julho de 2021, 15h08

No dia 10 de julho de 2001, entrou em vigor a Lei federal nº 10.257, chamada de Estatuto da Cidade (EC), a lei-marco do Direito Urbanístico que dispõe sobre a política urbana no país e que regulamentou, cerca de 12 anos mais tarde, o capítulo sobre o mesmo tema na Constituição Federal de 1988. Assim como o capítulo constitucional  artigos 182 e 183  havia sido resultado de um processo significativo de mobilização social que resultou na Emenda Popular de Reforma Urbana, também o EC foi em boa parte resultado da pressão social, especialmente por parte das centenas de entidades reunidas no Fórum Nacional de Reforma Urbana. Essa lei tem sido celebrada internacionalmente desde então  o Brasil tendo sido inscrito no rol de honra da Organização das Nações Unidas (ONU) por tê-la aprovado  e servido de inspiração para discussões, leis e políticas publicas em diversos países. No Brasil, a aprovação do EC gerou uma enorme expectativa de que as experiências promissoras, mas até então limitadas, de promoção de reforma urbana pelos municípios através da aprovação de seus planos diretores municipais (PDMs) ganhariam folego maior.

Além da sua legitimidade sociopolítica, a lei federal também tem outra característica especial: o EC não apenas contém uma lista de princípios e diretrizes de política urbana e reconhece diversos direitos sociais e coletivos, mas também estabelece uma serie de processos, mecanismos, instrumentos e recursos a serem incorporados de alguma forma nos PDMs para possibilitar a materialização dos princípios declarados e dos direitos reconhecidos. Chamada por muitos de "caixa de ferramentas" — o EC contém mais de 30 instrumentos jurídicos, urbanísticos e financeiros , a lei federal propôs uma articulação rara entre Direito, gestão publica e financiamento do desenvolvimento urbano. O aniversário de 20 anos da aprovação do EC coincide com o movimento de revisão, em diversos casos pela segunda vez, dos PDMs, tal como determinado pela própria lei. Contudo, se no primeiro momento havia um grande otimismo, atualmente há uma serie de críticas aos PDMs e mesmo um certo descrédito em relação a essa lei-marco.

O EC certamente permitiu avanços importantes, começando com o fato de que, em que pesem seus problemas e limites, centenas de municípios aprovaram as bases de sua ordem territorial  quando a enorme maioria quase nada tinha nesse sentido. Um volume enorme de informações  dados, mapas, fotografias, plantas etc.  tem sido produzido desde então, em muitos casos pela primeira vez, sobre as realidades urbanas municipais. Alguns dos princípios de política urbana se tornaram um pouco mais aceitos, especialmente quanto à proteção do meio ambiente e do patrimônio cultural. Ainda que com qualidades políticas distintas, a elaboração de muitos desses primeiros PDMs envolveu processos historicamente pioneiros de participação popular. Para muitos analistas, talvez o maior avanço dessa geração de PDMs seja o reconhecimento de milhares de Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) pelo país afora, assim permitindo que centenas de milhares de pessoas pudessem continuar vivendo em assentamentos informais consolidados.

No entanto, é inegável que alguns anos após a aprovação dos novos PDMs começou a crescer uma certa desconfiança quanto ao EC, decorrente sobretudo de críticas dos movimentos sociais preocupados com o processo de mercantilização alarmante das cidades face ao avanço de "operações urbanas" e outras estratégias como a vendas de créditos de construção, direitos e Cepacs  promovidas no contexto jurídico da aplicação de PDMs tal como possibilitado pelo EC, porém, fora de um contexto claro de governança da terra que afirmasse os princípios de politica urbana da mesma lei-marco. Cerca de 15 anos mais tarde, diversas avaliações negativas dessas centenas de PDMs indicaram mesmo um certo descrédito em relação as possibilidades da lei, com uma visão generalizada da inefetividade dos instrumentos para materializar os princípios de reforma urbana  apontando, assim, um descompasso entre os princípios e instrumentos da lei e as condições de sua aplicação, e isso em um contexto mais amplo de agravamento da crise urbana no país.

A desconfiança que se formou ao longo da primeira década de aplicação da lei decorreu em parte do fato de que os PDMs não mudaram automaticamente as realidades urbanas e sociais. Pelo contrário, a maneira como alguns dos instrumentos foram utilizados certamente agravou problemas antigos de segregação, especulação e gentrificação das cidades, especialmente como resultado do deslocamento recorde de bens e recursos do setor público para o setor privado  terras, créditos de construção, subsídios, anistias, benefícios, renuncias etc. —, principalmente através de programas de renovação urbana, revitalização, requalificação etc. promovidos pelos municípios em processos opacos e em nome de um suposto interesse público. Para diversos atores sociais, muitos desses PDMs não estariam considerando as realidades e diversidades urbanas e sociais do país, seriam em muitos casos cópias artificiais de modelos formais e seriam excessivamente complicados e burocráticos, sem definição clara das prioridades e sem considerar a pouca capacidade de gestão dos municípios. Muitas leis municipais foram mudadas sem participação popular adequada e revisões parciais posteriores dos PDMs descaracterizaram muitos deles; a validade da revisão dos PDMs durante a pandemia tem sido outro fator de disputa.

Mesmo reconhecendo a validade de muitas dessas críticas, para mim a questão central é que os urbanistas e gestores urbanos, assim como os juristas, ainda não entenderam que a proposta do EC era mudar estruturalmente a natureza do planejamento territorial urbano  e como resultado ainda prevalece no Brasil uma visão tradicional de planejamento regulatório que não se dispõe a interferir diretamente na estrutura da propriedade imobiliária. Ao regulamentar a Constituição Federal de 1988 e reconhecendo os direitos sociais e coletivos nela contidos, o EC propôs as bases de uma nova ordem jurídico-urbanística, conciliando no seu bojo um novo enfoque sobre propriedade imobiliária e um novo enfoque sobre gestão urbana, assim como abrindo um campo pioneiro de discussão sobre o financiamento do desenvolvimento urbano no país: quem paga e como pelo crescimento urbano, como se dá a distribuição dos ônus e benefícios da urbanização. A agenda do Direito Urbanístico passou a ser não mais tão somente a promoção de ordenamento territorial e de controle jurídico do uso do solo, mas também a materialização na ordem urbanística de uma visão socioambiental e o reconhecimento de uma série de direitos sociais e coletivos: o bem-estar dos cidadãos passou a ser princípio fundamental da política urbana.

Função social da propriedade, mas também funções sociais da cidade.

O EC trouxe no seu bojo toda uma nova visão de planejamento territorial urbano que determina não apenas "o que pode ser feito, onde, quando, como e por quem", determinando, assim, "quem vive onde e como"  elementos típicos do planejamento regulatório tradicional , mas também a obrigação de fazer: a ideia de que a função social da propriedade está também na possibilidade de obrigar proprietários de imóveis a certas condutas. Outro elemento dessa nova ordem jurídica é a ideia da participação popular como condição de validade jurídica de planos, leis e projetos  e não apenas como um critério de verificação de sua legitimidade sociopolítica: estamos falando aqui então de um verdadeiro Direito Público, não apenas estatal, não apenas Administrativo. Além de reconhecer o direito coletivo à regularização fundiária de assentamentos informais consolidados, o EC confirma a visão da cidade como uma criação coletiva  não apenas resultado das ações de indivíduos e nem somente das ações do Estado , e, assim, a recuperação para a comunidade da valorização imobiliária gerada por todos também foi imposta pela lei como princípio central dessa nova ordem jurídica. O EC foi a primeira lei no cenário internacional que reconheceu a ideia do direito à cidade, conciliando a plataforma da reforma urbana com a perspectiva de promoções de transformações mais profundas na ordem urbanística.

No entanto, a enorme maioria dos PDMs ainda se limita a dizer "o que pode ser feito onde, como, quando e por quem"  as "limitações administrativas à propriedade" , mas não impõe obrigações aos proprietários e não enfrenta diretamente a estrutura fundiária brasileira que envolve um estoque gigantesco e perverso de imóveis e terrenos vazios  há quase seis milhões de imóveis e construções vazias e subutilizadas no país, convivendo com um déficit habitacional em torno de seis milhões de unidades, e isso sem falar do enorme estoque de lotes com serviços que são mantidos vazios pelos proprietários. Pela mesma razão, não separando direito de construção do direito de propriedade, há pouquíssima recuperação da valorização urbanística na enorme maioria dos PDMs. Pior, quando há alguma recuperação dessa valorização imobiliária, ela tem se dado de forma que não promove a redistribuição socioespacial dos recursos gerados, e tudo isso em um contexto de crise generalizada de moradia, periferização da pobreza, informalidade crescente, aumento dos despejos e remoções. Ao mesmo tempo, esse descompasso entre os princípios da política urbana  a agenda da reforma urbana  e a aplicação seletiva de instrumentos do EC tem se dado em contexto de esvaziamento, repressão e mesmo criminalização crescentes da mobilização social.

Não houve uma mudança da cultura urbanística do país: o maior problema da lei não é a lei em si, em que pesem seus limites estruturais e conjunturais, mas as condições de sua leitura, interpretação e aplicação. Ainda pouco conhecido, o EC foi abraçado pela metade pelos urbanistas, gestores, juízes, promotores e pela sociedade civil. O discurso de direitos nele contido não foi materializado, mesmo porque a sociedade brasileira tem demandado pouco esses direitos. A heroica ação da Defensoria Pública tem sido a grande revelação nesse contexto, já que a ação do Ministério Público se tornou ambivalente: no começo era bem mais promissora e posteriormente se mostrou mais sólida na área ambiental do que na área urbanística, especialmente quanto às questões de moradia social.

A falta de compreensão da centralidade sociopolítica e socioeconômica da questão urbana e sobretudo da questão fundiária é profunda: é fundamental fazer essa articulação entre política urbana e política fundiária. O Ministério das Cidades foi o primeiro ministério a ser rifado pelo governo em busca de "governabilidade", e desde então o que temos visto é a penetração cada vez mais agressiva de uma agenda neoliberal tosca no país. O governo Temer começou um desmonte sistemático da ordem jurídico-urbanístico-ambiental incipiente, e o governo Bolsonaro tem "arrombado as porteiras" para deixar "passar a boiada"  ambiental e urbanística. O ataque à própria noção da função social da propriedade está se dando através da PEC 80/2019, e a resistência aos PDMs tem mostrado o quanto o neoliberalismo também foi abraçado por municípios  enquanto a agenda da reforma urbana tem sido esvaziada no contexto mais amplo de desmobilização social. Mesmo antes da pandemia, podiam se perceber resistências municipais crescentes à atualização dos PDMs, enquanto novas leis, medidas provisórias e decretos federais têm sido sistematicamente aprovados, propondo as bases de outra cultura jurídico-político-urbanística que não aquela do EC, processo esse confirmado e agravado por diversas decisões judiciais que também estão promovendo retrocessos.

Quais são as perspectivas do EC nesse contexto de disputas, crise e desmonte? É fundamental lembrar que a aprovação do EC levou cerca de 12 anos e, nesse tempo, a urbanização brasileira certamente mudou de natureza. Hoje o Brasil é um país pós-industrial, metropolizado, com o crescimento maior de cidades médias e pequenas, e cada vez mais afetado pelo processo global de financeirização da terra, da propriedade, da moradia e da cidade que envolve novos atores como fundos de investimento e fundos de pensão que ainda são amplamente desconhecidos. As formas de exclusão e segregação têm se renovado. O desafio que nos é colocado hoje é repensar profundamente formas, modelos e sobretudo processos de planejamento territorial urbano e de gestão de cidades à luz dessas realidades, ampliando o espaço da participação popular sempre, mas sobretudo reconhecendo novos espaços de ação comunitária direta na gestão do território e das políticas públicas e, assim, afirmando uma ordem pública maior do que ordem estatal.

Com todos os seus limites, ainda que possa e deva ser aprimorado, ainda que possa e deva ser articulado com outras leis especialmente urbanísticas e ambientais, o EC ainda é um marco fundamental que permite mudanças paradigmáticas e que merece ser louvado: nós é que temos de fazer por merecer o Estatuto da Cidade. Para tanto, temos de lutar pela sua plena implementação, para o que é fundamental interpretá-lo à luz de seus próprios princípios, para aplicar plenamente seus processos, mecanismos, instrumentos e recursos. Os tempos requerem urgentemente que aprendamos as lições trágicas da pandemia para as cidades e para a sociedade urbana  de forma a prevenir futuras pandemias e pelo menos minimizar os impactos das mudanças climáticas em curso, bem como os efeitos dos desastres cada vez mais intensos. O EC permite isso: afirmar a centralidade da questão fundiária; repensar o modelo de cidade; romper com a cultura do urbanismo tradicional; enfatizar valores de uso, a esfera do comum e os direitos coletivos; destacar mais o valor social da terra e moradia e menos a defesa da propriedade individual; articular política urbana e política ambiental; e buscar outras formas de ordenamento territorial que atendam às necessidades contemporâneas.

Uma última palavra: na origem dessa desconfiança e descrédito em relação ao EC, há uma certa visão do Direito que urbanistas e juristas têm com muita frequência, isto é, a ideia de que o Direito seria um mero instrumento  que seria politicamente neutro, objetivo, natural, ahistórico , quando na verdade o Direito é essencialmente uma arena sociopolítica de explicitação, confrontação e alguma resolução de conflitos. Quando a Constituição Federal de 1988 disse que cabe ao plano diretor municipal determinar o que é a função social da propriedade  o que por sua vez é o que permite reconhecer o direito de propriedade , a Constituição colocou o urbanismo no coração do processo sociopolítico do país. É a qualidade desse processo político que vai dizer quando e como se dá a função social. Muita gente fala que a lei "pega" ou "não pega", e que o EC não teria "pegado". Eu diria o seguinte: a lei "pega" quando ela tem "pega" no processo sociopolítico. Más leis podem dificultar avanços sociais, mas boas leis por si só não mudam realidades. Criar esses novos processos e estruturas de governança da terra urbana é o enorme desafio colocado para todos nós urbanistas, juristas, gestores urbanos e cidadãos do Brasil, nesse contexto tão dramático em que o país se encontra tomado pela combinação trágica das crises sanitária, social, urbana, habitacional, energética e ambiental. Fazer jus ao potencial de transformação das cidades intrínseco ao EC deveria ser o objetivo do esforço comum de aproximação plena entre urbanistas e juristas.

Autores

  • é jurista e urbanista, mestre e doutor em Direito pela Warwick University/UK, membro da DPU Associates e do Lincoln Institute of Land Policy, autor e organizador de obras na área de Direito Urbanístico.

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