Equidade de gênero e formatação do Direito
5 de fevereiro de 2023, 9h22
Nos idos de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) condenou o Brasil por negligência na apuração de crimes contra as mulheres. O país sentou-se no banco dos réus, notadamente no emblemático caso de Maria da Penha.
Chega a ser simbólico — ou remissivo — de uma cultura impregnada pelo machismo e de atitudes potencialmente misóginas, ou ainda de crenças nem sempre igualitárias e de um modelo de Judiciário resistente a avanços institucionais, a constatação de que o maior marco legislativo na luta pela igualdade de gênero brotou e germinou através de um comando pautado pela compulsoriedade.
E esse episódio serve como lembrança do calvário do aprimoramento das instituições nacionais. O pano de fundo histórico avoca, senão, o drama que se corporificou no famigerado aforisma segundo o qual "em briga de marido e mulher não se mete a colher".
Trata-se, a rigor, de uma antessala incontornável; de uma preliminar a debates essenciais acerca do tom que deve ser emprestado ao assunto, sobretudo quando a abordagem resvala no Judiciário e na sua atividade-fim. Afinal, história e contemporaneidade são imprescindíveis para a compreensão do Direito.
Pois muito bem. A Lei Maria da Penha trouxe à luz do dia um novo horizonte, constituindo o nascedouro de um combate até então esquecido pelo silêncio imposto por uma sociedade patriarcal e pelas contradições de um passado que ainda persiste e às vezes assume o sutil disfarce da mudança para tentar uma sobrevida.
O Estado, doravante, passa a interferir nas relações íntimas. E é bom que seja assim. Aliás, é imprescindível. Mas novos e inesperados desafios insinuam-se. Tornou-se evidente que há muitas perguntas difíceis — e poucas respostas —, e que a temática reclama aprofundamentos.
A propósito, no sistema de justiça, muito se fala na violência institucional, tendo o Judiciário, por intermédio das Resoluções 254 e 255 do CNJ, inaugurado uma política nacional que anuncia, como um laboratório inacabado, recomendações de posturas tendentes a evitar a revitimização e orientadoras do tratamento a ser destinado às mulheres.
Só que o olhar deve ser mais profundo. Me reporto à desigualdade de gênero na própria construção do Direito, que vem a acometer o processo de tomada de decisão e de formação da jurisprudência.
O que dizer dessa aberração que foi o manejo, pelo legislador brasileiro, do conceito de mulher honesta? Em outras palavras: o legislador assinalava que as demais mulheres, tidas como desonestas, não poderiam se socorrer ao amparo judicial quando vítimas de crimes sexuais. E essa expressão, empregada desde as Ordenações Filipinas, só veio a ser suprimida, pasmem, pela Lei n. 12.105, em 2009.
E mais: assistiu-se por anos a fio, não sem algum espanto, o incremento dramático da tese da legítima defesa da honra nas sessões do Tribunal do Júri, acolhida, por incrível que pareça, um sem-número de vezes. Essa construção só foi declarada inconstitucional quase que agora, em 2021, no âmbito da ADPF nº 779.
Sob esse viés, não é demais afirmar que as consequências desta ideologia enraizada na cultura brasileira traz, invariavelmente, reflexos legislativos. E o pior: finda influenciando, decisivamente, o Poder Judiciário, o qual ainda apresenta certa timidez neste processo de ressignificação desse panorama.
É dizer: os vetores vincados alhures, por vezes imperceptíveis, colaboram para a reiteração de casos de violência doméstica contra a mulher. Basta consultar as páginas do anedotário nacional e perceber que o Judiciário, por muito tempo, pode ter sido conivente.
Em conclusão, devo consignar: desde 1988 o constituinte veiculou o postulado da igualdade de gêneros, em que pese tenha remanescido por décadas os monstrengos que arrefeceram o fortalecimento dos direitos das mulheres. E a despeito da oscilação da atividade legiferante, constitui obrigação do Judiciário enaltecer a força normativa da Constituição, a qual merece deixar de ser um mero catálogo de competências e de recomendações políticas e morais, para se tornar um sistema de preceitos capazes de conformar a realidade.
REFERÊNCIAS
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SOLNIT, Rebeca. A mãe de todas as perguntas: reflexões sobre os novos feminismos. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
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