Opinião

Eleição, presos provisórios e adolescentes internados: esse encontro segue adiado

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20 de abril de 2022, 11h10

A despeito de Ulysses Guimarães, quando da promulgação da Constituição de 1988 ter afirmado que a "cidadania começa com alfabeto" [1], não se pode ignorar o fato que é no voto que se verifica uma das suas principais formas de materialização. O presente texto visa a problematizar o atual cenário em que se depara com uma restrição indevida do direito de voto, o que, por via de consequência, implica na limitação da própria cidadania.

Ainda que se possa destacar a existência de normas internacionais que versam sobre o direito de voto, é imprescindível ter em mente que o texto constitucional vigente, até mesmo como forma de conferir uma postura antagônica ao regime de força instaurado em 1964, estabeleceu o voto direto como cláusula pétrea. A disciplina constitucional sobre essa temática não se esgota nessa tutela, devendo ser ressaltada, também, a norma positivada em seu artigo 14 que trata do sufrágio e do voto, que não podem ser confundidos, sendo, por isso, oportuna a lição proferida por José Afonso da Silva:

"(…) as palavras sufrágio e voto são empregadas comumente como sinônimos. A Constituição, no entanto, dá-lhes sentidos diferentes, especialmente, no seu artigo 14, por onde se vê que o sufrágio é universal e o voto é direto e secreto e tem valor igual. A palavra voto é empregada em outros dispositivos, exprimindo a vontade num processo decisório. Escrutínio é outro termo com que se confundem as palavras sufrágio e voto. É que os três se inserem no processo de participação do povo no governo, expressando: um, o direito (sufrágio), outro, o seu exercício (o voto), e o outro, o modo de exercício (o escrutínio)" [2].

O direito de sufrágio é marcado pela universalidade, sendo certo que qualquer restrição necessita observar o prisma da excepcionalidade. Mais uma vez, depara-se com uma postura do Constituinte Originário em que se busca sobrepujar a lógica experimentada no curso da ditadura civil-militar (1964-1985), tanto que é vedada a cassação de direitos políticos. A suspensão, por sua vez, se mostra possível; porém, e para os fins desta análise, deve se limitar ao tempo em que durarem os efeitos da condenação penal transitada em julgado.

A partir da excepcionalidade da suspensão dos direitos políticos e de uma correta compreensão do estado de inocência, é necessário afirmar o óbvio, qual seja, presos provisórios e adolescentes em conflito com a lei internados são titulares do direito de voto.

Não se trata de uma discussão bizantina, já que, segundo dados do Depen [3], dentre os 673.614 presos depara-se com 207.157 como presos provisórios. Não se trata de número insignificante, quando se depara com a possibilidade de exclusão de processos decisórios.

Se não bastasse o mosaico constitucional que assegura o direito de voto dos presos provisórios e dos adolescentes internados, é preciso assinalar que a Justiça Eleitoral, vide a Resolução TSE nº 23.669/21, regulamenta o assunto. Todavia, carece de efetividade todo esse direito posto, tanto que, nas últimas eleições gerais, cinco estados não permitiram que as pessoas que compõem esse grupo pudessem votar. Aliás, em se tratando das últimas eleições gerais, depara-se com um pífio número de presos provisórios que votaram, a saber: 12.346 e isso contando com mesários e funcionários dos estabelecimentos prisionais [4].

O caso do Rio de Janeiro é emblemático e representa uma clara sabotagem ao texto constitucional, uma vez que a última vez em que foi assegurada a participação de presos provisórios foi em 2010. Caso persista o cenário de omissão do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, a partir dos dados fornecidos, em 29 de março de 2022 [5], pela Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap), 17.458 brasileiros não participarão das escolhas de parlamentares estaduais, congressistas e dos chefes do Executivo estadual e federal.

Esse impedimento indevido da participação nas eleições vindouras de presos provisórios e adolescentes internados se insere, ainda, no já declarado, vide o decidido na MC na ADPF nº 347, Estado de Coisas Inconstitucional do sistema prisional brasileiro. Visualiza-se, assim, com uma situação que se insere na falha sistêmica que impede a fruição de direitos que são assegurados pela ordem jurídica vigente.

É preciso ir além do discurso. Ao impedir a participação nas próximas eleições gerais, a Justiça Eleitoral acirra processo de exclusão de um grupo que possui o direito de votar. Trata-se, assim, de uma verdadeira vitória simbólica do autoritarismo, que acaba por relegar determinados grupos a uma segunda classe de cidadania. Não se trata somente de uma desconsideração ao fato de que a inclusão política implica em melhoria das condições de vida daqueles que antes eram excluídos, os próprios incluídos sofrem o preço da exclusão, tal como assinala Franz Hinkelammert:

"(…) a exclusão é um problema do bem comum, que interessa a todos. Quando há exclusão, não há vida boa para todos, nem para os incluídos. A exclusão dilacera, transforma, brutaliza, ela afeta também quem a causa, não somente quem a sofre" [6].

Se não bastasse o que já foi exposto, no que se refere especificamente aos adolescentes internados, visualiza-se uma gritante contrariedade entre uma postura pública que visa a incentivar o voto dos jovens que não são obrigados ainda a votar e uma real política de limitação ao direito em questão.

Todo esse cenário de restrição indevida do voto demonstra o fosso existente entre o direito posto e a realidade social. É chegado o momento, até mesmo porque a Constituição já superou a sua terceira década de vida, de superar desculpas e objeções que somente camuflam uma mentalidade autoritária que ainda persiste na sociedade brasileira. A eleição de 2022 confere uma chance de superação desse quadro, resta saber se a comunidade jurídica conseguirá ir além de propagandas e discursos pomposos. Caso consiga, a cidadania sairá fortalecida.


[2] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2006, p.104

[5] Dados obtidos mediante manejo da Lei de Acesso à Informação.

[6] HINKELAMMERT, Franz. Mercado 'versus' direitos humanos. São Paulo: Paulus, 2014. p. 151.

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