Escritos de Mulher

Sobre a decretação de sigilos antidemocráticos pelo Executivo federal

Autor

  • Kenarik Boujikian

    é desembargadora aposentada do TJ-SP especialista em Direitos Humanos membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

17 de novembro de 2021, 9h36

O espírito antidemocrático contagia vários espaços do país e passa por cima de princípios constitucionais cotidianamente e com muita facilidade, e, muitas vezes, sem nos darmos conta.

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Nessa direção, um dos aspectos que podemos observar diz respeito à publicidade dos atos de Estado. A nossa Constituição de 1988, que agasalhou o Estado democrático de Direito, garantiu o acesso às informações públicas e estabeleceu a publicidade como regra, como consagrado no artigo 37, que fixou esse princípio regente de Administração Pública de todas as esferas e de qualquer dos poderes.

Somando-se à Constituição Federal, para que a população tivesse um instrumento eficaz para a garantia do direito, desde 2011 temos a Lei de Acesso à Informação (LAI), que oferta mecanismos para a transparência da coisa pública e permite maior fiscalização, na medida em que facilitou o acesso a documentos e informações que podem municiar todas as políticas de Estado.

O direito à informação, consagrado na Constituição, também se encontra protegido nas legislações internacional e regional, sendo uma construção basilar dos direitos humanos. A titulo de exemplo, apenas menção ao artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos

Mas, de um modo ou de outro, a questão da publicidade está sendo limitada e burlada pela atuação dos entes estatais, de modo crescente.

O mais recente debate trouxe à tona um dos aspectos do sigilo, o chamado "orçamento secreto", que foi criado em 2019 e estabeleceu um novo tipo de emenda: a do relator do projeto orçamentário. Foi alvo de decisão do Supremo Tribunal Federal neste mês de novembro, em processo de relatoria da ministra Rosa Weber. Nessa modalidade de emenda, o parlamentar que indicou a destinação de verba fica oculto. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, por expressiva maioria, barrou os repasses parlamentares feitos através do "orçamento secreto", por violar os postulados constitucionais de publicidade, transparência e impessoalidade, no âmbito dos poderes públicos.

Esse espírito antidemocrático, que tem como base o segredo, a falta de informação, atua fortemente no âmbito do Executivo.

O presidente da República tem usado com frequência a decretação de sigilo em documentos, o que ganha força em todas as áreas do governo federal.

Como sabemos, desde o primeiro ano do governo um dos ataques do presidente foi em direção ao tema de gênero, que passou a ser um novo inimigo. No campo internacional, nas votações de resoluções internacionais, o Brasil passou a acompanhar a mesma linha de países ultraconservadores, mudando a sua postura, que era de uma crescente e consistente política de proteção.

O jornalista Jamil Chade, em setembro de 2019, informou em seu blog que o Itamaraty vetou o acesso aos documentos que embasariam e justificariam a política externa implementada pelo Estado brasileiro, que instruiu os diplomatas a vetar termos como "igualdade de gênero", "educação sexual" e "direitos reprodutivos" em debates e resoluções da ONU. Entidades da sociedade civil, que buscaram a motivação da decisão, requerendo acesso às instruções enviadas para as missões, foram impedidas de ter acesso aos documentos do Ministério das Relações Exteriores que orientavam essa nova postura. O Itamaraty justificou que tal decisão afetaria as negociações nas quais o Brasil estaria envolvido e ameaçaria a segurança nacional. Interessante que o sigilo foi decretado após o pedido das organizações.

O governo segue categorizando o sigilo, dificultando o monitoramento e a promoção do direito ao acesso à informação, que é o meio para que outros direitos possam ser realizados pelos cidadãos como um direito fundamental. E ainda alega privacidade para impedir o acesso.

No ano de 2020, soubemos também por outro jornalista, Guilherme Amado, que a Secretaria de Comunicação da Presidência decretou sigilo centenário em relação ao nome de servidores que postavam em rede social da pasta. A informação era necessária para detectar a origem de fake news e era possível haver comando de um dos filhos do presidente, que tem mandato político. O artigo 31 da LAI, que garante a privacidade, a intimidade, a honra e a imagem do presidente e de familiares, foi utilizado de forma abusiva para ocultar os fatos.

Neste ano de 2021, veio à tona a informação de colocação em sigilo por cem anos dos dados dos crachás de dois dos filhos do presidente, que exercem mandatos eleitorais (vereador e deputado), e, portanto, pessoas públicas, sob o fundamento de se tratar da intimidade, da vida privada e da honra e imagem dos familiares do presidente.

Em meio à mais grave sanitária, a vacinação do presidente da República também teve sigilo centenário decretado. Só em 2121 é que será possível saber se Bolsonaro tomou a vacina contra a Covid-19, em postura oposta à de outros governantes mundo afora e dentro do Brasil, que fizeram questão de mostrar o momento da vacinação.

E, como disse, essa postura se aninha em todas as esferas. O Exército determinou sigilo de cem anos ao processo que absolveu Eduardo Pazuello, general e ex-ministro da Saúde, que esteve numa manifestação política ao lado do presidente. Impressionante como um processo disciplinar pode ganhar a etiqueta de cem anos de sigilo.

E não nos esqueçamos de outro caso, que ganhou o noticiário: o governo decretou sigilo de cem anos para o procedimento de intervenção do Estado brasileiro referente ao médico Victor Sorrentino, que foi detido no Egito por fazer piadas sexistas para uma mulher.

Esses são apenas alguns exemplos que foram noticiados pela mídia, que mostram como a informação e a publicidade são fundamentais.

Revelam, por outro lado, um crescendo do sigilo, que é o avesso da democracia e dos princípios agasalhados na nossa Constituição.

É preciso que os cidadãos possam olhar integralmente as coisas públicas, o que somente é factível com o pleno exercício do direito de informação sobre os atos de Estado, que permite o verdadeiro controle social.

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