Embargos Culturais

Bernardo Pereira de Vasconcelos e o Código Criminal de 1830

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

3 de abril de 2022, 8h00

Datado de 16 de dezembro de 1830, o Código Criminal do Império resultou de cumprimento de determinação da Constituição de 1824, que dispunha que seria organizado, o "quanto antes", um Código Civil e um Código Criminal, "fundado nas sólidas bases da Justiça e Equidade". É do que trato nos Embargos Culturais desta semana.

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O projeto fora elaborado por Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850), político conservador que nasceu em Ouro Preto e faleceu no Rio de Janeiro. Vasconcelos pretendia a modernização da Justiça Criminal, cuja transparência defendia, como se observa em discurso por ele proferido na Câmara dos Deputados, em sessão de 18 de junho de 1827, quando insistiu que a administração da Justiça Criminal não corresponderia jamais aos votos dos homens ilustrados e aos fins da instituição social, enquanto o processo não assentasse sobre estas três sólidas bases: distinção entre juiz de direito e juiz de fato, ou jurado; justiça itinerante, ou ambulante; e a maior publicidade possível de todos os atos do processo.

As posições conservadoras de Vasconcelos nos lembrariam Edmund Burke, na opinião de José Murilo de Carvalho, bem como, e principalmente, é nítida a influência do utilitarismo de Jeremy Bentham em sua obra de legislador.

O Código Criminal do Império do Brazil principiava definindo o quadro geral dos crimes. Adotava-se o princípio da reserva legal, no sentido de que não haveria crime (ou delito, então expressões sinônimas, nos termos do próprio código) sem lei anterior definidora da ação ou da omissão. O crime era definido como toda ação ou omissão voluntária, e contrária às leis penais.

Por crime também se entendia a tentativa, desde que manifestada por atos exteriores, bem como o princípio da execução do crime, desde que não se tivessem circunstâncias independentes da vontade do delinquente. Não se punia a tentativa, em circunstâncias definidas pelo código. Tratava-se também do abuso de poder, que se definia como o uso de poder (conferido por lei) que se mostrasse contra os interesses públicos, ou em prejuízos de particulares, sem que a utilidade pública assim o exigisse.

Para a definição do criminoso exigia-se a prova de que se agiu com má-fé. Os criminosos eram divididos em autores e em cúmplices; esta última categoria admitia algumas variáveis.

A maioridade penal se dava aos 14 anos; isto é, também não se julgavam criminosos os menores de 14 anos. No entanto, provado que o criminoso menor de idade agira com algum discernimento, poderia o juiz determinar o recolhimento do infrator para uma casa de correção; no entanto, o recolhimento cessaria quando o infrator completasse 17 anos. Também inimputáveis eram os loucos de todo o gênero, salvo se passassem por lúcidos intervalos, e neles cometessem o crime, bem como os que agiram por intermédio de coação moral irresistível. A imputabilidade, no entanto, não afastava o dever de indenizar. Para os criminosos acometidos de loucura, haveria medidas especiais.

Concebia-se o crime justificável, que não poderia ser objeto de punição, nas hipóteses de o criminoso ter agido (ou se omitido) com o objetivo de evitar um mal maior, de defesa própria ou da família, constando-se a ocorrência de alguns requisitos, a exemplo da defesa de terceiros. No caso de justificativa do crime alguns requisitos deveriam ser aferidos. Também não se poderia falar em crime no caso de resistência a ordens ilegais. Falava-se ainda de castigo moderado, isto é, os que pais aplicassem a filhos, senhores a escravos e mestres a respectivos discípulos.

O Código Criminal do Império dispunha que o crime praticado pela noite, ou em lugar ermo, era agravante a ser considerada pelo juiz. Agravantes também eram o crime cometido com veneno, incêndio ou inundação, a reincidência, o motivo reprovado ou frívolo, a falta de respeito à idade do ofendido (sendo este mais velho, ou pai, do infrator).

Previa-se a indenização, que o código denominava de satisfação do dano, inclusive restituição da coisa, ainda que em poder de terceiro, que seria obrigado a entregá-la. Os senhores de escravos eram obrigados a indenizar os crimes cometidos pelos respectivos escravos, até o valor destes. A obrigação de indenização alcançaria os herdeiros, até o limite da herança; aos herdeiros dos ofendidos era facultado exigir o pagamento de indenização.

Punia-se a tentativa; se a pena do crime consumado fosse a pena de morte, a tentativa era punida com a pena de galés perpétuas; se fosse de galés perpétuas, a tentativa era punida com a pena de galés por 20 anos; e assim sucessivamente; a tentativa de crime penalizado com banimento era punida com o desterro. Não se podia punir com base em presunção, por mais veemente que essa fosse.

Havia previsão de pena de morte, a ser executada por enforcamento; não se podia enforcar na véspera de domingo, em dias santos ou de festas nacionais. Descrevia-se em pormenor o modo de execução, que poderia ser acompanhada e presidida por um juiz criminal. Os corpos dos enforcados seriam entregues aos parentes ou amigos; os corpos dos executados não poderiam ser enterrados com pompa, sob pena de prisão de um mês a um ano. Não se podia executar com pena de morte mulheres grávidas, que, na hipótese de serem julgadas, somente poderiam sê-lo 40 dias depois do parto.

A pena de galé sujeitava o réu a andar com corrente de ferro, junto ou separado a outros réus; cumpririam a pena nos trabalhos públicos da província, na qual fora cometido o delito, ou então ficariam à disposição do governo. Havia restrições à penalização de galés para as mulheres, para os menores de 21 anos e para os maiores de 60 anos.

Havia pena de trabalhos forçados. Penas de prisão simples seriam cumpridas em prisões públicas, nas quais haveria comodidade e segurança. Na pena de banimento o réu seria privado dos direitos de cidadão brasileiro, ficando inabilitado de habitar no território nacional; se retornasse, seria punido com a prisão perpétua.

Na pena de degredo o réu deveria residir em lugar destinado pela sentença, dele não podendo se ausentar. Na pena de desterro o réu deveria deixar o lugar marcado na sentença. Em todos os casos, havia suspensão dos direitos políticos. O réu que não tivesse condição de pagar multas seria condenado a trabalho forçado, até que produzisse o suficiente para o pagamento da multa devida.

No caso de réus escravos poderia haver a condenação aos açoites, ao que depois seriam entregues aos seus senhores; essa regra foi revogada em 1886. Os que se encontrassem em estado de loucura não seriam punidos, enquanto a loucura neles perdurasse. O imperador, no exercício do poder moderador, poderia perdoar ou minorar as penas, o que não excluía do réu a obrigação de indenizar. As penas impostas não prescreviam em tempo algum.

O primeiro grupo de crimes era formado pelos chamados crimes contra a existência política do Império, iniciando-se com os crimes contra a independência, integridade e dignidade da nação. Era crime tentar contra a independência ou integridade do Império.

Havia capítulo que tipificava os crimes contra a segurança do estado civil e doméstico. Era o caso do religioso que celebrasse matrimônio entre contraentes não habilitados, o então chamado crime de celebração de matrimônio contra as leis do Império. A poligamia era definida como a contração de segundo ou outro casamento, sem que o primeiro fosse dissolvido; o ofensor era penalizado com prisão com trabalho, de um a seis anos, a par da obrigação de pagar multa.

A mulher casada que cometesse adultério seria punida com pena de prisão com trabalho por um a três anos, pena que também seria imposta ao adúltero. Era também crime o homem casado possuir concubina, teúda e manteúda, a usarmos a linguagem da época.

As linhas gerais do Código Criminal de 1830 sinalizam algum avanço em relação ao modelo draconiano do Livro V das Ordenações Filipinas. Certa razoabilidade parece informar o texto, o que pode revelar forte influência do pensamento utilitarista de Jeremy Bentham na obra de Bernardo Pereira de Vasconcelos, autor do projeto e seu mais ardoroso defensor. Naturalmente, há vários pontos dos quais discordamos, ainda que discordemos mais do anacronismo, que consiste em ver com os olhos de hoje uma experiência histórica da qual não participamos.

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